A poucos dias do arranque da campanha oficial e depois de muitas horas e quilómetros em clima pré-eleitoral, André Ventura trouxe uma novidade para o centro do debate político: o Chega pode aceitar um governo à direita em que apenas impõe um acordo único de governo e sem a presença de elementos ligados ou escolhidos pelo partido — contrariamente a tudo o que tinha vindo a ser repetido à exaustão durante os últimos meses (e anos).
Se esta premissa é mais uma nas contas, há outra que o Chega não pode excluir da equação: um voto no partido pode mesmo tornar-se inconsequente tendo em conta o cenário que se está a desenhar. A Aliança Democrática tem começado a subir ligeiramente nas sondagens, está a afirmar-se timidamente à frente do PS e, ao mesmo tempo, Ventura tem alimentado a tese de que o Chega será uma peça-chave em qualquer cenário de governabilidade. Porém, o “não é não” de Luís Montenegro e a solução de Bolieiro nos Açores mostram que o partido conservador pode ficar mesmo afastado de qualquer hipótese governativa.
O plano que vinha a ser paulatinamente traçado e colocado em prática foi reajustado quando as eleições antecipadas se tornaram uma realidade. E no dia em que o governo de António Costa caiu, Ventura pôs em andamento uma estratégia de moderação — que nem sempre tem visto a luz do dia —, começou o esforço de normalização do partido com a apresentação de nomes vindos diretamente de outros partidos para as listas do Chega e acimentou a narrativa de que um governo da AD iria sempre precisar do seu partido no dia seguinte.
As frases de Ventura sobre o tema não enganam: “Só há governo se o Chega fizer parte”; “só há duas hipóteses: ou não há governo ou há governo com o Chega”; “nunca vai haver um governo à direita sem o Chega”, “nem que Cristo desça à Terra”, chegou a dizer. E bem antes do crescimento atual do partido, chegou mesmo a exigir ministérios. Ainda que após a queda do Governo tenha chegado a admitir ficar fora de um governo caso essa fosse uma “exigência do Presidente da República”, dias depois dos resultados e consequente incógnita nos Açores apostou naquilo que parece um flic-flac à retaguarda relativamente ao discurso dos últimos meses:
“Até a nível nacional nunca disse que ser parte ou não ser parte [de um governo] era para mim decisivo, o decisivo é haver um acordo de governo e não parlamentar”, explicou André Ventura aos jornalistas, contrariando-se a si próprio, e abrindo portas a um acordo de governo sem pessoas do Chega no executivo e assente apenas numa “espécie de documento conjunto de governo que seja o primeiro passo para poder haver uma votação positiva quando o governo for a votos”.
Por outras palavras: André Ventura deixa espaço para que o Chega possa votar a favor de um governo de direita, mesmo que não tenha ministros ou secretários de Estado e desde haja um acordo entre os partidos em que se “definem quais são as áreas prioritárias de intervenção” — e passou a considerar essa presença no executivo uma “questão lateral”.
Ainda que considere que não faz sentido um governo sem responsabilidades, até porque isso se aproxima da solução de incidência parlamentar que o Chega firmou nos Açores e que é tida como uma “má experiência”, Ventura iniciou uma espécie de sprint final de aproximação a uma solução alternativa de direita, da qual tem sido constantemente afastado.
As acrobacias para um cenário imprevisível
Em declarações ao Observador, um dirigente do Chega resume a situação em poucas palavras: “A situação é muito difícil e não é fácil prever o que vai acontecer, por isso estamos a navegar à vista.” Perante uma “evolução das sondagens não muito clara”, no partido de Ventura tenta perceber-se o fenómeno que pode estar em causa quando a AD surge a crescer e o Chega está perto dos 20% em várias pesquisas num “país tradicionalmente de esquerda” — e questiona-se de onde estão a vir os votos, “se haverá uma grande diminuição da abstenção” ou se há “muitos eleitores de esquerda” a optar pelo Chega.
Ora, perante o enigma que será o resultado a 10 de março, nas hostes do Chega há uma ideia comum: a postura de André Ventura serve para transmitir a perceção de que “não estamos a dificultar e que estamos a dar todas as provas de boa-vontade”, sendo que há como prioridade “evitar eleições num curto prazo de tempo” — ainda que André Ventura não afaste por completo esta possibilidade e assuma que a política é um risco.
“O Chega nunca fecha a porta”, assegura um outro dirigente, deixando claro que o resultado alcançado pelo partido terá um reflexo no momento das negociações e recusando a ideia de que o partido se pode tornar inconsequente, atirando as responsabilidades para as costas do PSD caso prefira formar um governo sem o falar com o Chega. “Com o resultado que se espera, se nos viram as costas não estamos para isso”, reconhece-se no núcleo duro de Ventura, onde se alimenta a tese de que o Chega até sai beneficiado se ficar na oposição caso um governo do PSD seja viabilizado pelo PS.
Porém, sublinha a mesma fonte, “um governo minoritário na situação em que o país está é sinal de fragilidade”. E, portanto, havendo “muitas incógnitas” sobre como agirá o PSD no dia seguinte, nos corredores do Chega acredita-se que é preciso “abrir várias opções” na tentativa de alcançar um diálogo, desde logo porque há a crença de que há sensibilidades dentro do PSD que estão mais disponíveis para um entendimento com o Chega. Aliás, como o Observador explicou, no partido ainda há a esperança de que, se a Aliança Democrática ficar em segundo e Luís Montenegro cumprir o prometido e não governar, haja alguém que se chegue à frente para liderar uma alternativa à direita. O nome de Passos Coelho é o mais desejado, mas o facto de não ir a votos pode complicar a vida de Marcelo Rebelo de Sousa e no Chega acredita-se que mesmo dentro do atual PSD há pessoas que aceitariam o desafio.
Seja qual for a decisão, na esfera de decisão do Chega existe a ideia de que o ónus não pode ficar no partido de André Ventura quando forem dadas “todas as opções” ao PSD para decidir e que, nesse caso, no fim do dia é o PSD que fica com a responsabilidade de escolher se prefere estabelecer a “linha vermelha com o Chega” ao invés de “criar uma linha vermelha com o PS”. Ou seja, com a nova estratégia (ou com o aperfeiçoamento da antiga) o Chega parece querer inverter uma questão que lhe tem sido dirigida — se vai ou não viabilizar um governo minoritário — e fazer com que sejam os sociais-democratas a ficar com essa responsabilidade.
A surpresa nos debates que obrigou à recuperação do ADN
Ainda na campanha, e paralelamente à necessidade de sublinhar constantemente que o Chega está de portas abertas a entendimentos, André Ventura tinha em mãos ajudar o partido a crescer através dos debates, onde no passado conseguiu surpreender muitos dos líderes partidários. Entre os dirigentes reconhece-se que o arranque não foi brilhante, nomeadamente porque “não se estava à espera desta agressividade toda” por parte dos adversários.
“André Ventura foi apanhado pela estratégia dos outros líderes, que começaram a usar a tática do interromper”, explica um dirigente do partido, que reconhece que o líder do Chega pode ter ficado “surpreendido pela agressividade” usada nos primeiros debates — “Foi surpreendido pela tática de Inês Sousa Real, o debate não correu bem nem a um nem a outro, mas a líder do PAN usou a tática de Francisco Rodrigues dos Santos.”
Sendo um dos líderes políticos em função mais antigos em Portugal é “normal que comecem a conhecer a tática”, explica um dirigente do Chega, referindo que estão a usar essa mesma técnica. O que, aos olhos de alguns dos dirigentes do Chega, foi ainda mais flagrante porque André Ventura tentou “interromper menos” e passar “mensagens e o programa eleitoral” do partido para chegar diretamente ao eleitoral e viu-se obrigado a regressar ao modelo original.
“As pessoas estão à espera de um André Ventura que é o André Ventura e que não perca o ADN do André Ventura”, enaltece a mesma fonte, frisando que nos debates seguintes tem “corrido muito melhor” e que com Mariana Mortágua e Pedro Nuno Santos já se sentiu essa mudança. Ainda assim, acredita-se que é feita uma alteração conforme o público-alvo, com fonte do núcleo duro a explicar que André Ventura “usa o debate para chegar ao eleitorado” que pretende, “principalmente quando é em canal aberto”. Com críticas ao “mau comentariado”, o Chega acaba a desvalorizar, crente de que a mensagem chega às pessoas.
Com as portas aparentemente fechadas na AD, o Chega continua à procura de uma solução em que não se torne um voto inconsequente e incapaz de influenciar o poder, entalado entre a tentativa de moderação, a necessidade de manter o eleitorado descontente já conquistado e todas as acrobacias para conseguir pressionar a direita a não o deixar fora das contas.