A partir de meados do século XIX, a sociedade inglesa deixou-se contagiar por uma verdadeira “febre egípcia”, alimentada pelas recentes descobertas arqueológicas no Egito. Esta influenciou a produção de joalharia, cerâmica e arquitetura civil e funerária, mas talvez a área em que a “egiptomania” se tenha feito sentir com mais força e de forma mais duradoura tenha sido a da literatura. Até às primeiras décadas do século XX, o mercado editorial inglês foi inundado por histórias inspiradas pelo Antigo Egito, a maioria das quais sobre múmias que regressam à vida para assombrar aqueles que perturbaram o seu eterno descanso. Quase todos os grandes autores das épocas vitoriana e eduardina se deixaram enfeitiçar pelo Egito das grandes descobertas e das fabulosas narrativas de viagens, publicando histórias inspiradas no mítico país dos faraós. Curiosamente, a maioria destas narrativas passa-se não no Egito, mas em Inglaterra, e dizem mais sobre a sociedade que as viu nascer do que sobre o país em que foram baseadas.
Bram Stoker foi um dos escritores que cedeu à ‘maldição’ da múmia. Conhecido como o autor de Drácula, Stoker escreveu muitos outros romances, incluindo um em que relata a tentativa de ressuscitação de uma antiga rainha e feiticeira egípcia por um lorde inglês, que a descobriu num túmulo secreto no deserto. A Joia das Sete Estrelas, considerado por muitos o melhor romance do escritor depois de Drácula, que tem uma nova edição em português, explora temas comuns na literatura gótica do período, como o imperialismo, o progresso social e o papel da mulher. Os elementos sobrenaturais e de terror, típicos desse género literário, surgem neste romance associados à religião e mitos egípcios, que tinham sido dados a conhecer em Inglaterra por um nova geração de arqueólogos que, graças à decifração da escrita hieroglífica por Jean-François Champollion, pôde ter acesso aos textos antigos. Recentes descobertas arqueológicas no Vale dos Reis contribuíram também para um aprofundar do conhecimento sobre o Antigo Egito, gerando um fascínio que deixou poucas pessoas indiferentes.
A Joia das Sete Estrelas é o único romance de Stoker inspirado na história egípcia. Eleanor Dobson, especialista na receção do Antigo Egito na literatura dos séculos XIX e XX, considerou que é possível que Stoker se tenha virado “para o Antigo Egito por causa da sua popularidade e não por um interesse sustentado no assunto ao longo da sua carreira que vemos noutros escritores, nomeadamente em Henry Rider Haggard e Sax Rhomer”. Andrew Smith, especialista em literatura gótica do período vitoriano e professor na University of Sheffield, em Inglaterra, avançou que o autor pode ter tido em mente a popularidade de She: A History of Adventure (1887), de Rider Haggard, autor de As Minas de Salomão e Cleópatra, que inspirou o filme com o mesmo nome com Elizabeth Taylor e Richard Burton nos papéis principais. Um entusiasta da Egiptologia, Haggard publicou vários romances inspirados no Antigo Egito. Já Rhomer ficou conhecido pela coleção de histórias sobre o mestre do crime Fu Manchu, que inspiraram uma adaptação cinematográfica nos anos 30.
O romance de Stoker foi publicado em 1903, pela editora londrina Heinemann, propriedade de William Heinemann. Tinha sido concluído um ano antes. O livro recebeu pouco crédito na altura. A revista Reader descreveu-o como uma versão “barata” de um “pesadelo egípcio” que causava pouco mais do que alguns arrepios. Um leitor do The Saturday Review of Politics, Literature, Science and Art afirmou que “não emociona o leitor como os melhores trabalhos do género”, enquanto outro, escrevendo para o The Spectator, fez uma crítica negativa da obra, lamentando que fosse impossível perceber o que acontecia na última cena. O The New York Times reagiu de forma mais positiva. Considerando que o livro tinha alguns “pontos fracos”, disse, no entanto, tratar-se de “uma boa história de mistério e aventura”.
Stoker reviu A Joia das Sete Estrelas pouco antes de morrer, alterando-lhe o final. Subtraiu-lhe o 16.º capítulo, “Poderes antigos e novos”, e concluiu a história com uma descrição de cenas domésticas, sugerindo que apenas a vida familiar, dentro dos moldes conservadores eduardinos, é capaz de restituir o equilíbrio quebrado pela ação de forças sobrenaturais malignas. A nova edição, que saiu em Inglaterra em 1912, pela editora William Rider & Son, terá sido motivada pelos pedidos do editor e de leitores como o de The Spectator, que queriam um final ‘mais feliz’ e menos ‘macabro’. Harry Ludlam, que publicou uma biografia de Stoker em 1962, foi o primeiro a avançar essa teoria, mas não existe nenhuma prova que confirme que foi essa a principal motivação de Stoker. Para Dobson, é “uma espécie de mistério literário”. “Os académicos não têm certeza se o final publicado em 1912, o ano em que Stoker morreu, foi escrito pelo próprio Stoker ou pelos seus editores”, afirmou.
A maioria das edições disponíveis reproduzem a segunda versão do romance, com o final menos horrível. Felizmente para os leitores portugueses, a nova edição do livro reproduz o final tal como foi originalmente pensado pelo seu autor. Editada em junho pela Minotauro, tem tradução de Jorge Almeida e Pinho, que também assina a introdução. Não é a primeira vez que o romance egípcio de Stoker é publicado em Portugal, mas todas as outras edições estão esgotadas. A Joia das Sete Estrelas foi editado pela primeira vez em 1996, pela extinta Europa-América, numa altura de redescoberta das obras do autor. Foi nesse ano que David Glover publicou a primeira edição crítica da Joia das Sete Estrelas, disse Smith ao Observador, acrescentando que o centenário da publicação de Drácula, que se assinalou em 1997, motivou a recuperação de obras menos conhecidas de Stoker, muitas das quais esgotadas. As novas edições “permitiram aos académicos aceder facilmente ao corpus principal da obra de Stoker e refletir criticamente sobre o lugar da Joia dentro desse mesmo corpus”, o que até então não tinha sido feito.
Notando que Drácula foi alvo de “um maior número de críticas” quando foi publicado em 1897, o que evidencia que teve um maior “impacto cultural na altura e posteriormente, por exemplo, em adaptações cinematográficas”, Dobson afirmou que é por isso que foi analisado a partir dos anos 70 no âmbito dos Estudos Góticos, que se afirmaram nessa altura enquanto disciplina dos estudos literários. “Drácula era um ponto de referência mais familiar”, apontou a professora de literatura na Universidade de Birmingham, em Inglaterra. “Com um novo interesse crítico no género [gótico], referências à Joia das Sete Estrelas foram surgindo aos poucos em trabalhos académicos, à medida que os investigadores começaram a olhar para além de Drácula”, disse ainda.
“Egiptomania”: a literatura sobre múmias em Inglaterra e o declínio do império britânico
A publicação de A Joia das Sete Estrelas surge no contexto da “Egiptomania”, termo usado para descrever o fascínio por todas as coisas egípcias que tomou conta da sociedade europeia a partir do século XIX, atingindo o apogeu em Inglaterra durante as épocas vitoriana e eduardina. Até à campanha egípcia de Bonaparte (1798-1801), o Egito, que há muito tinha perdido a importância estratégica e cultural de outros tempos, era um território periférico. A descoberta acidental da Pedra de Roseta em 1799 por tropas napoleónicas e a posterior decifração dos hieróglifos em 1822 por Jean-François Champollion, permitiram recuperar a língua do Antigo Egito, esquecida durante séculos, e também a sua história, até então dominada por especulações e fantasias com origem em textos de autores tardios. A abertura do Egito ao mundo incentivou uma série de investigadores pioneiros, como Auguste Mariette e Gaston Maspero, que, na primeira metade do século XIX, se aventuraram na exploração dos antigos monumentos egípcios, soterrados pelas areias do deserto. Depois de Maspero, uma influência decisiva para os egiptólogos do início do século XX, a Egiptologia tornou-se cada vez mais profissional, científica e diversificada.
Os avanços no estudo do Antigo Egito resultaram na aquisição de artefactos por vários museus britânicos, sobretudo pelo British Museum, que tem ainda hoje uma importante coleção egípcia, a maior fora do Egito. Os visitantes “ficavam muitas vezes impressionados pelo tamanho dos artefactos e fascinados por todos os objetos que estivessem relacionados com os rituais funerários e, claro, com as múmias, sobretudo porque apelavam, e ainda apelam, a um certo fascínio pela morte e pela morbidez. O Antigo Egito parecia ser um lugar estranho, cheio de mistérios, porque a sua cultura era tão diferente da cultura moderna europeia, mas também porque a sua arquitetura (pirâmides, túmulos), que inspirou a imaginação gótica, fascinavam pela possibilidade de guardarem segredos e perigos escondidos”, disse Nolwenn Corriou, da Sorbonne, ao Observador. “Para os britânicos, havia algo de extremamente exótico em relação ao Antigo Egito, porque parecia tão remoto de tantas maneiras: geograficamente, historicamente, culturalmente e esteticamente”, concluiu a especialista francesa em literatura vitoriana.
Foi, no entanto, durante a polémica construção do Canal do Suez (1859-1869), que permitiu a circulação de navios entre a Europa e a Ásia Meridional sem estes terem de contornar a costa africana, que as histórias sobre múmias se tornaram verdadeiramente populares. Alise Bulfin sugeriu que a proliferação destas narrativas aconteceu sobretudo após a abertura do canal e da ocupação do Egito pelas forças britânicas em 1882. “A situação incerta do Egito tornou-se rapidamente uma fonte de disputa entre grupos nacionalistas islâmicos emergentes e outras potências europeias”, afirmou a académica. Lembrando que o então primeiro-ministro britânico, Benjamin Disraeli, tinha comprado, alguns anos antes, “uma série de ações da Canal Company, significando que o Reino Unido tinha interesse financeiro na área”, Smith explicou que foi essa a justificação usada pelos britânicos para o domínio do território egípcio. “O Egito ocupava uma posição estratégica dentro do império britânico, enquanto a sua posição nesse império era definida de forma ambígua como ‘protetorado’”, apontou Corriou. “Aquilo que ficou conhecido como a Questão Egípcia era frequentemente alvo de reflexão na altura”, concluiu Smith.
“Estas tensões encontram-se refletidas na ficção sobre múmias das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX, com alguns contos a imaginarem a múmia reanimada como uma força agressora e aterradora e com outros a descreverem-na como uma mulher bela e perfeitamente preservada”, disse Dobson. “Estes dois tipos, geralmente distintos, sobrepõem-se no romance de Stoker, no qual a cativante rainha antiga representa um objeto de desejo romântico e uma ameaça potencialmente mortal.” Corriou notou que existem “dois motivos principais no género, que é descrito como ‘ficção sobre múmias’, que expressam a perceção que as sociedades vitoriana e eduardina tinham do Egito”. “Por um lado, existe o tema romântico: vemos uma arqueólogo que se apaixona pela múmia que descobriu e tenta seduzi-la ou até casar com ela (a maioria das múmias ficcionais são do género feminino). Isto pode ser lido como uma metáfora para o facto de o Reino Unido ter tentado seduziu o Egito a tornar-se parte do império”, afirmou.
O segundo tema, a maldição da múmia, que segundo a especialista é o mais famoso dos dois, “aparece em muitos romances e contos em que a múmia se tenta vingar da profanação do seu túmulo e do roubo do seu corpo por um arqueólogo. Isto tem sido interpretado por muitos académicos como uma representação ficcional do surgimento dos movimentos nacionalistas no Egito”. De acordo com Corriou, “a vingança da múmia pode ser lida como uma metáfora que a mostra como membro do grupo dos colonizados que se ergue contra o arqueólogo, que representa a apropriação e exploração colonial do Egito. Esta representação ficcional de preocupações muito reais que marcaram a viragem do século ilustra como as sociedades vitoriana e eduardina estavam preocupadas com o declínio do império britânico”, abordado em outros géneros literários e por outros autores, muito diferentes de Stoker.
Foi também durante o período de ocupação britânica do Egito que foram escavados alguns dos mais importantes locais arqueológicos, como o Vale dos Reis. Foi na necrópole dos faraós em Tebas que foi encontrado em 1912 o túmulo do faraó Tutankhamon, por Howard Carter e Lord Carnarvon. A história da maldição do faraó, que terá sido responsável pela morte precoce daqueles que estiveram presentes na abertura da sepultura, teve um importante impacto literário — depois de Tutankhamon, a maldição da múmia instalou-se definitivamente como o tema preferencial das histórias inspiradas pelo Antigo Egito. A obra mais famosa é The Beetle, de Richard Marsh, sobre uma múmia que viaja para Inglaterra para se tenta vingar de um influente deputado e orador inglês com o qual se cruzou muitos anos antes no Egito. Apesar da popularidade de Drácula, o romance de Marsh, que foi publicado no mesmo ano (1897), superou inicialmente em número de vendas a obra de Stoker.
Bram Stoker e a vingança de Tera, rainha do Egito
A Joia das Sete Estrelas gira em torno das extravagantes ambições arqueológicas de Abel Trelawny, um importante egiptólogo inglês que quer ressuscitar a múmia de uma antiga rainha e feiticeira egípcia, Tera, que viveu três mil anos antes. A tentativa de ressuscitação de Tera, “a grande experiência” a que se refere o título do 20.º capítulo do romance, é realizada através de rituais antigos e preceitos científicos vitorianos. Trelawny é auxiliado na tarefa pela filha, Margaret, pelo seu assistente, Corbeck, e pelo narrador, Malcolm Ross, um advogado londrino que se vê envolvido nos acontecimentos após ser chamado à casa do arqueólogo, que foi encontrado com marcas de agressão e em estado quase vegetativo pela filha. À semelhança de outros romances da época, A Joia das Sete Estrelas dá conta de um interesse mais ou menos generalizado pela Egiptologia entre a elite britânica – eram muitos os que de uma forma mais ou menos profissional se dedicavam ao estudo da história do Egito Antigo, através da leitura de textos ou do colecionismo.
A precisão arqueológica de Stoker — que Jorge Almeida Pinho considera enfadonha na sua introdução, mas que contribui para a construção de uma narrativa credível — reflete as muitas leituras feitas pelo autor sobre Egiptologia. Para a académica Luz Elena Ramirez, a “densidade arqueológica” da obra, repleta de dados históricos e referências arqueológicas, evidencia a “egiptomania” do autor. Por altura da publicação, Stoker tinha à disposição inúmeros trabalhos científicos, nomeadamente os de Amelia Edwards e William Flinders Petrie. Mas a sua principal influência terá sido E. A. Wallis Budge, arqueólogo, curador de antiguidades egípcias e assírias do British Museum, para o qual recolheu inúmeros artefactos, e tradutor para inglês do Livro dos Mortos do Antigo Egito. Stoker tinha na sua biblioteca cinco livros de Budge, incluindo The Mummy (1893), sobre as antigas práticas funerárias egípcias.
Dobson explicou ao Observador que houve outros escritores que recorreram a trabalhos académicos para escreverem as suas histórias egípcias, demonstrando que tinham um interesse que ia além do trabalho literário e uma preocupação com a precisão histórica e arqueológica. “Henry Rider Haggard, que era amigo de Budge, é outro autor em cujos trabalhos é possível detetar um interesse por escritos sobre Egiptologia. Budge serviu de consultor para a autora Edith Nesbit quando ela estava escrever o seu romance para crianças, The Story of the Amulet. Em Stoker e Nesbit, sobretudo, os detalhes de Egiptologia fornecem um ponto de ancorarem com a realidade que contrasta com os elementos fantásticos e mágicos nos seus textos”, afirmou a especialista, destacando que, no entanto, isso não significa que “a relação entre egiptólogos e autores de ficção fosse sempre amigável”. “Budge e a popular romancista Marie Corelli, por exemplo, alimentaram uma contenda em entrevistas à imprensa e em correspondência privada no início do século XX.” Corelli é autora de Ziska (1897), um romance sobre reencarnação e vingança passado no Cairo no final do século XIX. Segundo Corriou, Haggard é talvez o único autor que escreveu sobre o Egito que tinha realmente uma obsessão com o tema. “Até alguns dos seus romances passados na África do Sul são inspirados pela cultura e religião egípcias”, disse a professora da Sorbonne, em Paris.
De acordo com William Hughes, Stoker baseou-se na descrição de Budge do túmulo do escriba Ani para a sepultura de Tera, que por sua vez foi inspirada nas informações recolhidas pelo arqueólogo inglês sobre Hatshepsut. A então recente descoberta do túmulo da a rainha-faraó por Howard Carter no Vale dos Reis, em 1902, terá também influenciado o autor. Filha de Tutmés I, faraó da 18.ª dinastia, Hatshepsut ascendeu ao trono do Antigo Egito após a morte do marido e meio-irmão, Tutmés II, como regente do enteado, Tutmés III, que era ainda menor de idade. No sétimo ano da regência, Hatshepsut fez-se coroar e passou a usar a nomenclatura real egípcia. Tal como Tera, a rainha-faraó tinha o hábito de vestia roupas masculinas, uma forma de afirmar o seu poder numa sociedade patriarcal, e usava a coroa dupla, que representava a união do Alto e Baixo Egito, que era apenas usada pelo faraó. Hatshepsut surge representada em esculturas com formas masculinas e femininas e os textos produzidos durante o seu reinado referem-se a ela tanto com o pronome pessoal masculino como com o feminino.
Quando Tumés III atingiu a maioridade, Hatshepsut recusou-se a deixar o poder. Foi apenas após a sua morte que o filho de Tutmés II pôde finalmente reinar sozinho. No final do reinado, o faraó procurou apagar todos os vestígios da existência da madrasta. As estátuas de Hatshepsut foram destruídas, os seus monumentos vandalizados e o seu nome apagado dos murais. O seu nome caiu na obscuridade. Foi apenas recuperado em 1822, quando a decifração dos hieroglíficos permitiu que os arqueólogos pudessem finalmente ler as inscrições no complexo de Deir Elbari, onde a rainha mandou construir o seu templo funerário.
Tal como Hatshepsut, o nome de Tera também foi apagado da história. A inscrição funerária da rainha informa que depois da sua morte os sacerdotes tentaram “apagar o seu nome” para se vingarem do facto de ter usurpado o seu conhecimento e poder. “Tera e Hatshepsut foram, de certa forma, condenadas pela sua rebelião contra o poder secular e espiritual do sacerdócio masculino”, afirmou Hughes. Mas as semelhanças não terminam aqui: as duas rainhas reinaram mais ou menos no mesmo período (cerca de 2.500 a.C.) e ambas são descritas como patronas das artes e como estando associadas a Hathor, deusa da fertilidade e da maternidade.
Mas apesar de Stoker se ter baseado na vida da rainha-faraó, o nome da mulher mumificada do seu romance é uma invenção. Este terá provavelmente sido escolhido para reforçar o laço estrutural com Margaret Trelawny, que é apresentada como uma espécie de reencarnação de Tera. Como notou Hughes, “Tera” é a inversão das últimas quatro letras de “Margaret”, embora foneticamente faça lembrar a palavra “terror”. Num ensaio que integra o livro Victorian Literary Cultura and Ancient Egipt, coordenado por Dobson, Ramirez destacou que Stoker não podia aderir demasiado ao equivalente histórico de Tera, porque isso lhe tiraria liberdade artística e gerar críticas devido a discrepâncias históricas. Contudo, não se podia afastar muito da verdade história, pois o seu romance podia tornar-se pouco credível. “Ele conseguiu ultrapassar esse desafio com mestria”, considerou a autora.
Mais do que um interesse no tema ou na sua popularidade entre os leitores eduardinos, Stoker terá escrito A Joia das Sete Estrelas com o intuito de retomar temas que lhe eram caros. Muitos dos seus romances incluem personagens que representam outros tempos, mas que habitam o mundo moderno. “Em Drácula, o conde representa o regresso da aristocracia feudal do passado; na Joia, é o Antigo Egito”, apontou Smith. “Ele [Stoker] estava interessado na ideia de que o mundo moderno, que parecia ser caracterizado por formas de progresso científico e económico, podia não ser um lugar seguro.” Na opinião de Corriou, “o cenário egípcio parece ter sido para Stoker uma forma de expressar de maneira diferente um tema que pode ser encontrado em vários dos seus trabalhos e que foi descrito pelo académico norte-americano Stephen Arata como ‘colonização revertida’. É algo que Arata identificou em Drácula, mas que também está presente na Joia das Sete Estrelas, uma vez que ambos os romances representam ameaças sobrenaturais associadas com personagens estrangeiras”. De acordo com a especialista, “tal como muitos homens e mulheres do seu tempo, Stoker estava preocupado com o contacto com estrangeiros trazidos pela expansão do império britânico e o tema da contaminação do vampiro que ele desenvolveu em Drácula é testemunha desse medo xenófobo de ver o sangue britânico tornado impuro pela chegada de estrangeiros ameaçadores como Drácula. Isto é algo que também encontramos em A Joia das Sete Estrelas, em que uma múmia egípcia que foi levada para o interior de uma casa britânica, ‘contamina’ outras personagens ao torná-las semelhantes a ela”.
Apesar da inspiração egípcia, Dobson lembrou que A Joia das Sete Estrelas é, acima de tudo, um romance gótico, “um dos géneros influenciado e instruído pela Egiptologia no final do século XIX”. “O fascínio com as interações entre a antiguidade e a modernidade, e especificamente com o lugar do Antigo Egito no mundo moderno, é típico dos textos góticos que se inspiraram no Antigo Egito”, disse a especialista, especificando que os “temas típicos destes textos incluem o exotização do Egito, ansiedades em relação ao potencial violente de corpos antigos e as possibilidades ocultas do conhecimento egiptológico.”
Para Smith, “o romance pode ser lido como uma narrativa de vingança sobre uma múmia, Tera, tirada do seu túmulo, ressuscitada e à procura de vingança porque o seu túmulo foi profanado”. Existia na altura em Inglaterra uma discussão viva sobre a perturbação de antigos locais de enterro, que surgiu após a descoberta do túmulo de Tutankhamon e a alegada maldição que matou todos os envolvidos. Alguns comentadores afirmavam que estes locais não deviam ser perturbados, enquanto outros defendiam a necessidade de aceder aos túmulos para fazer avançar o conhecimento sobre o Antigo Egito. “Existem muitos contos sobre múmias que regressam à vida e atacam os seus colecionadores, ao mesmo tempo que estas múmias resistem as tentativas de serem transformadas em objetos exóticos”, afirmou Smith. “Existe alguma ambivalência sobre isto no romance de Stoker, porque tem dois finais, mas é claro que sugere que Tera tem direito à sua vingança.”