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Já era de noite quando chegou à esquadra da PSP do Cacém, em Sintra, esta terça-feira. As palavras saíram rapidamente, de forma simples e, aparentemente, calma. Ainda assim, chocaram os polícias — mesmo aqueles que contam tantos dias de serviço como as histórias mais indescritíveis que já ouviram. L.S., de 27 anos, estava ali para pedir que o prendessem. Perante a surpresa dos agentes de serviço, explicou, convicto: se não o algemassem e o mandassem para uma prisão, não “aguentaria” e cumpriria o “fetiche” que, há tempos, o atormentava: abusaria sexualmente de uma criança. Pior: poderia acontecer já no próximo sábado, 5 de outubro, num serviço de animação a crianças que já tinha agendado.
Perante os polícias de serviço, L.S. foi sempre muito insistente. Disse que descobrira há muitos anos ser homossexual e que se envolvia com homens da sua idade ou mais velhos, mas, nos últimos tempos, a sua tentação tinha passado a ser por crianças. Incrédulos, os agentes não souberam bem o que fazer. Na verdade, a vontade e o pensamento não são punidos por lei. E L.S. garantia que nunca tinha tocado numa criança. Começaram, então, a fazer-lhe perguntas e as respostas foram chegando. Para provar que não estava a mentir, o homem mostrou o telemóvel e a pornografia infantil que lá tinha.
Segundo uma fonte policial, houve quem não conseguisse ver as imagens até ao fim, não só pela extensão de ficheiros, como pelo conteúdo: uma verdadeira biblioteca de vídeos com atos sexuais com menores. L.S. não era interveniente em nenhum deles, garantiu uma fonte policial ao Observador.
Os vídeos tinham sido recebidos por WhatsApp, vindos de um utilizador que agora será investigado pela PJ, e L.S. não os partilhara com ninguém. Apenas os vira. A compulsão era tão grave, explicou aos polícias, que tinha chegado a ser seguido no Hospital Júlio de Matos. O homem contou também que, durante quatro anos, foi professor de teatro numa escola do primeiro ciclo, onde ensinava a alunos do primeiro ao quarto ano. Fazia, ainda, trabalhos esporádicos como animador de festas infantis. Para este sábado tinha já um trabalho agendado e tinha mesmo a certeza de que “daquele dia não passava”, contou ao Observador a mesma fonte. “É uma questão de dias”, chegou a dizer.
A essa certeza somou uma outra informação, sobre a sua saúde, que agravava o cenário: aos agentes da PSP do Cacém, contou que tinha uma doença sexualmente transmissível. Desconhece-se, para já, se esta informação é verdadeira e se foi um dos motivos que o levaram à esquadra para pedir para ser preso.
Ao relato seguiu-se a dúvida dos agentes: como prender alguém por um abuso sexual de crianças que, garante o próprio, ainda não aconteceu? E como poderiam admitir a possibilidade de o mandar embora perante aquela certeza de que alguma criança poderia estar em perigo dias depois?
A solução foi contactar toda a cadeia de comando para perceber o que deviam fazer: ligaram ao comandante da esquadra, que, por sua vez, contactou o oficial de serviço, que terá decidido contactar o procurador do Ministério Público que se encontrava de serviço naquela noite. Terá sido o magistrado a encontrar a única saída: não poderiam, de facto, deter o homem por abuso sexual de crianças sem qualquer indício de que, ao contrário do que diz, o possa ter feito, mas podiam detê-lo por causa dos vídeos que tinha no telemóvel. A posse de pornografia infantil é crime e foi por ele que L.S. acabou por ser constituído arguido e detido para ser presente a um juiz de instrução.
“Foi um caso inédito”, admitiu um outro polícia contactado pelo Observador.
Arguido manteve a mesma versão perante o juiz e ficou preso
No auto da PSP que foi entregue ao juiz de instrução que ouviu L.S. na tarde de quarta-feira, no Tribunal de Sintra, os polícias que o ouviram e o conduziram, na noite anterior, aos calabouços da PSP de Sintra dizem que o homem aparentava ter problemas psicológicos, admitindo também que pudesse ser consumidor de drogas. Mas isso não os fez duvidar da história porque, ao contrário de outros casos, não lhes pareceu que fosse alguém que não soubesse o que estava a dizer, ou que estivesse apenas a dizer “disparates”. Pelo contrário, contam, L.S. mostrou mesmo a “convicção” de que, se não o travassem, cometeria um crime e que prendê-lo seria a única forma de o evitar.
Esses mesmos polícias ainda fizeram uma busca à sua casa, não muito longe da esquadra, onde vive com a mãe e uma irmã. Encontraram um vibrador e apreenderam três computadores portáteis e várias Pen USB, mas o material de pornografia infantil estaria apenas no seu telemóvel.
Prisão preventiva para homem que se entregou por pornografia infantil
Perante o procurador e o juiz que o ouviram durante quase três horas, L.S. manteve exatamente o mesmo discurso. Se não o prendessem, faria mal a uma criança. Terá, aliás, confirmado toda a versão que revelara na esquadra na noite anterior. O relato não deixou, por isso, grande alternativa ao juiz de instrução: estava cumprido, pelo menos, um dos requisitos para a medida de coação mais grave, o do perigo de continuação da atividade criminosa — e, neste caso, de uma forma mais grave.
O primeiro interrogatório judicial terminou às 16h30 e o Tribunal de Sintra fez saber que o arguido ficaria a aguardar o desenrolar do processo em prisão preventiva no hospital-prisão de Caxias. O oficial de justiça ainda saiu da sala à procura de algum familiar ou conhecido que pudesse estar à espera do desfecho do caso. Mas não havia ninguém.
L.S. foi representado por uma advogada oficiosa, nomeada naquele momento para o patrocinar. À saída, Aida Santos Lage não quis prestar qualquer declaração aos jornalistas.
A surpresa dos vizinhos, incrédulos com o caso
No bairro de torres altas onde L.S. vive, ninguém se apercebeu sequer da presença da PSP. O homem é filho de uma mulher venezuelana que casou com um emigrante português. O pai voltou há uns anos para a Venezuela e a família vive no concelho de Sintra. Ao todo, são quatro irmãos, mas, atualmente, o animador de festas de crianças vivia apenas com a mãe e uma irmã. Nos últimos meses os vizinhos até pensavam que já tinha saído de casa para ir viver sozinho. “Fiquei muito tempo sem o ver e, nos últimos dias, via-o a fumar ali na varanda”, disse uma vizinha ao Observador, ainda incrédula.
A vizinhança ficou a saber do caso pelos jornalistas. Além de não se terem apercebido da presença da PSP, depois de L.S. se ter entregado na esquadra, nunca pensaram que pudesse esconder aquele segredo. Descrevem-no como um rapaz “extremamente educado”, como, aliás, toda a família. “Sabíamos que era homossexual, mas apenas isso. Era muito gentil. Se se cruzasse comigo no prédio, falava-me sempre e perguntava se precisava de ajuda”, conta a vizinha que é mãe de duas crianças e que nunca suspeitou — nem suspeita — de qualquer comportamento de L.S. “Era muito trabalhador, via-o a entrar e a sair de casa, mas não sei concretamente em que trabalhava”, disse.
O caso foi, entretanto, entregue à Polícia Judiciária, que deverá analisar todo o material apreendido. Um dos primeiros focos será perceber se toda a versão que o homem contou à PSP e ao juiz é verdadeira e se, de facto, nunca cedeu à compulsão que diz sentir.
Um pedido de ajuda genuíno ou uma estratégia para baixar a pena?
Fonte da PJ garantiu ao Observador que nunca testemunhou um caso assim. Para a própria PSP, o facto de alguém pedir para ser preso por não se controlar e poder cometer um crime também é inédito. Mas os profissionais que todos os dias pensam nestes temas, seja numa perspetiva jurídica ou criminológica, encaram o caso — que não conhecem — de formas diferentes.
Para Carlos Poiares, professor universitário de psicologia forense, a decisão de se entregar às autoridades pode parecer, à partida, uma atitude altruísta. “Ele percebe que não tem travão nele próprio, que o comportamento compulsivo se vai prolongar com danos para as crianças, mas também para ele, e pede: ‘Parem-me que eu não sou capaz’“, supõe. “Ao confessar, põe em causa a sua estabilidade profissional, pessoal, social”. E para isso, sublinha o professor, “é preciso coragem”.
É aqui que o facto de o homem ter, segundo diz, uma doença sexualmente transmissível pode ter servido de “empurrão”, ao contribuir para esse sentimento de culpa e de medo pelos danos que poderia provocar numa criança.
Seja como for, essa atitude é rara. Carlos Poiares e o psicólogo forense Mauro Paulino, também ouvido pelo Observador, não se recordam de um caso semelhante em Portugal. O prazer que um abusador sexual tem nos crimes costuma sobrepor-se à culpa e à consciência crítica do comportamento. “Normalmente, há consciência do comportamento e de que o mesmo é crime. Mas a gratificação sexual pesa mais do que a necessidade de se entregar ou travar o comportamento. Raramente há esse assumir total da responsabilidade e de pedir ajuda. Essa procura genuína não é a mais comum“, explica Mauro Paulino. Se a procura de ajuda psicológica já é rara, recorrer às autoridades é ainda mais. “Normalmente, este sujeitos não se querem sequer tratar. São pessoas que fogem dos tratamentos — que, para eles, não produzem efeito”, aponta Carlos Poiares.
O que faz com que, a par da hipótese de se tratar de um caso raro, se coloque outra possibilidade: e se for uma estratégia? E se não foi uma atitude altruísta, mas, sim, egoísta? O homem pode ter optado por “confessar para minorar a pena porque percebeu que podia ser apanhado, mais tarde ou mais cedo”. O professor universitário explica que “há uma contabilidade que, normalmente, as pessoas fazem quando estão à beira de cometer crimes: tentar arranjar a solução mais adequada a conseguirem, no fundo, safar-se”.
Isto porque as autoridades não podem, pelo menos para já, descartar a hipótese de ter já havido algum abuso, apesar de o homem não o confessar e de as autoridades que o ouviram terem considerado o relato genuíno.
Só uma avaliação mais detalhada da personalidade do suspeito de 27 anos permitirá perceber se este foi um pedido de ajuda genuíno ou uma estratégia para baixar a pena, alerta Mauro Paulino, antes de colocar uma hipótese: “Imaginemos que houve alguém que identificou a sua conduta e que ameaçou fazer queixa. Ele pode ter pensado: ‘É mais fácil antecipar-me, dizer que tenho um problema e, com isto, tentar ter um olhar mais benevolente da justiça'”, explica o psicólogo. Paulino reforça, por isso, que a avaliação que agora vai ser feita é essencial para perceber se o suspeito tem “um estilo mais manipulatório”.
Há ainda a hipótese de ter sido a pessoa com quem o suspeito poderia ter uma relação a incentivá-lo a pedir ajuda— embora não se saiba se, neste caso, o suspeito tinha ou não uma relação amorosa com alguém. “A relação pode ser um fator de ajuda. Pode ter sido o companheiro ou companheira que tenha incentivado”, admitiu o professor Carlos Poiares, explicando: “Estas pessoas têm uma distorção do objeto sexual. É muito difícil alguém ter uma relação normativa com outra e, ao mesmo tempo, ter uma parafilia. Às vezes, têm uma vida sexual normativa com adultos porque se querem convencer de que são capazes de ter excitação sexual com adultos, mas a relação acaba por ficar debilitada por quem está sempre a desviar a atenção para o objeto desviante: a pornografia com crianças”.
Confessar poderá atenuar a pena. Mas e se houver mais crimes?
Miguel Matias, advogado que representou as vítimas no caso Casa Pia, recomenda mesmo que o Ministério Público invista numa “investigação complementar sobre a existência de mais crimes que o suspeito não esteja a englobar na posse de pornografia infantil”. Por exemplo, abuso sexual de menores. Isto porque, defende, o suspeito pode estar a omitir crimes dessa natureza e a entregar-se apenas na tentativa de fazer com que eventuais outros crimes passem despercebidos.
Neste caso, e para já, o homem é suspeito de um crime de pornografia de menores. De acordo com o Artigo 176.º do Código Penal, o facto de ter na sua posse esse material já é punível com pena de prisão até dois anos. Ter confessado os crimes e colaborado com as autoridades poderá, no entanto, pesar na aplicação da pena, atenuando-a. “O facto de ter pedido ajuda à polícia, de ter confessando os crimes e de ter colaborado com as autoridades, terá um efeito final de atenuação especial da pena“, explica Miguel Matias, adiantando: “Se ele confessar integralmente em sede de julgamento, o Ministério Público (MP) pode prescindir da produção de prova e partir logo para a formulação da sentença”.
Mas se a pedofilia é uma parafilia, não poderá o suspeito ser declarado inimputável, isto é, não ser penalmente responsabilizado pelos seus atos? Não, explica ao Observador o psicólogo Mauro Paulino: “A pedofilia é uma doença, mas não anula a consciência do indivíduo. Não é uma anomalia psíquica grave que impeça a apreciação dos factos. A pessoa tem a noção de que aquilo que está a fazer é crime. Pode é não ter a capacidade de controlar o impulso, mas tem noção que é crime. E esta consciência é imputável”.
Independentemente de como a justiça vai decidir, também é preciso que o problema seja tratado. Como? “Precisamos de punir, obviamente — é um crime. Mas precisamos de tratar, de intervir do ponto de vista psicológico e controlar. Não há uma pena de morte nem pena perpétua. Eles [abusadores sexuais] vêm para fora, por isso, é necessária a prevenção da recaída”, explica Mauro Paulino, adiantando: “Estes indivíduos têm de ser acompanhados para avaliar o risco, perceber quais são as suas condutas, perceber se trabalham ou vivem perto de uma escola”.
O professor de psicologia forense Carlos Poiares sublinha a mesma ideia para lembrar que prender, apenas, não só não é uma solução como pode agravar o problema, já que os abusadores sexuais — ou potenciais abusadores, como L.S diz ser — ficam quase como que a acumular a compulsão que sentem, durante o tempo em que estão presos. Quando a pena chega ao fim e saem, a compulsão ainda lá está: “Enquanto estão presos, portam-se bem porque não têm grande alternativa, mas, quando saem da cadeia, o comportamento provoca uma tal compulsão que eles continuam a cometer crimes, mesmo sabendo que correm o risco de ir presos”.
O problema é que o rácio entre o número de psicólogos que prestam apoio nos estabelecimentos prisionais portugueses e o número de reclusos é elevado. O Público denunciou que, em 2018, só havia 30 psicólogos para 14 mil reclusos. Mais recentemente, o mesmo jornal noticiava que o programa de intervenção junto de agressores sexuais era aplicado apenas em três prisões: Carregueira, Paços de Ferreira e Funchal. Numa amostra de 110 reclusos que cumpriram o tratamento e saíram em liberdade, quatro voltaram a ser condenados. Dois por crimes sexuais.