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Um relatório publicado no final do mês de outubro no Reino Unido recomenda ao governo britânico que legisle no sentido de tornar obrigatória a denúncia de crimes sexuais contra crianças, mesmo que essa informação tenha sido obtida em ambientes protegidos pelo sigilo, incluindo o segredo da confissão que atualmente é garantido à Igreja Católica. Se for seguida pelo governo britânico, que já se comprometeu a responder ao relatório no prazo de seis meses, a medida poderá pôr em causa as relações entre Londres e a Igreja Católica, instituição para a qual o segredo de confissão é absolutamente inviolável.
A inviolabilidade do segredo de confissão tem, aliás, sido um dos grandes focos de tensão nas relações entre a Igreja e os governos de vários países ao longo dos últimos anos. A tensão adensou-se sobretudo depois de terem vindo a público, em diferentes lugares do mundo, relatos de abusos de menores cometidos por padres católicos durante a realização da confissão (com a subsequente ameaça à vítima de que não poderia falar do assunto). Mas também de situações em que elementos da Igreja tomaram conhecimento deste tipo de crimes durante a confissão, por terem sido confessados pelos abusadores ou mencionados pelas vítimas, e não os reportaram às autoridades civis, alegando que a proteção do segredo da confissão se sobrepunha ao dever de denunciar.
O caso mais paradigmático é o da Austrália, onde vários estados introduziram nos últimos anos novas leis que obrigam os padres católicos a quebrar o segredo de confissão se tiverem conhecimento de crimes sexuais contra menores. As leis surgiram na sequência do célebre relatório da Royal Commission publicado em 2017 e fizeram gelar as relações entre as autoridades australianas e a Igreja Católica. O arcebispo de Melbourne, Denis Hart, chegou mesmo a dizer que preferia ir para a prisão a violar o segredo da confissão. Agora, a mesma polémica chega ao Reino Unido.
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A recomendação surge no relatório final do Inquérito Independente ao Abuso Sexual de Crianças em Inglaterra e no País de Gales, uma investigação lançada em 2014 pelo governo britânico para estudar o modo como as instituições das duas nações, públicas e privadas, protegeram ou não as crianças que lhe estavam confiadas de abusos sexuais. O relatório foi publicado no final de outubro e inclui capítulos sobre as 15 investigações que decorreram em paralelo: uma delas à Igreja Católica (cerca de 9% da população britânica), outra à Igreja Anglicana (cerca de 15%), outra às diferentes entidades religiosas, e várias outras relativas a instituições públicas e privadas. A investigação foi liderada pela académica britânica Alexis Jay.
No segmento final do relatório, os membros da comissão que realizou o inquérito independente apresentam um conjunto de recomendações ao governo britânico. Uma delas prende-se com a denúncia obrigatória de todos os crimes sexuais contra crianças no Reino Unido. A recomendação é direta: “Uma pessoa deverá ser obrigada a denunciar sempre que receber uma revelação de abuso sexual de uma criança, seja pela criança, seja pelo perpetrador, ou se testemunhar o abuso sexual de uma criança. Não denunciar um caso nestas circunstâncias deverá ser um crime.”
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Além disso, de acordo com a recomendação da comissão independente, não devem ser abertas exceções. “Nem a liberdade de religião ou crença nem os direitos dos pais em relação à educação dos seus filhos podem, em algum momento, justificar os maus tratos a crianças ou impedir as autoridades governamentais de tomar medidas necessárias para proteger as crianças. Por isso, a comissão de inquérito considera que a denúncia obrigatória, tal como descrita neste relatório, deverá ser uma obrigação absoluta; não deverá ser sujeita a exceções com base nas relações de confidencialidade, religiosas ou de outra natureza.”
Se o governo britânico aceitar a proposta da comissão e legislar neste sentido, poderá estar em causa o segredo de confissão, privilégio de que a Igreja Católica recusa abdicar e que poderá colocar em causa as relações diplomáticas entre o Reino Unido e a Santa Sé, formalmente restabelecidas em 1982. Atualmente, a lei britânica é pouco clara sobre este assunto: habitualmente, o segredo da confissão é protegido pela lei por extensão da proteção que é dada à informação privilegiada de vários profissionais, incluindo advogados ou médicos. Este segredo, que abarca tudo o que é dito entre o padre e o confidente durante o período da confissão, é habitualmente respeitado devido à enorme rigidez da lei eclesiástica sobre o assunto.
Isto significa que se um padre católico tiver conhecimento de suspeitas de um crime de abuso sexual de crianças por o ter ouvido, durante a confissão, da boca do abusador, da vítima ou de uma testemunha, será obrigado a denunciá-lo à polícia. Se não o fizer, poderá ele próprio enfrentar uma acusação criminal. A recomendação da comissão de inquérito refere-se, no entanto, apenas a crimes que envolvam menores de 13 anos. A partir dessa idade, não é obrigatório denunciar situações caso haja a informação de que as relações são consensuais e que o menor não está em perigo.
Igreja Católica recusa qualquer violação do segredo de confissão, mesmo em casos de abuso
Historicamente, a Igreja Católica tem reagido mal a este tipo de imposições relativas ao segredo de confissão, que a instituição classifica como absolutamente fundamental para a sua missão espiritual. O Código de Direito Canónico estipula sem exceções que “o sigilo sacramental é inviolável”, pelo que “o confessor não pode denunciar o penitente nem por palavras nem por qualquer outro modo nem por causa alguma” (cânone 983). Aliás, a lei da Igreja reserva para o padre que violar o sigilo sacramental a pior das penas: a excomunhão latae sententiae, ou seja, de modo automático, a partir do momento em que o segredo é violado (cânone 1388).
Os padres devem proteger o segredo de confissão até com a própria vida, se assim for necessário. Aliás, a Igreja Católica até já canonizou vários santos que foram martirizados por terem recusado perante as autoridades civis quebrar o segredo da confissão. É o caso, por exemplo, do padre mexicano Mateo Correa Magallanes, assassinado em 1927 por recusar dizer aos militares revolucionários aquilo que tinha ouvido em confissão da boca dos elementos do grupo que lutava contra a perseguição da Igreja; ou do mais antigo São João Nepomuceno, que foi condenado à morte no século XIV por recusar dizer ao rei Venceslau IV os pecados que a sua mulher, a rainha da Boémia, lhe tinha revelado em confissão.
Para a Igreja Católica, a proteção do segredo de confissão situa-se no plano espiritual e é essencial para garantir que os católicos têm acesso a um espaço seguro onde podem falar sobre os seus pecados e receber o perdão divino de Deus, por intermédio do sacerdote — estando, por isso, acima da mera proteção de informações confidenciais. “O padre não pode quebrar o segredo para salvar a sua própria vida, nem para proteger o seu bom nome, para salvar a vida de outra pessoa ou para ajudar o curso da justiça”, escreveu recentemente o padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos principais conselheiros do Papa Francisco para a questão dos abusos sexuais de menores, num texto em que debate a relevância e atualidade do segredo de confissão. “O sigilo absoluto do confessionário explica porque é que as pessoas se sentem livres para dizer certas coisas em confissão que não diriam em mais lado nenhum.”
Mas as revelações dos últimos anos, com a publicação de relatórios e investigações um pouco por todo o mundo dando conta de como o segredo de confissão foi usado para encobrir (e às vezes praticar) abusos sexuais de menores, conduziram a uma crescente indignação pública contra o segredo de confissão. Na Austrália, depois da publicação do relatório da Royal Commission, o fim do segredo de confissão para os casos de abuso foi uma das principais recomendações dos investigadores e vários estados implementaram medidas nesse sentido — o que levou a Igreja a posicionar-se violentamente contra a proposta.
Além de vários bispos se terem pronunciado publicamente contra as novas leis, assegurando que os seus padres continuariam a respeitar o segredo de confissão, mesmo que isso significasse a prisão, o próprio Vaticano publicou uma nota diplomática a recordar que aquele sigilo é inviolável. Nesse documento, o Vaticano admite que o padre confessor “pode, e em alguns casos deve, encorajar uma vítima a procurar ajuda fora do confessionário ou, quando apropriado, a denunciar um caso de abuso às autoridades“.
Contudo, “se se tornasse uma prática comum para os confessores denunciar aqueles que confessam abusos sexuais de crianças, nenhum desses penitentes se voltaria a aproximar do sacramento e seria perdida uma oportunidade preciosa para o arrependimento e a reforma“, acrescentou a nota do Vaticano. Recentemente, numa coluna de opinião no jornal Crux, o jornalista Charles Collins, especialista na vida da Igreja Católica, notou com ironia: “Não sou de apostas, mas não acredito que argumentar que violar o segredo de confissão afasta os pedófilos do ‘arrependimento e reforma’ irá persuadir muitos legisladores.”
Em sentido contrário, também na Austrália, a Igreja Anglicana decidiu em 2014 acabar com o segredo de confissão quando estão em causa crimes. Aquela confissão cristã, que também tem uma lei interna que determina a inviolabilidade do segredo de confissão, decidiu numa reunião do Sínodo Geral da Igreja Anglicana da Austrália que a proteção do segredo de confissão não se sobrepunha à proteção de eventuais vítimas menores ou vulneráveis. Agora, de acordo com a imprensa britânica, a Igreja de Inglaterra poderá seguir pelo mesmo caminho, acabando com a inviolabilidade do segredo de confissão também entre os anglicanos do Reino Unido.
Em Portugal, lei civil protege ferozmente o segredo religioso — e bispos não querem falar em mudanças
No caso português, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, não fez nenhuma recomendação no sentido de abrir exceções ao segredo de confissão, mas a hierarquia eclesiástica portuguesa já se manifestou violentamente contra qualquer alteração à lei.
“Nunca esteve nem nunca estará em questão”, disse o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o bispo D. José Ornelas, em abril deste ano, quando foi questionado pelos jornalistas sobre a possibilidade de abrir exceções ao segredo de confissão quando estão em causa crimes de abuso de menores. “Seria uma injustiça muito grande porque abriria toda a confiança que é necessário que exista dentro da confissão, como em muitas outras profissões, como médico ou psiquiatra.” Ornelas acrescentou ainda que o segredo de confissão “não prevê nem nunca vai prever” exceções.
Em Portugal, além do Direito Canónico, existe uma forte proteção na lei civil para o segredo de confissão, garantida pela Concordata assinada entre o Estado português e a Santa Sé. Além de reconhecer a validade do Direito Canónico como orientador da legislação interna da Igreja Católica e de reconhecer liberdade religiosa à Igreja, a Concordata prevê expressamente que “os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério” (artigo 5.º), o que coloca limitações sérias à participação que um clérigo pode ter numa investigação criminal. Esta cláusula já foi até usada uma vez, no célebre caso dos abusos no seminário do Fundão, pelo bispo da Guarda, para invalidar o testemunho de um padre em tribunal.
Mas há mais. O próprio Código de Processo Penal (CPP) português prevê uma proteção absoluta ao segredo religioso, distinguindo-o até de outros segredos profissionais. “Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos”, lê-se no artigo 135.º do CPP, dedicado à proteção do segredo profissional durante uma investigação criminal.
O mesmo artigo prevê que o segredo profissional pode ser quebrado por ordem do sistema judicial. Deve ser o “tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais” a determinar a “prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”. Para tomar esta decisão, o tribunal tem de ouvir “o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa”.
Mas a lei acrescenta um ponto a seguir: esta exceção “não se aplica ao segredo religioso”. Ou seja, segundo a lei civil portuguesa, os tribunais podem obrigar um médico, um jornalista, um advogado, um psicólogo, um bancário e várias outras profissões a quebrar o seu sigilo profissional durante uma investigação criminal — mas não o podem fazer a um padre.
A comissão independente liderada por Pedro Strecht, e composta por Daniel Sampaio, Ana Nunes de Almeida, Álvaro Laborinho Lúcio, Filipa Tavares e Catarina Vasconcelos, está em funções desde janeiro deste ano, depois de ter sido convocada pela própria Igreja para investigar a realidade dos abusos de menores desde a década de 1950 até à atualidade. Até agora, a comissão já recebeu 424 testemunhos, além de já ter identificado provas de encobrimento por vários bispos portugueses, e deverá publicar um relatório final em janeiro do próximo ano.