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“O facto de 11 jogadores argentinos terem vencido 11 jogadores holandeses não quer dizer que tenhamos vencido a Holanda. Aliás, para quê vencer a Holanda? Por mim, não quero vencer Erasmo”. Esta frase de Jorge Luís Borges é reveladora da profunda incompreensão perante o fenómeno futebolístico manifestado pelos ratos de biblioteca, pelos caixas-de-óculos, pelos eggheads e por todos aqueles que, em miúdos, ficavam sempre para o fim quando se escolhiam equipas no futebol de rua.
A incompreensão nem sempre nasce do desprezo – alguns destes infelizes até fizeram um esforço genuíno para “gostar de futebol”, como é o caso de Umberto Eco (outra criatura irremediavelmente livresca), que conta, no artigo “O Mundial e as suas pompas”, publicado no L’Espresso de 19 de Junho de 1978, que “na tentativa de me sentir como os outros (como um pequeno homossexual aterrorizado que repita a si próprio que ‘tem de’ gostar de raparigas), pedi várias vezes ao meu pai, equilibrado mas constante adepto, que me levasse consigo a ver o desafio”. Todavia, em vez de a frequentação do estádio o ter levado a apaixonar-se pelo futebol, Eco teve uma revelação de natureza bem diversa: “um dia, quando observava com distanciação os insensatos movimentos lá em baixo no campo, senti como se o sol alto do meio-dia envolvesse com uma luz enregeladora homens e coisas, como se diante dos meus olhos se desenrolasse uma representação cósmica sem sentido […]. Pela primeira vez duvidei da existência de Deus e considerei que o mundo era uma ficção sem objectivo”.
É claro que Eco estava enganado: Deus existe e veste uma camisola de Portugal com o número 7 nas costas e o objectivo é ganhar, mesmo que seja graças a um penalty resultante de uma falta simulada, como se explica nesta 2.ª parte que completa a primeira, e que tenta dar cumprimento ao desígnio estabelecido por José Mourinho quando, em 2009, recebeu o doutoramento honoris causa pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa: “Devemos libertar o jogo e o treino de um determinismo mecanicista, de um construtivismo cartesiano, de uma fascinação positivista e de um biologismo energicista. O futebol deve ser estudado como objecto complexo e sistémico”. As linhas que se seguem estão garantidamente isentas de fascinação positivista.
Como se faz um adepto?
Em 1935, o zoólogo e pioneiro da etologia Konrad Lorenz fez uma experiência com gansos: dividiu os ovos de uma ninhada, mantendo metade com a mãe e a outra consigo. Quando os ovos eclodiram, Lorenz imitou o grasnar da mãe-gansa e os pequenos gansos de imediato o seguiram, adoptando-o como figura parental; os outros pequenos gansos seguiram a sua verdadeira mãe. Lorenz voltou a misturar os dois grupos dentro de uma caixa fechada e quando os pequenos gansos foram libertados dirigiram-se automaticamente para as respectivas “mães. Esta e outras experiências permitiram a Lorenz concluir que, durante um período de 12 a 17 horas após a eclosão, os pequenos gansos tendem a vincular-se ao primeiro objecto em movimento que lhes surgir – um fenómeno designado por “imprinting”.
A vinculação a um clube desportivo faz-se na infância e tende a ser transmitida de pais para filhos, embora também haja quem – sobretudo no início da adolescência – escolha um clube rival do pai (ou pais) para se afirmar contra ele e a influência de amigos ou de um familiar particularmente entusiásticos também possam ser decisivas. Outros sentir-se-ão identificados com um jogador em particular, ou serão seduzidos pelas cores do equipamento ou pelo hino ou pelos cânticos das claques.
O processo de “imprinting” clubístico é obscuro, irracional e vitalício, apesar de o indivíduo e o clube mudarem substancialmente durante esse período. Um clube pode desiludir repetidamente um adepto com jogos medíocres, descer de divisão, ver-se enredado em escândalos de corrupção e viciação de resultados ou passar a ser dirigido por um tiranete megalómano, por um vigarista oleoso ou por um mentecapto (ou por uma combinação dos três), mas o “imprinting” inicial raramente se altera.
Os futebolólogos têm uma explicação para esta fidelidade incondicional: é a “mística do clube”. Os jogadores, o treinador e restante equipa técnica e os dirigentes podem ser integralmente renovados a cada dois anos (no mundo globalizado e acelerado em que vivemos, a taxa de turnover tende a ser cada vez mais rápida) e as tácticas podem mudar ainda com maior frequência, mas a “mística do clube” permanece. Apesar dos muitos milhares de horas de antevisão, análise e comentário sobre futebol transmitidas anualmente pelas televisões, nunca ninguém soube explicar em que consiste essa “mística”, mas nenhum adepto duvida de que existe um “jogar à Benfica” ou “jogar à Porto”.
Mas, no fim de contas, ao adepto pouco importa o estilo ou a qualidade do jogo do “seu” clube de futebol, pois a única coisa que conta para ele é a vitória. O adepto não quer saber de “jogarbonito”, de fair play, ou de justiça, quer simplesmente que a “sua” equipa ganhe, se necessário com um penalty inventado, um golo marcado com a mão ou em flagrante fora de jogo, um puxão discreto que impede o jogador adversário de chegar à bola, uma rasteira traiçoeira que faz o mais talentoso jogador adversário abandonar o campo em maca, a simulação aparatosa de uma falta que leva à expulsão de um jogador adversário inocente (ver Dos ovos das galinhas à mão de Maradona: 82 reflexões sobre ética).
Toda a pseudo-sofisticação das discussões dos esquemas tácticos e das análises estatísticas, toda a prosápia que reveste as análises minuciosas ao desempenho dos jogadores e às decisões do treinador, todas as divagações pretensiosas que proclamam que “o futebol é uma arte” e elevam golos ao estatuto de “obras-primas” revelam a sua vanidade e hipocrisia na hora da verdade: qualquer adepto preferirá ver a sua equipa marcar um golo sumamente trapalhão (ou até desonesto), do que ver a equipa adversária rubricar “uma obra-prima”.
O amor à camisola e a força anímica
Em tempos remotos, era frequente um jogador de futebol fazer boa parte da sua carreira no mesmo clube, mas hoje jogadores e treinadores saltitam com ligeireza entre equipas como borboletas de flor em flor, numa coreografia mediada por uma rede de agentes desportivos sempre atenta às melhores oportunidades num mercado global para dentro do qual jorra cada vez mais dinheiro. É uma fonte de alegrias para os media, já que os rumores, as intrigas, as “traições”, as reviravoltas inesperadas e os detalhes sórdidos que rodeiam esta dança incessante proporcionam assunto para os períodos em que não há jogos e, todavia, os jornais desportivos necessitam de manter a sua periodicidade diária.
Os jogadores e treinadores poderiam assumir-se meramente como profissionais que, como acontece em qualquer ramo de actividade, buscam a melhor remuneração para o seu talento, mas como o futebol continua, nas aparências, preso à “mística do clube”, é preciso fingir que se joga “por amor à camisola” e assim, quando são “apresentados aos sócios” ou aos media, os jogadores recém-recrutados sentem-se obrigados a proferir aleivosias como “este é o clube do meu coração”, “desde que jogava nos iniciados que sempre sonhei vestir esta camisola”, mesmo que o jogador em questão provenha da Argentina ou da Costa do Marfim e nunca tenha ouvido falar do Beira Mar (ou da cidade de Aveiro) até que o seu agente lhe acenou com uma proposta tentadora feita por esse clube.
O amor incondicional do jogador ao clube durará até que este decida despedi-lo por não ter produzido o rendimento esperado ou até que outro clube lhe faça proposta financeiramente mais vantajosa. Os clubes tentam não perder os seus melhores “activos” (uma deliciosa expressão, importada do economês para o futebolês), blindando-os com “cláusulas de rescisão” que foram subindo até valores astronómicos – 1000 milhões de euros no caso de Cristiano Ronaldo e Karim Benzema. São estas fabulosas cláusulas de rescisão, não o “amor à camisola”, que impedem que o esvoaçar das borboletas seja ainda mais frenético.
Os jogadores profissionais de futebol têm, para lá dos salários milionários, prémios caso marquem golos ou a equipa vença jogos, taças e campeonatos – num país ainda “a sair da austeridade”, a Federação Portuguesa de Futebol atribuiu 250.000 euros de prémio (para lá do salário diário) a cada um dos jogadores que levou a selecção nacional à vitória no Campeonato da Europa de 2016. Os mais célebres conseguem obter rendimentos não menos chorudos ao emprestarem a sua imagem para campanhas publicitárias e alguns ainda dilatam o seu pecúlio comercializando as suas próprias linhas de perfumes, cuecas ou hotéis.
Perante estes rendimentos opulentos e perante a exibição constante de sinais exteriores de riqueza – mansões, jactos privados, carros de luxo, festas de arromba – é frequente (senão mesmo inevitável) que, quando os adeptos ficam exasperados por a sua equipa não lograr os resultados ambicionados, acusem os jogadores de não se empenharem a fundo e de não merecerem as remunerações e mordomias que auferem. Outra acusação frequente é a de os jogadores não se aplicarem na selecção nacional com o mesmo ardor que demonstram nos clubes.
A questão da motivação dos jogadores, da “força anímica”, da “superação dos limites” e do “saber sofrer” tem sido assunto de aceso debate e profundíssimas reflexões e fez entrar em cena novos actores no teatro do futebol, o “motivational coach”, o especialista em “psicologia da performance”. Até os mais distraídos terão dado pela aparição destes gurus do ludopédio quando Éder, no final do jogo em que marcou o golo providencial que deu a vitória a Portugal no Campeonato da Europa de 2016, declarou: “Foi um golo trabalhado desde o primeiro minuto do Europeu. Quero dedicar o golo à Susana Torres, a minha coach de alta performance”. É de realçar a preparação “desde o primeiro minuto do Europeu”, como se aquele golo fosse o resultado, não de uma conjugação pontual de acaso, perícia e aptidão física, mas o desfecho inevitável de uma longa sequência de eventos laboriosamente planeados por Susana Torres e em que Éder tivera mais o papel de um monge zen do que de um jogador de futebol.
Em tempos, os jogadores e treinadores, naturalmente supersticiosos, dado o enorme peso que o factor acaso tem no desfecho dos jogos, confiavam nas “chuteiras da sorte”, na medalha com uma santinha da sua devoção ou nas orações dirigidas a Nossa Senhora de Caravaggio, ou consultavam um bruxo na véspera dos jogos decisivos. Hoje têm coaches de alta performance. No mundo do futebol corre cada vez mais dinheiro, pelo que é natural que se vão abrindo novas oportunidades de negócio para quem seja astuto e tenha a necessária prosápia.
Deixar a pele em campo
Em tempos pré-colombianos, estava difundido pela América Central um jogo de equipa com bola que recebia diferentes nomes consoante os povos que o praticavam – “ollamaliztli” ou “tlaxtli” entre os aztecas, “pitz” ou “pokolpok” entre os maias e que é hoje designado pela abrangente e anódina expressão “jogo de bola mesoamericano” ou, mais informalmente, por “pok ta pok”, a partir da designação maia.
O jogo assumiu diversas formas consoante as regiões e as épocas (os registos mais antigos datam de 1400 a.C.) e na versão mais tardia (e fisicamente mais exigente) era jogado com bolas de borracha maciças, pesando 1 a 3 Kg, que só podiam ser tocadas com as ancas, coxas e braços; era interdito agarrar ou pontapear a bola, embora houvesse versões que permitiam o uso dos pés e outras que previam o uso de bastões ou raquetas.
O objectivo era levar a bola de um extremo ao outro do campo ou, na versão tardia do jogo, em fazer a bola atravessar um aro de pedra disposto verticalmente (a 6 metros de altura, no “estádio” de Chichen Itzá). A “borracha” das bolas provinha, não do látex da Hevea brasiliensis, como depois se tornaria comum, mas do látex de uma árvore da América Central, a Castilla elastica (ou árvore-da-borracha-do-Panamá)
O pokolpok podia ser jogado informalmente, com intuitos meramente recreativos, ocasiões em que também podiam participar mulheres e crianças, mas podia também assumir uma forte componente ritual, ocasiões em que era disputado apenas por homens, envergando roupas e equipamentos especiais.
[Reconstituição moderna de um jogo de pokolpok]
Nos jogos rituais, o trajecto da bola representava o trajecto no céu do Sol, da Lua e de Vénus e os vencedores eram vistos como tendo sido favorecidos pelos deuses. Entre os maias, os baixos-relevos que ornavam os “estádio” dão testemunho da introdução de novas “regras” nos jogos rituais a partir dos séculos IX e X: os jogadores da equipa derrotada eram sacrificados, sendo o “carrasco” o capitão da equipa vencedora. Entre os aztecas também parece ter entrado em vigor uma prática similar: o sangue dos derrotados era apresentado como oferenda aos deuses e os seus crânios eram empilhados ao lado do campo. A decapitação é um motivo recorrente nas imagens associadas ao pokolpok na arte maia e alguns peritos até sugerem que as cabeças cortadas poderiam ter sido usadas como bolas – uma tradição que alguns dirigentes desportivos do nosso tempo parecem lamentar ter sido perdida.
É certo que tal uso se revelaria prejudicial para os “activos” do clube, mas é difícil conceber maior motivação para que um jogador dê tudo por tudo em campo.
Conspiração em Kiev
Sendo o mundo da conversa futebolística um mundo dominado pelas emoções e em que a razão desempenha papel residual, é natural que os adeptos estejam disponíveis para acolher as mais descabeladas teorias.
Quando da final da Liga dos Campeões em Kiev, a 26 de Maio de 2018, entre o Liverpool e o Real Madrid, correu, na véspera, o rumor entre os adeptos do Liverpool de que o governo ucraniano não estava autorizar voos provenientes de Liverpool, cedendo a pressões do governo russo, por este pretender prejudicar a Grã-Bretanha, país com o qual as relações tinham azedado após o envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal em território britânico, que levou a algumas represálias diplomáticas – essencialmente simbólicas – entre Grã-Bretanha e Rússia.
A ideia de que 1000 adeptos a mais ou a menos num estádio que, para aquele encontro, tinha a lotação fixada em 40.700 (com 17.000 bilhetes atribuídos aos adeptos de cada um dos finalistas), iria influir decisivamente no resultado de um jogo é delirante e só tem rival na ideia de que o maquiavelismo de Vladimir Putin não teria encontrado forma mais eficaz de infligir um golpe à Grã-Bretanha do que favorecendo (muito marginalmente) o Real Madrid face ao Liverpool, mas compreende-se que, para quem tem o futebol por horizonte mental, a geopolítica europeia se resuma à Liga dos Campeões e à Liga Europa. Já a ideia de que a Ucrânia, que viu a Crimeia ser “anexada” pela Rússia e tem os seus territórios orientais sob o controlo de milícias rebeldes armadas, financiadas e treinadas pela Rússia, estaria inclinada a fazer favores à Rússia, só poderia florescer em espíritos capazes de recitar de cor o plantel do Liverpool nas três últimas épocas mas incapazes de localizar a Crimeia num mapa.
Como a maior parte das teorias conspirativas, esta tinha na sua origem um grão de verdade: alguns voos charter entre Liverpool e Kiev transportando adeptos britânicos tinham, com efeito, sido cancelados. Mas o cancelamento não fora determinado pelas autoridades aeroportuárias (e muito menos pelo governo ucraniano) mas sim pelo facto de um dos aviões não ter em dia a licença de voo, por problemas operacionais de uma das companhias e por indisponibilidade de “landing slots” (espaço temporal necessário à aterragem de um avião no plano de operações de um aeroporto) em Kiev para as horas previstas (devido ao afluxo excepcional de voos charter nas datas próximas do jogo). Na verdade, as autoridades de Kiev fizeram os possíveis, em conjunto com o mayor de Liverpool, para solucionar a questão dos voos cancelados e praticamente todos os adeptos afectados pelos cancelamentos conseguiram voar para Kiev em voos de outras companhias. E quem acabou por ser mais prejudicado pela indisponibilidade de lugares (ou pela disponibilidade a preços exorbitantes) em voos para Kiev foram os adeptos do Real Madrid, que acabaram por devolver 2.200 dos bilhetes que estavam atribuídos ao clube espanhol para a final.
A falta de 2200 adeptos não impediu o Real Madrid de ganhar por 3-1, com a ajuda de duas falhas clamorosas de Loris Karius, guarda-redes alemão do Liverpool, que se tornaria no alvo da fúria dos adeptos, que chegaram a fazer ameaças de morte ao jogador e à sua família, através da Internet.
Os especialistas britânicos em geopolítica futebolística tinham estado a olhar para o inimigo errado: afinal de contas, nas duas guerras mundiais do século XX, a Rússia (ou a URSS) lutou ao lado da Grã-Bretanha contra a Alemanha. É claro que os dois frangos de Karius foram um primeiro passo de um rebuscado plano alemão para erguer o IV Reich.
[Dois momentos cruciais da actuação de Loris Karius na final da Liga dos Campeões de 2018]
Bairrismo na era da globalização
A teoria conspirativa em torno do final da Liga dos Campeões em Kiev é absolutamente irrelevante mas é sintomática da maneira de pensar prevalecente entre os adeptos. Do ingénuo ponto de vista destes, que entendem o futebol em termos emocionais e bairristas – “nós, as gentes de Liverpool, apoiamos os rapazes da terra contra os de Madrid” – e presumem que as motivações e os interesses do clube coincidem com os seus. Terá sido assim nos primórdios do futebol, na viragem dos séculos XIX-XX, mas o futebol de hoje é uma realidade completamente diversa: nas principais ligas europeias o único vínculo que subsiste entre os clubes e as comunidade locais, que usualmente lhes dão nome, é o lugar onde os estádios se localizam; tudo o mais é flutuante e apátrida e regido por interesses económicos, não por afectos.
Os “rapazes da terra” vêm de lugares distantes, tal como os treinadores, e são recrutados no mercado global, de acordo com as leis da oferta e da procura e as conveniências dos agentes desportivos, e a propriedade dos clubes e a sua gestão passou da massa associativa para os accionistas e para os milionários internacionais. Quem também tem uma palavra a dizer nos destinos do clube são os patrocinadores, cujo poder vai ao ponto de substituir o nome do estádio – que deveria ser um dos últimos redutos da suposta “identidade” do clube – pelo seu.
A febre do futebol torna o adepto cego a esta fria realidade, pelo que continua a sentir um forte apego emocional ao “seu” clube e a imaginar que ele e o clube comungam dos mesmos valores e objectivos, uma ilusão de identidade que é sustentada pelos media. Em Portugal, é usual ouvir (ou ler) os media referirem-se ao Sporting de Braga, como “os minhotos”, quando é provável que não haja no plantel e equipa técnica do Sporting de Braga alguém nascido no Minho ou sequer com vínculo familiar ou emocional ao Minho, e que os únicos minhotos nas fileiras do clube sejam o roupeiro e os jardineiros.
Os interesses do Liverpool não são os dos seus adeptos, são os do seu proprietário, o milionário americano John W. Henry, através da empresa Fenway Sports, que é também proprietária da equipa de baseball Boston Red Sox. É uma situação usual na Premier League inglesa (e começa a sê-lo também nas restantes), cujos clubes são propriedade, integral ou partilhada, de milionários ou conglomerados empresariais britânicos, americanos (Arsenal, Bournemouth, Liverpool, Manchester United, Swansea), russos (Arsenal, Chelsea e Bournemouth), tailandeses (Leicester), chineses (Southampton e West Bromwich Albion), italianos (Watford) ou das petromonarquias do Golfo (Manchester City).
Muitos clubes “históricos” da Inglaterra e da Europa continental têm vindo a ser adquiridos por dinheiro vindo da Rússia, da China e das petromonarquias do Golfo, três países/regiões que não prezam a democracia nem os direitos humanos e onde ninguém pode prosperar sem a permissão ou a conivência do Estado. Se já Vespasiano proclamara, no século I a.C. que o dinheiro não tem cheiro, o meio do futebol de alta competição é a mais perfeita realização do capitalismo globalizado do século XXI: é inodoro, asséptico, apátrida e sem rosto nem escrúpulos e os seus fluxos financeiros são filtrados, purificados e branqueados através de uma complexa rede de sociedades offshore e holdings espalhadas pelo mundo. Que outra coisa poderia esperar-se do único sector económico em que os operários – os jogadores – são tão diligentes e astutos quanto os gestores e CEOs na busca de estratagemas para pagar o mínimo de impostos possível sobre os seus pingues rendimentos, recorrendo a empresas de fachada e paraísos fiscais?
O futebol-espectáculo do século XXI está na confluência de dois mundos: continua preso à sua natureza tribal, que se manifesta sob a forma de bairrismo e de nacionalismo primário, pela mundividência do “nós contra eles”, pelo discurso de ódio contra quem é visto ou imaginado como diferente, pelos insultos entre dirigentes e pelos confrontos entre claques (que são, na Europa de hoje, a “instituição” mais próxima das organizações para-militares que proliferaram nas décadas de 1920-1930); e, ao mesmo tempo, foi subjugado pela lógica cínica e calculista do capitalismo globalizado, em que tudo é mercantilizável e transitório e não há nenhuma fidelidade ou compromisso que não possa ser comprado.