Com “muita esperança” e “muito entusiasmo”. Foi assim que, nas vésperas da entrega do Orçamento do Estado e na reta final das negociações, António Costa apareceu no debate bimestral no Parlamento (o primeiro desde o fim dos debates quinzenais). Muito cúmplice com o PCP — com quem até protagonizou um episódio em que João Oliveira completou a frase do primeiro-ministro na resposta ao CDS — do que com o BE, mas ainda assim apostado em ter um orçamento aprovado daqui a uns dias na Assembleia da República. Ao PCP piscou o olho com a caducidade temporária da contratação coletiva, ao BE lembrou a prestação social que está a ser criada para não deixar ninguém de fora.
Num debate longo, de mais de três horas, em que até houve tempo para falar de bicicletas de Águeda, quase todos os partidos levavam na manga o tema da não recondução do presidente do Tribunal de Contas — curiosamente só o PSD e o PCP é que pouparam o primeiro-ministro a essa questão. Também Costa tinha a resposta na ponta da língua, numa estratégia clara que já tinha sido ensaiada na véspera em declarações aos jornalistas: o que estava acordado com o Presidente da República, que é quem nomeia, era que, à semelhança do que aconteceu com a não-recondução de Joana Marques Vidal na Procuradoria Geral da República, os titulares de cargos de natureza judicial devem ter limitação de um mandato por motivos de independência face ao poder político. Ou seja, Costa volta a usar o escudo Marcelo para se defender.
Tribunal de Contas. O novo mantra de Costa tem a benção de Marcelo e Rio
A troca no topo do Tribunal de Contas, as alterações ao Código de Contratação Pública e tudo isto a meses de chegarem fundos europeus. O caldo preparado para uma tarde de críticas parlamentares ao primeiro-ministro e assim foi. Mas não começou no PSD, o primeiro a intervir nestes novos debates bimestrais com o primeiro-ministro, já que também Rui Rio foi parte dessa mudança de cadeiras. Catarina Martins foi a primeira a falar no assunto para condenar o processo de decisão.
A “clareza tinha ajudado em todo este processo” disse lamentando que a escolha do juiz conselheiro José Tavares,“não tenha podido ser mais isenta de polémica”, atirou a líder do Bloco. E António Costa, já lá vamos, até porque a resposta pode ser dada de uma vez, foi sempre a mesma. Também no PAN, a deputada Inês Sousa Real apertou com o primeiro-ministro nesta matéria: “Foi tudo tratado nos bastidores do bloco central com a conivência do Presidente da República”. E depois o CDS, com Telmo Correia a dizer que “quem faz trabalho sério e útil não é reconduzido. Se critica o PS leva um par de patins e vai para casa”. E, por fim, André Ventura, do Chega, a dizer que este mesmo primeiro-ministro já reconduziu a inspetora geral da administração interna em 2018, que estava em funções desde 2012, e aí “não o vi criticar o critério, só critica quando lhe convém”.
E isto porque o argumento de António Costa para justificar a substituição do presidente do Tribunal de Contas nesta altura é com a necessidade de renovação dos mandatos na área da Justiça. Aí está o novo mantra de Costa, cozinhado com Marcelo Rebelo de Sousa e com Rui Rio: as mudanças no topo dos cargos de natureza judicial são feitas em nome da renovação dessas lideranças — como aconteceu com a procuradora-geral da República. E daqui o primeiro-ministro não saiu, repetiu-o “à enésima” vez, como disse a dada altura virado para o CDS. Não há outra razão para esta substituição nesta altura, garantiu.
Quanto às mudanças das regras para a contratação pública, Costa garantiu que as quer fazer através da Assembleia da República e não por decreto, para que o processo seja claro e participado, para contornar as críticas sobre a mudança de regras para beneficiar o Governo na aplicação dos fundos europeus. Aliás, até acabou por explicar ao PCP o atraso na execução do investimento público com estas mesmas regras de controlo dos contratos públicos: “Nós bem que podemos orçamentar mas enquanto tivermos este quadro legal em matéria de contratação vai ser muito difícil cumprir o aumento do investimento público”.
PCP e BE. Enquanto houver estrada para andar… Ainda há?
Era a dúvida do Orçamento do Estado para 2021, mas tudo parece indicar que o acordo está no bom caminho. Se na anterior legislatura, de papel passado, as negociações eram exigentes mas era certo que no final os parceiros iriam aprovar os Orçamentos, agora a tensão é real. O Bloco de Esquerda tem insistido que só viabiliza se o governo atender às quatro reivindicações que os bloquistas traçaram a linha vermelha, e o PCP, que parecia afastado depois de ter chumbado o Suplementar e ter adiado uma primeira reunião com Costa, fazendo-se de difícil, parece cada vez mais cúmplice.
Prova disso foi um episódio caricato que aconteceu já debate ia longo. António Costa queria responder a Cecília Meireles, do CDS, mas faltava-lhe a palavra certa. “Tem de concordar que quando estamos a falar da maior crise dos últimos tempos, é um exemplo de….enfim”. “…de falta de imaginação”, diria o líder parlamentar comunista João Oliveira a partir da bancada dos deputados. Nem mais. “Ora aqui está um bom exemplo de cooperação, juntos vamos longe”, disse Costa.
O “juntos vamos longe”, dito entre sorrisos, ficaria para a história. É que, antes, na troca de argumentos com Jerónimo de Sousa, já Costa se tinha desdobrado em juras de amor com o PCP afirmando que “entusiasmo” não lhe faltava para aprovar o OE com os comunistas. “Esteja tranquilo, entusiasmo não me falta, não sei é se conseguimos chegar onde a nossa ambição (que penso que seja conjunta) nos deseja levar”, começou por dizer. Para a seguir se mostrar confiante de que ainda há muita estrada para andar, citando Jorge Palma. “Iremos prosseguir no passo seguro dos últimos 5 anos, sem recuar, e sem ficar a marcar passo, mas sem dar um passo maior do que a perna. Vamos avançar com a convicção de que iremos continuar a caminhar, enquanto houver estrada para andar”. Para já, há pelo menos uma moratória para a suspensão da caducidade da contratação coletiva — que Costa acena para PCP ver. Resta saber até onde irá a estrada, e quando vai acabar.
Ao Bloco de Esquerda, menos romântico e menos sorridente, António Costa acenou com uma nova prestação social não contributiva para trabalhadores informais e que ficaram desprotegidos com a crise. “Tenho a esperança de que no OE 2021 consigamos a aprovar uma proposta — que temos vindo a trabalhar ‘também’ com o BE — com vista a uma nova prestação social para que ninguém fique de fora e consiga sustentar-se e sustentar os seus. Tenho muita esperança de que o OE 2021 venha a ser aprovado e que estas prioridades sejam cumpridas”, disse Costa. Uma negociação que está a ser feita ‘também’ com o BE. Ou seja, não só com o BE.
Rio ignora tema quente e agarra-se à saúde
Rui Rio fez parte da mudança no Tribunal de Contas e, mesmo tendo uma coleção de debates e intervenções públicas com alertas veementes sobre o potencial crescimento da corrupção com a chegada de fundos avultados de Bruxelas, neste debate optou por falar de outro tema. Um tema que, disse, é o “mais importante” de todos: a taxa de mortalidade por falta de assistência a doentes não-Covid.
Munido dos números, foi à volta disso que girou toda a intervenção do PSD no debate com Costa — tanto na intervenção de Rio como na intervenção de Ricardo Batista Leite –, que se centrou na ideia de que a falta de assistência é uma “autêntica condenação à morte”, com Rio a dar o exemplo dos doentes oncológicos que chegam ao médicos já numa fase mais avançada porque não tiveram tratamento “a tempo e horas”. A ministra da Saúde acabaria por admitir que todos os países tiveram de parar a “atividade assistencial” no início da pandemia, sendo que Portugal reforçou recursos ao longo dos últimos meses “sem agendas escondidas” ou “agendas ocultas”, disse.
O CDS, pelo contrário, pegou no tema da não-recondução do presidente do Tribunal de Contas, e o mesmo fez o Chega de André Ventura. Tanto que António Costa já ironizava com o facto de todos se desdobrarem em elogios a um nome que, há quatro anos, foi proposto pelo governo de Costa e nomeado pelo Presidente da República Marcelo. Os mesmos que agora não o reconduzem e escolhem outro para o lugar.
3h, duas rondas, vários ministros e até bicicletas de Águeda
Foram três horas, duas rondas de pergunta-resposta, e vários ministros a intervir. Com o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, é assim que os debates vão passar a ser no Parlamento, de dois em dois meses. António Costa respondeu a todos os partidos na primeira ronda, mas, na segunda já foi deixando outras áreas aos seus ministros — Siza Vieira, Marta Temido, João Matos Fernandes e Ana Mendes Godinho. Mas só em casos pontuais, inclusive quando era para responder ao PS. Porque sempre que era interpelado pelos parceiros (BE, PCP, PAN, PEV) era Costa quem respondia. A Rui Rio igual decoro: foi Costa quem respondeu sempre.
Certo é que, nos corredores e dentro do hemiciclo, várias eram as vozes que criticavam a mudança do formato — passou-se de um debate curto e regular, para um debate extenso e mais esporádico. João Cotrim Figueiredo lamentou o facto de o primeiro-ministro só voltar dali a dois meses sendo que nas próximas 24 “horitas” vai aprovar o Orçamento do Estado em Conselho de Ministros, e Telmo Correia ironizou com o facto de o primeiro-ministro dizer que eram muitos os temas que levava a debate, sendo que se os debates fossem quinzenais os temas seriam mais limitados no tempo.
Em três horas, houve até tempo para Porfírio Silva, do PS, chamar a atenção para um projeto de inovação relacionado com bicicletas que está a ser visto como um exemplo de “sucesso” em Águeda, distrito de Aveiro. O ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, atestou o exemplo para dar seguimento ao discurso da inovação e do que se está a passar “um pouco por toda a indústria”. Eram 17h17, ia o debate a pouco mais de meio. Há um novo normal nos debates com o primeiro-ministro, que já nem são só com o primeiro-ministro.