As barreiras já não eram suficientes. Desde o início de novembro, centenas de migrantes oriundos de países do Médio Oriente e do Norte de África têm chegado à maior fronteira externa da União Europeia — entre a Finlândia e a Rússia. Para enfrentar esta vaga migratória, os dirigentes finlandeses decidiram encerrar, em meados deste mês, praticamente todos os postos fronteiriços, deixando apenas o de Raja-Jooseppi (no Círculo Polar Ártico) aberto. No entanto, esta terça-feira, em nome da “segurança nacional”, Helsínquia foi mais longe e encerrou todos os pontos que permitiam a entrada desde território russo a partir de quinta-feira até o próximo dia 13 de dezembro.
Surgindo numa altura em que as relações entre a Finlândia e a Rússia atravessam um momento conturbado, a decisão causou desconforto no Kremlin. O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Alexander Grushko, classificou-a como “simplesmente irracional” e deixou um aviso: “Os cidadãos finlandeses vão sofrer”.
Desde que a guerra na Ucrânia começou, ciente dos riscos de segurança que corria no novo panorama geopolítico da Europa, o país nórdico aproximou-se do Ocidente e da NATO, o que culminou na adesão de Helsínquia à Aliança Atlântica em abril de 2023. A Rússia manteve-se sempre crítica deste novo posicionamento da Finlândia, que abandonara a política de neutralidade que adotou durante a Guerra Fria, ameaçando com “sérias repercussões militares” e admitindo tomar “contramedidas” face à nova realidade.
Mais de meio ano depois de a Finlândia ter aderido à Aliança Atlântica, a chegada de migrantes às fronteiras finlandesas pode ser uma primeira forma da a Rússia retaliar contra o país vizinho? Moscovo já admitiu que esta nova “realidade político-militar” contém riscos “colossais de desestabilização” e que vai tomar todas as medidas de precaução possíveis.
Migrantes são instrumento para “desestabilizar” Finlândia
Há alguns meses, de acordo com dados da Guarda Fronteiriça Finlandesa, chegava apenas um requerente de asilo por mês às fronteiras terrestres finlandesas com a Rússia. Em novembro, que ainda não terminou, já são mais de 900. Na sua maioria, tratam-se de homens na casa dos 20 anos — oriundos de países como Afeganistão, Marrocos, Quénia, Paquistão, Somália e Síria —, mas também há crianças e famílias inteiras nos postos fronteiriços. Todos enfrentam o rígido outono finlandês, em que as temperaturas podem atingir os 30 graus negativos, para poderem entrar na Finlândia e no espaço Schengen.
Perante esta vaga migratória, a Finlândia apontou o dedo à Rússia. “Temos provas de que não só as autoridades fronteiriças russas estão a deixar que pessoas sem documentação cheguem à fronteira, como também estão ativamente a ajudá-las a chegar às zonas fronteiriças”, denunciou a ministra dos Negócios Estrangeiros, Elina Valtonen, em entrevista à Associated Press, que não tem dúvida de que se trata de uma manobra que faz parte de uma “guerra híbrida”.
O objetivo de Moscovo é claro: desestabilizar a Finlândia e a União Europeia. Para o ministério dos Negócios Estrangeiros finlandês, existe uma “instrumentalização” dos migrantes por parte das autoridades russas. Há mesmo o risco, segundo a diplomacia do país, de que este “tipo de entrada ilegal possa escalar e possa intensificar-se” nos próximos dias.
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Em resposta, a Finlândia colocou barreiras e armado farpado nos postos fronteiriços, encerrando-os praticamente a todos na semana passada. Entre os receios do governo finlandês, está o facto de este fenómeno representar uma “ameaça séria à ordem pública e à segurança nacional”, testando as capacidades dos serviços de imigração. Há ainda o risco, sublinhou o executivo nórdico, de que “pessoas com cadastro ou radicais” possam estar entre as pessoas que estão a tentar no país.
Em declarações à Associated Press, Klaus Dodds, professor universitário de geopolítica na Royal Holloway, pertencente à Universidade de Londres, concorda com as posições do governo da Finlândia de que “os russos têm estado a instrumentalizar a migração por algum tempo”, com a intenção de produzir “problemas dentro das sociedades que eles rotulam como hostis”. “Isso tem tudo a ver com a desestabilização da Finlândia.”
Fronteira fechada duas semanas é medida para proteger “segurança nacional”
Esta terça-feira, o primeiro-ministro finlandês, Petteri Orpo, a ministra do Interior, Mari Rantanen, e o líder da guarda fronteiriça, Matti Sarasmaa, realizaram uma conferência de imprensa conjunta, em que anunciaram que a única fronteira aberta com a Rússia — Raja-Jooseppi — seria encerrada. A decisão surge, detalharam os governantes, após novas informações que os serviços secretos recolheram e é apresentada como sendo “proporcional” relativamente às ameaças que o país sofre.
A fronteira será encerrada a partir do próximo dia 30 de novembro e manter-se-á assim até pelo menos 13 de dezembro. A ministra do Interior não rejeitou que a medida seja prolongada, caso a avaliação do risco permaneça elevada. Para além disso, até aquela data, os requerentes de asilo serão redirecionados para portos e aeroportos.
A ministra do Interior justificou a medida, referindo que, “na situação atual, é necessário fechar toda a fronteira oriental”. “Tivemos de tomar esta decisão para proteger a segurança nacional da Finlândia contra esta operação híbrida russa“, afirmou Mari Rantanen. Por sua vez, o primeiro-ministro finlandês defendeu que quer “a fronteira oriental regresse novamente ao normal o mais rapidamente possível”, deixando igualmente um aviso à Rússia, que, na ótica de Petteri Orpo, “causou esta situação e é capaz de terminar com ela”: “Não vamos aceitar qualquer tentativa para minar a nossa segurança nacional”.
O governo finlandês tem garantido que existe uma base legal para o encerramento das fronteiras, mas existem algumas preocupações expressas por algumas organizações internacionais relativamente ao estado em que os migrantes que chegam às fronteiras. Por exemplo, apesar do frio extremo, vários vão de bicicleta para os postos fronteiriços e sem roupas adequadas.
Ciente deste processo, a Organização Internacional das Migrações (OIM), citada pelo Guardian, apelou a que “os dois lados” cumpram as “obrigações legais sob o Direito Internacional”, garantindo a “segurança, dignidade e a proteção dos direitos dos migrantes”. Adicionalmente, pediu que se criem e se expandam rotas alternativas para que possa “providenciar uma alternativa à imigração irregular”.
Adesão à NATO na origem da ação russa
Para os dirigentes finlandeses, não há dúvida de que se trata de uma resposta à entrada do país na NATO. A ministra dos Negócios Estrangeiros considera que a facilitação da ida de migrantes para as fronteiras é precisamente uma retaliação contra a adesão do país à Aliança Atlântica. Ainda assim, Elina Valtonen sublinhou que a organização militar represente uma “ameaça” para a Rússia. “A NATO nunca foi uma ameaça para a Rússia, nem agora nem no futuro.”
Por sua vez, o secretário-geral da NATO subscreveu igualmente que a “Rússia está a utilizar a imigração como uma ferramenta para colocar pressão sobre os países vizinhos e aliados”, assegurando que “não vai conseguir” levar à avante a sua estratégia. “Continuamos unidos”, disse Jens Stoltenberg, que classificou a decisão do governo finlandês como “acertada”.
Ora, isso não será assim tão linear para o Kremlin. O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Alexander Grushko, disse, esta terça-feira de manhã, num fórum sobre segurança realizado em Moscovo, que a Rússia sabe que a Finlândia já concluiu os acordos necessários para o “destacamento de forças estrangeiras” da NATO.
“É óbvio que toda a aliança aumentou a zona de contacto com o maior inimigo, como vemos nos documentos a que tivemos acesso. E a Finlândia será obrigada a fazer o que todos os aliados têm de fazer: tomar todas as medidas necessárias para o destacamento de forças estrangeiras. Sabemos que a Finlândia concluiu acordos bilaterais relevantes”, assinalou Alexander Grushko, citado pela TASS.
Diante deste cenário, o representante da diplomacia russa garantiu que a Rússia não ficará de braços cruzados e tomará medidas de precaução. “Como o Presidente da Federação Russa disse, faremos tudo tendo em consideração essa mudança da situação”, que, frisou Alexander Grushko, implica “um risco colossal de desestabilização” para a Rússia.
Mais tarde, o mesmo responsável do Kremlin comentou a decisão finlandesa de encerrar todos os postos fronteiriços. Alexander Grushko adjetivou-a como “simplesmente irracional” e frisou que a Rússia vai tentar contactar os “colegas finlandeses” para tentar esclarecer por que motivo é que “decidiram fechar a fronteira”. Salientou ainda que os cidadãos da Finlândia vão “sofrer” com esta decisão.
“Um dejà vu”: o modus operandi russo com alguma “malícia”
A par da NATO, a União Europeia também expressou preocupações com a fronteira finlandesa. A comissária para os Assuntos Internos, Ylva Johansson, lamentou que a Rússia “esteja a usar pessoas” e “enganá-las”, tentando que elas vão para a fronteira entre a Finlândia e a Rússia sem terem “vistos ou autorizações de residência”. “A fronteira finlandesa é a fronteira da UE. A União Europeia está ao vosso lado”, referiu a responsável comunitária, que anunciou, na terça-feira passada, que 50 agentes da Frontex — a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira — iam ser enviados para a fronteira russo-finlandesa.
Ylva Johansson deixou no ar que sentia um “dejà vu”, aludindo que a instrumentalização dos fluxos migratórios já foi utilizada pela Rússia e pela sua aliada Bielorrússia. Durante a semana passada, o Presidente finlandês, Sauli Niinistö, recordou igualmente que, entre 2015 e 2016, a Rússia também permitiu que migrantes se deslocassem a pontos fronteiriços do norte do país, após Helsínquia ter dado luz verde ao aumento das atividades militares com a NATO.
Há sete anos, após a indignação finlandesa, a Rússia e a Finlândia concordaram que apenas entravam pelas fronteiras de Salla e Raja-Jooseppi cidadãos finlandeses, russos e bielorrussos — estes dois últimos só poderiam ficar no país durante 180 dias. Na altura, a presidência finlandesa justificou a medida com o objetivo de “restringir a imigração ilegal organizada”.
Mais recentemente, a Bielorrússia foi acusada de usar a mesma estratégia. Após a reeleição do líder bielorrusso Alexander Lukashenko, milhares de pessoas saíram à rua para protestar contra os resultados eleitorais, alegando que tinha havido fraude. A União Europeia apoiou as manifestações, principalmente os vizinhos da Bielorrússia, como a Polónia ou os Bálticos.
Em jeito de retaliação, o Chefe de Estado bielorrusso permitiu que milhares de migrantes do Médio Oriente e de países africanos se dirigissem às fronteiras com a União Europeia, tais como a Polónia e a Lituânia. Em entrevista à BBC, Alexander Lukashenko admitiu que “alguém” poderá ter ajudado milhares de pessoas a irem para as fronteiras da UE. “Se eles quiserem ir, eu não vou pará-los, porque eles não estão a ir para o meu país.”
Para Bruxelas, não há dúvidas que Alexander Lukashenko, em conluio com Vladimir Putin, levou a cabo um “esquema deplorável” em que “instrumentalizou” migrantes. Josep Borrell, chefe da diplomacia da UE, indicou que o regime bielorrusso converteu “migrantes num instrumento para alcançar um determinado objetivo político”.
Noutras latitudes, a situação parece agora voltar a repetir-se. E Sauli Niinistö avisou que a Finlândia devia estar preparada para “alguma malícia” da Rússia. O motivo? Para o Presidente finlandês, a Rússia quer que o país se lembre “todos os dias de que se juntou à NATO” — e das futuras consequências dessa decisão.