Reportagem dos enviados especiais do Observador a Kiev
Ao terceiro dia desta guerra, os médicos do hospital pediátrico de Kiev foram avisados de que estava a caminho das urgências um menino de 6 anos em estado muito grave. Seguia no carro com os pais e com as irmãs, possivelmente a tentar sair da capital, quando foi atingido por fragmentos de uma bomba. No pescoço, na coluna e na cabeça.
Entrou nas urgências já em coma, com uma hemorragia que não parava. “Foi registado no nosso departamento como ‘doente sem nome número 1’”, recorda ao Observador o diretor de neurocirurgia, Pavlo Plavskyi.
Os médicos conseguiram reanimá-lo. Foi submetido a três intervenções cirúrgicas. Mas passado três dias não resistiu a um edema cerebral e morreu. Foi a primeira criança a perder a vida (e única até agora) no maior hospital pediátrico da Ucrânia, desde que começou esta guerra.
“O nosso dia mais duro foi quando morreu esta criança”, admite o diretor clínico do hospital, o microcirurgião Valery Bovkun. “Foi logo no início da guerra e foi chocante. Agora já nos estamos a habituar, faz parte do novo normal”.
Pavlo, o diretor de neurocirurgia que acompanhou o caso, também ficou emocionalmente abalado: “Antes da guerra, havia sempre uma pergunta difícil de responder: porque é que um bebé tem um tumor cerebral? Agora a questão é ainda mais difícil: porque é que um menino que segue sentado num carro porque a tia acha que devem fugir morre, por causa de uma decisão [de Putin] tomada por razões inacreditáveis? E sem ter culpa de nada: é só um rapaz. Se um doente tem um tumor, tentamos fazer tudo para o salvar. Se tem um ferimento grave, também tentamos fazer tudo. Mas claro que fico mais zangado por ser provocado por uma guerra.”
A dificuldade de fazer chegar ao hospital as crianças feridas. E os desenhos com corações
Segundo as autoridades ucranianas, morreram 103 crianças desde que a Rússia começou a guerra há três semanas. Muitas das crianças feridas com gravidade nem sequer conseguem chegar ao hospital com vida, devido à dificuldade de circulação provocada pela perigosidade dos confrontos e dos disparos de rockets, pelo recolher obrigatório e pelos checkpoints constantes em todo o país. “Algumas pessoas pedem ajuda urgente por as crianças terem ferimentos, mas não conseguem vir até ao hospital. Ligamos pouco depois e respondem: ‘Desculpa, o bebé morreu.’ Temos tantas chamadas assim…”, revolta-se o diretor do hospital, Vladimir Zhovnir.
A última chamada deste género foi feita para o diretor de neurocirurgia: pedia auxílio para socorrer duas crianças atingidas e que teriam ficado com traumatismos cranianos, a 50 km do hospital. “Passado 50 minutos soube que uma das crianças morreu mesmo antes de chegar a ambulância. O outro doente não pôde ser trazido para aqui, por já ser de noite e haver bombardeamentos. Trazer as crianças feridas até ao hospital em segurança é o maior problema.”
Até esta quinta-feira tinham dado entrada no Hospital Pediátrico de Kiev 15 crianças com ferimentos provocados diretamente pela guerra. “Não foram mais porque muitas conseguiram fugir com as famílias”, justifica Valery Bovkun, o diretor clínico.
Yurii Dmytruk, cirurgião ortopédico, não vai esquecer a mãe e a filha que estavam a tentar fugir para chegar à estrada que as ia levar a Odessa quando foram apanhadas por um bombardeamento. Os destroços de um míssil atingiram-nas nas pernas. Estão vivas, mas continuam internadas e a recuperação vai ser difícil.
“Os doentes acordam confusos e estupefactos, a tentar perceber como é que um míssil entrou nas vidas deles”, conta Yurii. “Isto provoca um grande trauma psicológico, que os vai acompanhar no resto das suas vidas”.
E o diretor do hospital fala em crianças que perderam os olhos e o nariz, mas o caso que mais o emocionou foi o de uma menina de 6 anos que viu morrer a mãe quando um míssil atingiu a sua casa. A criança sobreviveu com ferimentos e agora, no hospital, todos os dias desenha um coração dedicado à mãe. Com nuvens por cima.
Vova, 13 anos, viu morrer o pai e já foi submetido a três cirurgias
Tem um curativo que lhe cobre quase toda a parte esquerda do rosto. Está sentado na cama a jogar no telemóvel, com um carregador portátil, sumos e um rato de peluche. Vova, um rapaz de 13 anos, é mais um dos jovens sobreviventes da guerra aqui internados.
Seguia de carro para a estação de comboios de Kiev no dia 26 de fevereiro, juntamente com os pais, a tia, uma irmã, um amigo da mãe, o cão e o gato da família. Apesar do recolher obrigatório, passaram dois checkpoints, mas ao terceiro começou um tiroteio que crivou o carro de balas e atingiu todos os ocupantes.
O pai morreu logo no local. Vova foi transportado de urgência para o hospital com ferimentos no pescoço, na coluna e numa perna. Já foi submetido a três cirurgias, restauraram-lhe a dentição, mas ainda não conseguiu voltar a andar.
Além da presença da mãe e do acompanhamento médico regular, Vova tem apoio psicológico. E recebe visitas frequentes dos voluntários que fazem de “doutores palhaços” no Hospital Pediátrico de Kiev.
Já se habituou entretanto às sirenes que ecoam em média dez vezes por dia: “Atenção, alerta: ataque aéreo”. Quando surge este aviso pelos altifalantes, todos os doentes e pessoal devem afastar-se das janelas e, se possível, ir para o corredor.
A retirada de 500 doentes para outros hospitais na Ucrânia e no resto da Europa
Na primeira manhã depois do início da guerra, viveram-se aqui momentos muito conturbados: muitos médicos tiveram de ir pôr as famílias a salvo, antes de voltarem ao serviço; muitos doentes procuraram formas de sair das instalações; e a segurança aconselharia a que fossem todos transferidos para o bunker subterrâneo, mas nalguns casos era difícil criar condições para continuarem a receber medicação e suporte básico de vida fora das enfermarias. Havia ainda alguns imunodeprimidos, com poucas defesas, que não podiam ser colocados junto dos outros doentes, a tão curta distância, sem pôr em risco a própria vida.
Nos primeiros dias, enquanto se tentava resolver esses problemas mais urgentes, parte dos 600 doentes era transferida para o abrigo durante a noite, juntamente com o staff, para ter mais garantias de proteção — ainda esta quarta-feira vários vidros do hospital foram estilhaçados, na sequência de um bombardeamento muito próximo.
Esta quinta-feira, o próprio diretor do hospital ajudou a transportar malas dos últimos doentes que foram transferidos para outros hospitais em Lviv ou noutros países. “O nome do nosso hospital é Okhmadyt. Significa Mãe e filhos seguros. Costuma ser o sítio mais pacífico da Ucrânia. Agora temos a guerra e pode ver os doentes e famílias a serem retiradas para o oeste da Ucrânia, e alguns para outros países. Porque em todo o lado temos bombas, rockets e tiroteios”, justifica Vladimir Zhovnir.
Dos 600 doentes internados antes do início da invasão, sobram agora apenas cem, que estão em situação mais crítica. Evita-se assim o risco de os outros 500 doentes entretanto retirados serem atingidos por um bombardeamento aqui. E cria-se espaço para um expectável crescimento de emergências resultante do agravamento da violência. A retirada dos doentes ajuda a explicar a aparente tranquilidade que se vive para já nos corredores do hospital da capital de um país em guerra.
A ira dos médicos ucranianos contra os russos em geral e contra Putin em particular
“O nosso hospital não precisa de médicos, nem de medicamentos, nem de dinheiro. Só precisa de paz”, revolta-se o diretor. “Queremos tratar crianças com doenças normais de crianças. Não com ferimentos de rockets ou balas. Preferimos assegurar tratamentos oncológicos do que tratar ferimentos de balas”.
Vladimir Zhovnir acusa a comunidade internacional de “cobardia”: “Só Bla Bla Bla e mais nada. Têm medo de Putin. Só os pequenos ucranianos não têm medo e estão a lutar contra Putin. Por isso peço a Portugal e a outros países: não tenham medo de Putin. Parem a Rússia de Putin em tudo. Parem os meios de comunicação dele. Parem o comércio dele. Apliquem embargo ao petróleo dele. Façam tudo contra a Rússia de Putin. Todos os que colaboram com ele estão a matar pessoas inocentes aqui. A seguir pode ser a Polónia, a Alemanha ou Portugal.”
A ira contra o ditador russo é um sentimento comum a vários médicos ouvidos pelo Observador. Muitos colocaram as famílias a salvo fora de Kiev ou mesmo no estrangeiro. Foi o caso do diretor de neurocirurgia: nos primeiros cinco dias levou a família para o hospital, com o cão e o gato, para evitar que ficassem em casa, num piso muito elevado junto à estação, o que é barulhento e mais perigoso. Depois enviou a mulher e a filha para a Alemanha de comboio. Agora vive todos os dias no hospital, onde se sente mais seguro. E evita correr o risco de ser preciso de urgência e não conseguir chegar, por causa do recolher obrigatório.
Pavlo Plavskyi é também membro da direção da Sociedade Europeia de Neurocirurgia Pediátrica e tinha contactos com alguns médicos russos da mesma especialidade. Um deles enviou-lhe uma mensagem a dizer que vai haver paz. Nem lhe respondeu. ”Não quero falar com eles. Porque os russos estão sentados em casa, a pensar que vai tudo ficar bem. Não estão como nós.”
O neurocirurgião já perguntou a si próprio o que faria se um soldado russo necessitasse dos seus cuidados de saúde: “Tratarei, porque sou médico. Mas farei tudo para o enviar para outro hospital assim que já não correr risco de vida.”
A ira máxima é destinada a Vladimir Putin. O cirurgião maxilo-facial Anatoly Timoschenko tratou pelo menos cinco crianças com ferimentos graves no rosto, mas não tem grande vontade de falar desses doentes: “Para abreviar, preferia matar Putin pelas minhas próprias mãos.” O diretor clínico Valery Bovkun não iria tão longe se tivesse de prestar cuidados médicos ao líder do inimigo: “Tratamos dele, mas vamos deixá-lo só com um dente — o que vai doer.”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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