Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
A pandemia de Covid-19 e o lockdown tiveram um forte embate sobre as famílias e empresas portuguesas. Qual foi o impacto sobre os rendimentos, poupanças e endividamento? Quais os efeitos que as medidas de mitigação do Estado tiveram sobre o bem-estar das famílias e sobre a capacidade de resistência financeira das empresas?
Não existem até agora bons indicadores sobre a evolução da fragilidade financeira das famílias, apesar dos progressos feitos nos últimos anos pela Deco-Proteste e Banco de Portugal. Existem já, em diversos países, como nos EUA, vários centros de investigação que procuram seguir, ao longo do tempo, indicadores da saúde financeira de diversos estratos da população, em termos de amostras fixas longitudinais, com o fim de avaliarem o bem-estar financeiro das populações.
No domínio das empresas, o Banco de Portugal desenvolveu importante investigação para avaliar o risco de insolvência e falência das empresas que tem sido largamente usada pelo sistema financeiro para avaliar a probabilidade de falência das empresas, que é usada no scoring do crédito. Estas variáveis podem também ser usadas na análise da fragilidade das empresas na economia portuguesa.
Apesar destas limitações, podemos concluir que houve uma acentuada deterioração da vulnerabilidade dos agentes económicos privados provocada pelos sucessivos lockdowns da economia. Mas esta evolução negativa foi bastante heterogénea para os diferentes grupos de famílias e empresas. Por exemplo, foram as famílias de baixos rendimentos e independentes (empresários em nome individual) quem mais sofreu, e foram as micro e pequenas empresas sobretudo no setor do alojamento, restaurantes e hotéis, que registaram a maior deterioração da situação financeira.
Esta deterioração foi em parte compensada pelas medidas de ajuda às famílias e empresas de natureza fiscal e monetária. Porém, deixou cicatrizes profundas em muitos grupos de pessoas e empresas que terão dificuldade em recompor os níveis de rendimento e operacionais pré-pandemia. Esta situação será particularmente visível quando terminarem as moratórias e outros esquemas de auxílio do Estado. Quanto irão aumentar as falências de empresas? E as insolvências pessoais? Esta é uma questão difícil de responder ainda com algum grau de incerteza controlada, mas que as autoridades deveriam acompanhar com a maior atenção.
A situação das famílias portuguesas depois da pandemia
Segundo as últimas estimativas do Banco de Portugal, o rendimento disponível bruto das famílias cresceu 4,1% em 2019 e 1% em 2020, apesar da forte redução do PIB, em grande parte fruto das ajudas públicas. O rendimento disponível dos particulares beneficiou também do crescimento das remunerações (1,1%), não obstante a perda de emprego oficial (2%). Porém, a redução das horas trabalhadas (11%) e o lay-off temporário, que chegou a atingir 1 milhão de trabalhadores, terão causado um corte no rendimento disponível de 3%, que foi em parte compensado com ajudas do Estado de cerca de 4 mil milhões de euros, equivalente a 2,5% do rendimento disponível.
Por sua vez, a taxa de poupança dos particulares saltou de 7,1% em 2019 para 12,3% do rendimento disponível em 2020, que resultou de uma redução do consumo de 5% associado às restrições de mobilidade e da elevada incerteza. O aumento da liquidez associada à moratória aos empréstimos para habitação contribuiu para o acréscimo dos depósitos que cresceram 4% para atingir 137% do rendimento disponível.
O endividamento dos particulares cresceu apenas 1% no início de 2021 em relação a 2020, tendo a taxa de endividamento atingido cerca de 96% do rendimento disponível, próximo da média da UE. Em março de 2021, 13,8% dos empréstimos bancários às famílias beneficiavam de moratórias, correspondendo a cerca de 17 mil milhões de euros. A taxa de incumprimento no crédito à habitação era de apenas 2,3%, enquanto no crédito ao consumo era de 8,7%.
A taxa de desemprego (Gráfico 1), no sentido estrito, situava-se em finais de 2020 em 7,3%, próxima da média da UE, marginalmente acima da de 2019 (6,7%) e, no sentido alargado, em 14% contra 12,5% em 2019. Porém, esta taxa não reflete a situação real do emprego, devido aos esquemas de lay-off beneficiando cerca de 900 mil trabalhadores (25% do emprego por conta de outrem), que mantiveram os trabalhadores em casa sem serem despedidos. A não existência do lay-off teria levado a taxa de desemprego em sentido estrito a saltar pelo menos para o dobro.
Segundo o Eurostat, a pandemia levou a que cerca de 20 a 25% dos trabalhadores e independentes entrassem em regime de lay-off. Aliás, este número condiz com o que se verificou nos EUA (Gráfico 2), onde se optou por ajudar diretamente as famílias em vez das empresas, onde a taxa de desemprego ajustada atingiu cerca de 22,7%.
Porém, estes indicadores são insuficientes para medir o bem-estar das famílias. Existem vários projetos de investigação sobre as métricas da saúde financeira das famílias, como os projetos da Brookings, do Centro de Inovação de Serviços Financeiros que depois se tornou no Financial Health Network. Este projeto é particularmente importante devido à Ordem Executiva de Biden-Harris: Advancing Racial Equity and Support for Underserved Communities. Seria importante que Portugal e o Eurostat desenvolvessem projetos paralelos e seguindo metodologias semelhantes.
Segundo um inquérito do Banco de Portugal/ INE, a percentagem da população que revelava incapacidade para fazer face a uma despesa inesperada sem recorrer a um empréstimo era de 33% em 2017, face a 30% da área do euro. Note-se que a taxa de risco de pobreza era de 21,6% em 2019 em Portugal contra 20,8% na zona Euro.
Segundo o barómetro da Deco-Proteste de maio de 2021, a pandemia originou uma situação particularmente crítica para um quarto das famílias, que viu o seu rendimento decrescer em pelo menos 25 por cento. Estes agregados integram o patamar dos 63% (com dificuldades financeiras) e dos 6% (em situação crítica). A perda de emprego, a inatividade profissional e a redução salarial são as principais causas da quebra de rendimento originada pela crise pandémica. A região do Algarve, por causa do turismo, foi a mais afetada. Para fins de comparabilidade, note-se que estes conceitos financeiros não correspondem aos americanos, embora seja semelhante a taxa de famílias com uma situação “sem dificuldades” (cerca de 30%) — a vulnerabilidade é apreciada de diferentes formas.
Particularmente importante para o estudo da vulnerabilidade financeira é a evolução do preço das casas de habitação. Segundo os dados do Eurostat, os preços em Portugal subiram o dobro desde 2015 até 2020 em relação à zona Euro (Gráfico 3). É interessante que os preços continuaram a crescer durante a pandemia. Esta é certamente uma das variáveis a ter sob observação durante os próximos anos devido ao perigo de sobreaquecimento da economia.
A situação das empresas portuguesas
Qual a situação das empresas portuguesas após a pandemia? Para avaliarmos, temos que nos reportar à sua situação antes da pandemia e o impacto que esta teve nas empresas. Assim como é errado extrapolar da situação das empresas em 2020, pois o lockdown provocou uma forte redução das receitas e aumento dos prejuízos, também não podemos dizer que as empresas emergem da crise sem cicatrizes. Aliás, a Presidente do BCE, Christine Lagarde, chamava a atenção recentemente para esta questão: quais os danos permanentes que a pandemia causou às empresas e ao sistema produtivo, apesar dos subsídios aos lay-offs, as moratórias e os créditos com garantia do Estado, associadas ao Quantitative Easing do BCE.
Vejamos alguns indicadores da situação financeira das empresas antes de 2020. Um dos principais indicadores é o rácio da dívida sobre o capital, que dá uma ideia da capacidade financeira de enfrentar choques de mercado. O Gráfico 4 mostra o debt/equity ratio das empresas da UE, em que a dívida engloba os empréstimos e títulos da dívida. Como se pode observar, as empresas com menor rácio são as nórdicas, dos Bálticos e a Hungria, República Checa e Alemanha. Portugal tem um rácio acima da média da UE, mas não está entre os piores, ao contrário do que muitas vezes se afirma na comunicação social. Mais ainda, este rácio baixou de 1,15 para 0,75 entre 2011 e 2019 devido ao forte processo de desendividamento bancário. Todas as economias que entraram em crise durante a crise do euro tiveram processos semelhantes.
Outro indicador importante é o grau de autonomia financeira que mede a percentagem do balanço da empresa financiado por capitais próprios (Quadro 1). O grau de autonomia estava em 2019 ao nível mais alto desde 2008, tendo subido 6,7 pontos percentuais desde a crise em 2012. O grau mais elevado era das PMEs, que tinham aumentado o mesmo em 9,9 pontos percentuais. Por setores, os graus mais elevados eram da indústria e agricultura e o mais baixo da construção.
Também um indicador de stress financeiro mostra melhoria entre 2011 e 2019, com as microempresas as que revelam maiores dificuldades e sobretudo no comércio e outros serviços.
As políticas macroeconómicas criaram condições mais favoráveis do que seria expectável dada a envolvente económica resultante da pandemia. A diminuição dos capitais próprios das empresas é inferior ao que seria previsto dado o contexto económico. A estabilidade dos diferenciais de taxas de juro não reflete o aumento de risco de falência associado à maior alavancagem. O aumento do endividamento não se repercutiu de forma proporcional nas despesas com juros pagos pelas empresas não financeiras. A evolução dos capitais próprios e do crédito permitiu às empresas financiar níveis mais elevados de capital face àqueles que a queda na atividade económica faria prever, limitando o impacto sobre a produção e o emprego.
A rentabilidade dos capitais próprios (Quadro 3) mostra a recuperação entre 2012 e 2015, de -0,5 para 7,2%, e o retorno a uma situação normalizada entre 2018 e 2019, com as taxas do total das empresas em 7,2% em 2019. A taxa das grandes empresas que se situava em torno dos 11% em 2015-2018 baixou para 6,9% em 2019, enquanto as PMEs registavam 9,3% neste mesmo último ano. Já a taxa das microempresas se tem situado a níveis bastante inferiores (4,7% em 2019). A construção e os outros serviços são os setores de menor rentabilidade, em contraste com a indústria e comércio que em geral têm as taxas mais altas.
Em finais de 2019, e segundo o Banco de Portugal, os indicadores de risco (Gráfico 5) revelavam que as PMEs (em particular as microempresas) eram as empresas mais vulneráveis, e nos setores de alojamento e restauração, transportes e atividades imobiliárias. Com baixo risco destacavam-se as grandes empresas e as empresas exportadoras.
Não existem ainda dados da central de balanços do Banco de Portugal apurados para 2020, mas a avaliar pelos dados já publicados, o rácio do EBITDA sobre os ativos totais registou uma ligeira redução entre dezembro de 2019 (7,6%) e o mesmo período de 2010 (6,5%) para as empresas privadas, enquanto as públicas, dominadas pelos transportes, caiu de 4,9 para -4,6%.
Os estudos do Banco de Portugal mostram que o risco de falência está associado negativamente com a dimensão da empresa e com a idade da empresa, e também com diversos indicadores de rentabilidade como o cash flow, lucros e encargos financeiros, bem assim como a estrutura financeira da empresa (rácio de debt/equity).
O rendimento disponível bruto das empresas diminuiu fortemente em 2020 (11,4%). As medidas discricionárias de apoio ao setor corresponderam a 1,7% do rendimento nacional e a cerca de 15% do rendimento do setor, estando o maior peso associado aos subsídios às empresas – nomeadamente o layoff simplificado e o incentivo extraordinário à normalização – e à suspensão dos pagamentos por conta do IRC. A margem operacional das empresas reduziu-se 13,5%, com a quebra de atividade e a manutenção das remunerações, que representam a maior parcela de custos. Avaliando o choque como temporário, as empresas ajustaram o emprego de forma menos pronunciada, evitando custos de despedimento e posterior contratação.
Os empréstimos às empresas voltaram a acelerar em 2020, estando a subir 9,7% em dezembro deste ano, fruto das garantias públicas, e que beneficiavam sobretudo as micro e pequenas empresas (acréscimo de 14%) e no setor do alojamento e restauração (acréscimo de 24%), e que tem uma garantia até 90% do Estado. O crédito concedido desde o 2º trimestre de 2020 e que em grande parte beneficiou desta garantia atinge cerca de 10 mil milhões de euros, tendo mais de 40% sido concedido a empresas de elevado risco de crédito. Também segundo o Banco de Portugal, em dezembro de 2020, 33,6% dos empréstimos das sociedades não financeiras beneficiavam de moratórias de pagamento dos empréstimos, o que corresponde a cerca de 24 mil milhões de euros em março de 2021, com as PMEs a beneficiarem 84% do total.
A percentagem de empresas com capitais próprios negativos atingiu máximos próximos de 30% durante a crise da dívida soberana, tendo vindo a diminuir desde 2016, tendo diminuído para 25,5% em 2019 (a taxa era de 29% para as micro, 9% pequenas, 6% médias e 4% grandes, por setores a taxa era de 42% para o alojamento local e restauração). Embora a existência de capitais próprios negativos em termos contabilísticos não implique o encerramento da atividade das empresas, é um sinal de sérias dificuldades financeiras.
Segundo simulações do Banco de Portugal, aquela percentagem aumentou para 31% em 2020, devendo atingir 32% em 2021, acima do máximo durante a crise da dívida soberana. A incidência é particularmente elevada no setor do HORECA (hotelaria, restaurantes e cafés), em que se prevê um aumento de 22 pontos percentuais, para uma base de 42%. Também particularmente afetados, mas com uma taxa bastante inferior estão os serviços de transportes (basta recordar os prejuízos acumulados da TAP, de 1,4 mil milhões de euros em 2020) e atividades administrativas e apoio.
Conclusões
A preocupação da política macroeconómica sobre a recuperação da economia deve debruçar-se sobre o que irá acontecer às famílias e empresas em 2022 e depois, uma vez terminados os apoios do Estado. A leitura do relatório da Comissão Europeia da missão de supervisão do país, de junho de 2021, não sinaliza nenhuma preocupação, mas também no passado nem os relatórios da Comissão nem do FMI foram enfáticos sobre a possibilidade de ocorrência de qualquer crise entre os países do euro, apesar dos múltiplos sinais de alarme que economistas como nós levantaram.
Em termos agregados, a situação financeira das famílias portuguesas revela um acréscimo significativo da poupança e liquidez, o que deverá levar a uma subida do consumo nos próximos anos, como é típico do ciclo económico. A falta de instrumentos financeiros e de incentivos para a poupança e investimento continuarão a limitar o crescimento económico. Os baixos níveis de delinquência dos créditos também contribuirão para a estabilização do sistema bancário, e a recuperação do emprego e atividade económica deverá levar a uma melhoria da situação financeira das famílias com maior vulnerabilidade e que foi agravada pela crise pandémica. A subida dos preços das casas de habitação é uma das variáveis a ter em consideração.
Já a situação das empresas apresenta maiores riscos. Os indicadores mostram que em finais de 2021 a situação financeira global é pior do que a que se verificava na crise de 2011. As cicatrizes deixadas pela atual crise são particularmente graves nas microempresas, e o nível extraordinário de vulnerabilidade que atinge o setor dos restaurantes, alojamento e serviços conexos sinaliza uma elevada taxa de falências potenciais. Também em situação difícil encontram-se empresas de transportes, como o caso das companhias aéreas mostram.
Abel Mateus é professor universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência