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A Google sofreu uma derrota pesada no maior caso de Concorrência nos EUA desde o fim da década de 90. Após quase quatro anos de investigação, mais de 3.500 provas obtidas a partir de milhões de documentos, dezenas de testemunhas e especialistas e nove semanas de julgamento, chegou a decisão. A Google é “monopolista” na área da pesquisa “e agiu para manter o seu monopólio”, declarou esta segunda-feira o juiz federal Amit Mehta, que tem em mãos aquele que já é visto como o maior caso de Concorrência no mundo da tecnologia em mais de vinte anos.
Pesquisas online: tribunal norte-americano declara Google um monopólio ilegal
A decisão do juiz do Tribunal de Columbia é o culminar de um processo que começou em outubro de 2020, quando a Google foi processada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ). A tecnológica foi acusada pelos procuradores federais de onze estados norte-americanos de ter um domínio de 15 anos no mercado da pesquisa e de recorrer “a práticas anticoncorrência” no mercados de anúncios de texto na pesquisa.
O caso levou a tribunal alguns dos maiores executivos do mundo da tecnologia. Além do próprio CEO da Google, Sundar Pichai, foram chamados a depor Satya Nadella, da Microsoft, ou Eddy Cue, o vice-presidente sénior de software de internet e serviços da Apple. Durante semanas, foram feitos depoimentos que serviram para fundamentar a decisão que é agora conhecida.
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O juiz conclui que a Google, que pertence à casa-mãe Alphabet, recorreu a contratos com fabricantes de smartphones e operadores de telecomunicações para ter o seu motor de pesquisa pré-definido nos dispositivos, ajudando a proteger o negócio, que agora é classificado de monopólio.
Qual é a conclusão principal da decisão?
A decisão do juiz Amit Mehta no caso “US vs Google” é fundamentada ao longo de 286 páginas. O golpe para a Google surge logo nas primeiras. “Após considerar e ponderar o depoimento das testemunhas e as provas, o tribunal chegou à seguinte conclusão: a Google é monopolista e agiu como tal para manter o seu monopólio.”
Logo a seguir, o juiz explica que as ações da tecnológica violaram a “secção 2 da Lei Sherman”, uma legislação norte-americana que determina que é ilegal que uma pessoa ou negócio tente criar monopólios em setores de negócio ou comércio. “O tribunal considera que há mercados de produto relevantes nos serviços de pesquisa gerais e nos anúncios de texto na pesquisa geral; a Google tem um poder monopolista nesses mercados”, determina Mehta. Os anúncios de texto na pesquisa são, por exemplo, o primeiro resultado que surge destacado na pesquisa, normalmente acompanhado da indicação “patrocinado”.
A decisão menciona os “acordos de distribuição da Google” estabelecidos com outras empresas num regime de exclusividade, com “efeitos anticoncorrenciais”. É ainda considerado que a empresa “não deu argumentos válidos do ponto de vista da concorrência para justificar” esses acordos.
O tribunal realça que, a partir das provas, a Google “exerceu o seu poder de monopólio ao cobrar preços supra-concorrenciais [acima do valor de mercado] nos anúncios de texto na pesquisa geral”.
O juiz determina também que o motor de pesquisa Google tem estado acima dos concorrentes “ao longo de mais de 15 anos”, referindo até que “a marca é sinónimo de pesquisa”. São destacados números como o facto de 90% das pesquisas em 2020 terem sido feitas no Google. Juntando a atividade nos dispositivos móveis, o resultado era ainda maior, chegando aos 95%. Em comparação, o Bing, o rival desenvolvido pela Microsoft, representou apenas 6% das pesquisas.
Quais são os “contratos relevantes” firmados pela Google com outras empresas?
A decisão fundamenta que a Google estabeleceu contratos de distribuição de pesquisa “com dois responsáveis de navegadores grandes (Apple e Mozilla); todos os principais OEM [fabricantes de equipamento original] de dispositivos Android (Samsung, Motorola e Sony) e os principais operadores de telecomunicações (AT&T, Verizon e T-Mobile) nos EUA”. Ou seja, a empresa firmou acordos em que, em troca de um pagamento, garantia que o seu motor de pesquisa estava pré-definido num universo de dimensão considerável, tanto nos equipamentos Apple como nos Android.
É referido que, em 2021, a Google “pagou um total de 26,3 mil milhões de dólares [24,11 mil milhões de euros] em partilha de receitas no âmbito destes contratos, uma despesa referida nos seus dados financeiros como ‘custos de aquisição de tráfego’”. A decisão aponta que, em 2021, esta era mesmo a maior despesa, “quase quatro vezes maior que todos os outros custos ligados à pesquisa combinados”.
Assim, o juiz Mehta determina três efeitos anticoncorrenciais desta ação: a redução de mercado, o impedimento aos rivais de atingir escala e a redução dos incentivos aos rivais para investir em inovação na pesquisa geral. Através dos tais contratos com outras empresas, argumenta-se que questões como a duração dos contratos (que se prolongam por anos) também funcionaram como uma barreira aos rivais.
Também é feita uma menção clara à Apple. “A possibilidade de perder dezenas de milhares de milhões em receitas garantidas vindas da Google — que atualmente chegam à Apple sem qualquer custo — não incentiva a empresa a lançar o seu próprio motor de pesquisa que, noutro caso, teria capacidade para fazer.” No documento, é dito que em 2022 o montante pago pela Google à Apple chegou a 20 mil milhões de dólares.
O juiz concordou com todas as acusações feitas pelo DOJ?
Não, em alguns pontos até deu razão à Google. Por exemplo, a Justiça norte-americana acusava a empresa de ter uma posição dominante em mais áreas da pesquisa publicitária. O juiz federal discorda, explicando que “a Google não tem um poder monopolista” nesses pontos e que “não pode ser responsabilizada pelas suas ações na sua plataforma de anúncios, a SA360 [Search Ads 360]”.
O mesmo juiz decidiu não sancionar a Google pela “falha em preservar as mensagens do chat dos funcionários”, que terão sido eliminadas de forma automática. O Departamento de Justiça dos EUA defendeu que este comportamento da Google era semelhante a destruição de provas. Porém, para o juiz, atribuir uma sanção este comportamento “não iria fazer mexer a agulha na avaliação do tribunal à responsabilidade” da tecnológica no tema principal do monopólio na pesquisa.
De qualquer forma, Mehta deixa o aviso: a decisão de não sancionar nesta questão não deve ser compreendida como “aceitação” do comportamento. “Qualquer companhia que ponha o ónus aos seus funcionários de identificar e preservar provas relevantes fá-lo por sua conta e risco. A Google evitou as sanções neste caso. Mas pode não ter tanta sorte no próximo.”
Quais são os próximos passos e desfechos possíveis?
A Google já garantiu que vai recorrer desta decisão. E, mesmo com a decisão, ainda faltam saber quais são os remédios que são considerados adequados tendo em conta esta classificação de monopólio. Não há, para já, qualquer indicação à vista sobre quanto tempo isso pode demorar.
Dan Ives, analista da casa de investimento Wedbush, comenta numa nota que poderá passar até muito tempo até haver um desfecho. “Pode demorar vários trimestres e possivelmente anos até se chegar a um resultado final e não antecipamos qualquer disrupção às operações de curto prazo da Google após esta decisão.” Até porque “o DOJ ainda não comunicou formalmente quais os possíveis remédios que poderá tentar obter” e só daqui a “alguns meses” é que poderão ser apontados alguns caminhos.
A casa de investimentos equaciona seis cenários possíveis, em que o “melhor desfecho para a Google” passaria pela decisão de a empresa já não poder atribuir compensações a terceiros para ter o motor de pesquisa por defeito. Outro desfecho “relativamente neutro” para a tecnológica passaria pelo pagamento de uma coima pelo comportamento, mas em que ainda fossem “permitidos os acordos de distribuição”.
Menos prováveis são os cenários que envolvem a Apple, como “a substituição do Google enquanto motor de pesquisa pré-definido” por outra opção ou a possibilidade de a própria Apple desenvolver o seu motor de pesquisa para ficar pré-definido nos dispositivos da marca ou recorrer a uma parceria com uma rival da Google, mencionando a OpenAI. Na visão da Wedbush, esta é a opção “menos provável” de todo o lote.
Já o advogado Paulo de Jesus Correia nota que “é cedo para saber se estamos perante uma decisão que vai obrigar a uma verdadeira reestruturação do setor”, algo que só se saberá quando forem determinados os remédios. Mas se estes “fossem na linha da separação e venda de unidades de negócio que hoje integram a Google”, aí poderiam surgir mudanças, explica ao Observador.
A questão é que optar por cenários de separação de empresas “é muito mais difícil”, especialmente em questões como o software e motores de pesquisa. “O mercado é demasiado dinâmico para considerar uma partição por áreas de negócio como algo com sentido económico. Não será impossível, mas é uma solução à partida pouco provável”, considera. “Um cenário mais provável é a aplicação de medidas específicas como a proibição de acordos como os referidos com a Apple e a Samsung para tornar o Google como o motor de pesquisa standard.”
Como reagiu a Google? E as concorrentes da gigante?
A tecnológica reagiu à decisão do juiz Mehta através de uma declaração de Kent Walker, presidente de assuntos globais da Google. “Esta decisão reconhece que a Google oferece o melhor motor de pesquisa, mas conclui que não devíamos estar autorizados a torná-lo facilmente acessível.” Ainda segundo o mesmo porta-voz, enquanto o processo continua, a empresa “mantém-se focada em fazer produtos que as pessoas considerem úteis e sejam fáceis de usar”.
Já a rival DuckDuckGo, que tem também um motor de pesquisa e cujo CEO testemunhou no caso, aplaudiu a decisão. “A jornada daqui para a frente vai ser longa. Como estamos a ver na União Europeia e noutros pontos, a Google vai fazer de tudo para evitar mudar a sua conduta”, disse Kamyl Bazbaz, porta-voz da empresa, ao site The Verge. “No entanto, sabemos que há uma procura por alternativas na pesquisa e esta decisão vai apoiar o acesso a mais opções.”
Como reagem alguns especialistas à decisão?
As opiniões dividem-se sobre o que poderá acontecer após esta decisão. “Vai fundamentalmente alterar a forma como as big tech fazem negócio no futuro”, acredita Anat Beck, professora assistente da Case Western Reserve University School of Law. Em comentários escritos enviados ao Observador, acredita que “qualquer CEO de uma empresa de tecnologia vai tentar ligar aos seus advogados a perguntar como é que pode mudar a trajetória da ação”.
Já Geoffrey A. Manne, presidente do International Center for Law & Economics (ICLE), aponta algumas questões menos “sólidas” na decisão. “O tribunal não tem em conta o panorama concorrencial alargado na pesquisa e a concorrência vigorosa em que a Google tem estado envolvida para ser o motor de pesquisa definido”, diz num comentário feito esta segunda-feira, após a divulgação da decisão. “Ter a posição de [motor de pesquisa] pré-definido vale de muito pouco quando o produto não é bom. Pela mesma lógica, o Google não foi afastado enquanto motor de pesquisa em lado nenhum, porque é um produto superior”, explica.
O presidente do ICLE refere ainda que a decisão “não apresenta provas que sugiram que o Bing [da Microsoft] se poderia ter tornado um concorrente viável no âmbito de outros factos”.
Nos anos 90, a Microsoft foi acusada de ser um monopólio. O que é que aconteceu depois?
O último caso de larga escala a classificar uma big tech como monopólio envolve a Microsoft. Na decisão contra a Google, o juiz Mehta menciona que usou o caso da dona do Windows como enquadramento. Ao longo das centenas de páginas da decisão, há várias menções ao conhecido caso.
O processo é da década de 90, quando Bill Gates ainda liderava a empresa e a tecnológica tinha um domínio no mercado dos computadores. Em maio de 1998, o DOJ e os procuradores de 20 estados processaram a empresa pelo facto de incluir software adicional no Windows e de tornar propositadamente difícil desinstalar o browser Internet Explorer.
Após várias estratégias de defesa, a Microsoft perdeu o caso e, já em 2000, foi tomada a decisão do desmembramento da empresa. A tecnológica apresentou um recurso e a decisão do juiz Thomas Penfield Jackson foi revertida. A Microsoft manteve-se inteira após chegar a um acordo com o DOJ, em 2001, em que aceitou partilhar a interface de computação com outras companhias e pôr fim aos acordos de exclusividade.
Paulo de Jesus Correia, advogado e managing partner da Santiago Mediano e Associados, nota que “o tempo e a dinâmica da própria indústria ultrapassaram a relevância do caso” que envolveu a dona do Windows, “já que outros players ligados a redes sociais e plataformas de compras acabaram por assumir a liderança tecnológica”. “Num setor tão dinâmico, este poderá vir a ser um cenário novamente repetido já que quando tivermos uma decisão final [com a Google], é muito possível que outras empresas ligadas a redes sociais e inteligência artificial tenham tornado o tema do motor de pesquisa algo ultrapassado”, contextualiza.
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Há mais empresas que podem ser alvo de uma decisão do género?
Sim, ainda que por motivos e áreas de negócio diferentes. A Apple, Amazon e a Meta também já foram alvo de processos do Departamento de Justiça ou da Comissão Federal de Comércio (FTC) por questões de concorrência.
A Apple foi acusada de ter um monopólio no iPhone, que impede os programadores de aplicações e empresas de jogos de disponibilizar opções mais favoráveis aos clientes. A acusação foi feita em março, pelo DOJ, e, na semana passada, a tecnológica avançou para a justiça para tentar travar o caso, nota o New York Times.
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A Amazon foi processada pela FTC em setembro do ano passado, com acusações ligadas às compras online. A empresa é acusada de limitar outros vendedores na plataforma e favorecer os seus próprios serviços. É esperado que o caso chegue a julgamento em outubro de 2026.
Já a Meta, a dona do Facebook e Instagram, foi processada em dezembro de 2020. A FTC defende que, com as aquisições do Instagram e WhatsApp, a empresa de Zuckerberg criou um monopólio nas redes sociais. Em 2021, a queixa da FTC foi arquivada, após um tribunal considerar que a FTC não fundamentou de forma adequada que mercado é que a agora Meta estava a monopolizar. No entanto, deu à agência governamental a hipótese de voltar a apresentar o caso, que avançou em 2022.