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180 mil, 61 mil, 31 mil. As estimativas são muito diferentes e a discrepância é substancial. Estes dados têm sido divulgados por várias fontes oficiais e tentam responder a uma pergunta: desde 24 de fevereiro de 2022, dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, quantas pessoas (dos dois lados em conflito) morreram na guerra em território ucraniano? Muito raramente, ao longo destes últimos dois anos e meio, as autoridades dos dois países revelaram as baixas que sofreram. Em contraposição, não têm qualquer problema em tornar público o número de vítimas mortais do seu adversário. Mas impõe-se uma questão: serão estas informações confiáveis ou terão como objetivo alterar a realidade?
A Ucrânia divulga a um ritmo diário o número de baixas russas. Por exemplo, o relatório desta quarta-feira dá conta de 1.240 baixas, entre feridos e mortos, contabilizando-se, desde 24 de fevereiro, 594.400. Já a última informação oficial sobre o número de vítimas mortais foi transmitida pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, numa conferência de imprensa a 25 de fevereiro de 2024: tinham morrido 180 mil soldados russos desde o início da guerra.
O Presidente da Ucrânia destacou, na mesma conferência de imprensa, que morreram “31 mil soldados ucranianos” durante o conflito e não “300 mil ou 150 mil, ou aquilo que Putin e o seu círculo mentiroso está a dizer”. Dois dias depois desta conferência de imprensa, foi a vez de o antigo ministro da Defesa e atual secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Sergei Shoigu, anunciar que o número de baixas ucranianas tinha sido de 440 mil, não tendo especificado o número de mortes. Mas garantiu que eram tropas “perdidas” para o lado de Kiev.
Outros países, como o Reino Unido ou os Estados Unidos da América, vão publicando as suas estimativas pontualmente, tal como organizações internacionais ou meios de comunicação social. Nenhuma é igual. Em meados de junho deste ano, o secretário da Defesa norte-americano, Lloyd Austin, revelou que as tropas russas tinham sofrido 350 mil baixas. Dias antes, o Ministério da Defesa do Reino Unido estimava-as em meio milhão.
A estratégia de guerra para revelar poucas informações, mas estratégicas
Publicamente, líderes militares russos e ucranianos apresentam a sua estimativa das perdas do lado inimigo, mas são parte interessada em mostrar as falhas dos adversários. Simultaneamente, quase nunca concedem dados sobre as baixas das suas tropas. No meio de uma guerra que também entra no domínio mediático e informativo, esta decisão tem uma justificação, já que os números podem ter um impacto nas suas forças. E Moscovo e Kiev estão cientes dessas repercussões.
Em declarações ao Observador, Daniela Nunes, investigadora de Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, assinala que o número de baixas é um “segredo de Estado”. Inicialmente, “pela proteção das pessoas e das vítimas”. Mas também por uma “questão estratégica”, opina a especialista, recusando que tenha a ver com uma “falta de transparência e falta de liberdade do acesso à informação”.
Os governos russos e ucranianos — e outros em guerra — escolhem não revelar os seus próprios dados das baixas, porque pode ter um impacto no “moral” das tropas. “Há aqui uma lógica que é quase a lógica de um jogo infantil, de uma brincadeira infantil. Quantas mais fraquezas demonstrarem ao inimigo, mais força ele sentirá para os neutralizar”, sublinha Daniela Nunes.
Esta estratégia está longe de ser exclusiva da Ucrânia e da Rússia e tem antecedentes históricos. Como lembra Cédric Mas, historiador militar e presidente do Instituto de Ação Resiliente, esta tática é o “truque mais velho de propaganda” bélica. “Se nos fiarmos nos dados oficiais, todas as grandes batalhas da Antiguidade foram ganhas de 10 para 1, com muitas poucas perdas e um massacre [para o inimigo]”, ilustrou, em declarações ao jornal Le Monde.
O estado de espírito e da motivação das tropas pode piorar ou melhorar, consoante as tendências dos números revelados. E não só: se os dados forem desfavoráveis para uma das partes, isso pode dar uma ajuda ao inimigo, algo evitável num cenário de guerra. Daniela Nunes dá um exemplo: “Se eventualmente a Ucrânia perceber que está a conseguir prosseguir com um número de baixas inferior àquilo que previa, e se os russos não exagerarem na divulgação destes números, isso pode fornecer à Ucrânia uma sensação de fé, de esperança e vitória, superior àquilo que a Rússia quer que a Ucrânia sinta”.
Isto ajuda a explicar por que motivo é que os países raramente levantam o véu sobre o número de mortos nas suas tropas. Além disso, também faz levantar dúvidas sobre a credibilidade dos dados apresentados, neste caso, pela Ucrânia e pela Rússia. Os dois lados em contenda querem enganar o inimigo, ao mesmo tempo que não desejam diminuir o moral dos seus homens.
“Existe uma tendência, que não podemos ignorar e ser ingénuos, que é a de se exagerar. É uma tendência que faz com que estes números divulgados pelos dois governos não possam ser considerados como estando 100% em conformidade com a realidade”, aponta Daniela Nunes, acrescentando: “Como não há dados isentos, é por isso mesmo que existem instituições e organizações a fazer as suas estatísticas e as suas próprias investigações nesta matéria”.
Não é explicado por que meio é que os governos russos e ucranianos chegaram aos números que apresentam diariamente relativamente ao inimigo. Às vezes, pode ser apenas uma perceção da realidade; ou então, uma estimativa. Por trás, pode haver mesmo a intenção de deturpar os dados para meios propagandísticos, com a finalidade de prejudicar o moral do adversário e confortar a das próprias tropas.
Uma investigação publicada no blogue do think tank European Consortium for Political Research — assinado pelos analistas Benjamin J. Radford, Yaoyao Dai, Niklas Stoehr, Aaron Schein, Mya Fernandez e Hanif Sajid — expõe esta “manipulação dos números” por parte do Kremlin e do governo ucraniano e explica os motivos: “Lidar com a opinião pública, melhorar o moral das tropas e transmitir narrativas aos aliados e oponentes”. “Os dados sofrem vieses dependendo de quem é que está a reportar as perdas e que perdas é que estão a reportar.”
Colocando de lado a parte propagandística, existe um fator que pode complicar as tarefas de saber quantas pessoas morreram: as fontes que os governos usam para determinar a sua estimativa e que tipo de informações recebem do campo de batalha. Ou seja, o problema pode estar em como se contabiliza as baixas e que métodos são usados para isso.
O historiador Cédric Mas exemplifica que algumas tropas “podem pensar que mataram vinte soldados quando na realidade apenas foram mortos cinco”. “Geralmente, as tropas no terreno acreditam sempre — de boa-fé — que infligiram mais baixas do que realizaram.” Estas informações falsas são depois transmitidas e podem entrar nas contagens oficiais.
Por sua vez, Daniela Nunes salienta que algumas organizações e instituições independentes que fazem um levantamento no número de mortes já “chegaram a concluir, por exemplo, que há erros, em situações concretas, no valor de qualquer coisa como 50 mil homens contabilizados a mais por um dos lados do conflito”.
No artigo do blogue European Consortium for Political Research, os seis especialistas concluíram que as “fontes russas geralmente subvalorizam as suas próprias perdas e sobrevalorizam as perdas ucranianas”. “Por cada soldado russo morto, as fontes russas reportam apenas 0,3 das perdas. Pelo contrário, por cada soldado ucraniano morto, as fontes russas reportam 4,3 soldados ucranianos mortos.”
Em termos mais simples, isto significa que, por 100 soldados russos mortos no terreno, as fontes da Rússia apenas contabilizam 30. Já quanto aos ucranianos, por cada 100 soldados da Ucrânia mortos, os russos contabilizam 430.
Apesar de todas estas condicionantes e de haver um propósito de manipular os números para fins estratégicos, Daniela Nunes diz que é possível perceber algumas tendências, nomeadamente os “piores momentos” do conflito para cada uma das partes. “Se nós observarmos, dá para ver os piores momentos da guerra em termos de perdas quer para um lado, quer para o outro. Conseguimos tirar algumas conclusões.”
A investigadora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa sinaliza que é possível interpretar, através de alguns gráficos, que houve um aumento das baixas entre o final de 2022 e o início de 2023, o que corresponde às batalhas em volta da cidade de Bakhmut (ocupada por tropas russas apenas em maio do ano passado), “um dos piores momentos, em que o número de baixas é mais alto para ambos os lados”.
Assim sendo, os números apresentados pelos governos da Ucrânia e da Rússia podem ser, segundo Daniela Nunes, “contabilizados de forma errada, propositada, ou não propositada” — e que há ter essas condicionantes em atenção ao interpretá-los. Mas podem ajudar a delinear algumas tendências e perceber quais foram os “momentos negros” para os dois lados.
A versão dos EUA e dos jornais: as discrepâncias dos números
Desde que o conflito começou, têm sido publicadas algumas investigações — fora do círculo dos governos da Rússia e da Ucrânia — para apurar o número de mortos em território ucraniano. Os serviços de informações norte-americanos e britânicos têm igualmente as suas próprias estimativas, mas as diferenças e os interesses em publicá-las são vários.
Relativamente aos Estados Unidos e ao Reino Unido, os dois países revelaram o número de baixas russas com alguma regularidade, mas raramente o fazem com o número de feridos e mortos entre as tropas de Kiev. O motivo é simples: Washington e Londres estão abertamente ao lado da Ucrânia, prometendo defender o país até “quando for necessário”. Não têm por isso, intenções de prejudicar o moral dos ucranianos.
O jornal New York Times, citando várias fontes do governo norte-americano, quebrou esta lógica em agosto de 2023. Indicou que a Rússia terá sofrido 300 mil baixas, incluindo 120 mil mortos e 180 mil feridos. Por sua vez, a Ucrânia perdera 190 mil homens, entre os quais 70 mil mortos e 120 mil feridos em combate. O diário recorda, não obstante, que estes números tem de ser analisados tendo em conta o número de forças no terreno, sendo que houve mais soldados russos a combater na Ucrânia.
As versões são contraditórias, sugere o mesmo jornal. Há dirigentes norte-americanos que acreditavam, na altura, que tinham morrido menos de 70 mil tropas ucranianas no terreno. Por questões estratégias, os serviços de informações dos Estados Unidos, reforça o New York Times, perderam muito mais tempo a perceber as baixas russas do que propriamente as da Ucrânia, de quem são aliados.
Mais recentemente, no início de julho, a revista The Economist calculou, segundo documentos confidenciais resultantes de uma fuga de informações de dentro do Departamento da Defesa, que a Rússia sofreu entre 462 mil a 728 mil baixas até meio de junho. Estes dados são bastante idênticos àqueles divulgados por fontes francesas e britânicas por essa altura.
Além dos ocidentais, os meios de comunicação sociais russos, praticamente todos independentes e ligados à oposição, também se têm empenhado em divulgar os números das baixas russas. Um trabalho conjunto entre a BBC russa, o Meduza e a Mediazone conseguiu identificar 61.830 vítimas mortais da Rússia, através de publicações nas redes sociais, jornais locais e fontes governamentais.
Uma das jornalistas que participou nesta investigação, Olga Ivshina, realçou, na sua conta pessoal do X (antigo Twitter), que esta estimativa é “conservadora” e é baseada apenas em fontes públicas. Para além disso, aquelas vítimas mortais são russas, não se incluindo soldados com nacionalidade ucraniana que lutam ao lado das tropas de Moscovo, principalmente aqueles que pertencem às milícias da autoproclamada República Popular de Donetsk e à da autoproclamada República Popular de Lugansk.
1. How many mil personnel did Russia loose during its invasion into Ukraine? I keep getting this question, because BBC and Mediazona keeps building name by name list of KIA. Here are our figures, analysis and math behind them (thread) pic.twitter.com/lmawAun5Rb
— Olga Ivshina (@oivshina) August 12, 2024
Caso se junte as baixas dessas milícias de Lugansk e Donetsk — forças importante no terreno —, o número de mortos sobe para os 139 mil. A investigação da BBC, da Mediazone e da Meduza também não tem em consideração o número de vítimas mortais entre os mercenários do grupo paramilitar Wagner (19.547), que estiveram bastante empenhados na conquista de Bakhmut durante meses.
Do lado ucraniano, é mais difícil haver este tipo de contagem. Apenas Sergei Shoigu adiantou as 440 mil baixas, mas mais nenhum dirigente russo divulgou dados do género mais recentemente. A imprensa da Ucrânia também não tem feito levantamentos do género. Existe, ainda assim, o projeto UALosses que contabiliza, também através de fontes de domínio público e sem qualquer interferência do governo, o número de vítimas mortais ucranianas — até ao momento, foram registados ali mais de 57 mil mortos.
Esconder o número de baixas sofridas pelas forças armadas durante uma guerra é fundamental para o sucesso das tropas no terreno, ao passo que expor as falhas do inimigo faz parte da mesma lógica. “Isto é uma questão de estratégia, é uma questão de jogar com o inimigo e é uma questão de enganar o inimigo”, vinca Daniela Nunes. Na era da globalização e das redes sociais, a tarefa de contar os mortos durante um conflito (ou ter acesso a dados confidenciais) até se pode ter tornado um pouco mais acessível. Continua, ainda assim, a ser uma tarefa hercúlea e influenciada por inúmeras condicionantes.