O continente africano está em risco de se transformar no campo primordial do “jihadismo transnacional”, com cerca de vinte grupos extremistas associados ao Estado Islâmico ou à Al-Qaeda a operar atualmente em pelo menos 14 países, adverte o relatório internacional “Liberdade Religiosa no Mundo 2021”, publicado esta terça-feira a nível global pela fundação cristã Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), uma organização pontifícia responsável por coordenar as respostas de caridade da Igreja Católica nos países onde existem violações à liberdade religiosa.
“A África Subsariana está pronta para a infiltração das ideologias islamitas”, avisa o relatório, num segmento assinado por Mark von Riedemann, diretor da AIS com o pelouro da liberdade religiosa. “Gerações de pobreza, corrupção, violência intercomunitária pré-existente entre pastores e agricultores sobre os direitos à terra (exacerbada pelas consequências das alterações climáticas), e estruturas estatais fracas tornaram-se um terreno fértil para os jovens marginalizados e frustrados. Isto, por sua vez, tornou-se uma oportunidade de recrutamento para os extremistas que os perseguem com promessas de riqueza, poder e a queda de autoridades corruptas.”
Todo este contexto conduziu a uma deslocação gradual do principal foco da violência jihadista do Médio Oriente para a África subsariana. “Extremistas islamitas testados em combate deslocaram-se para sul das planícies do Iraque e da Síria para se ligarem a grupos criminosos locais nos países subsarianos da Mauritânia, Mali, Burquina Faso, Níger, Nigéria, Norte dos Camarões, Chade, República Centro Africana, República Democrática do Congo, Somália e Moçambique”, detalha o relatório, que apresenta dados sobre todos os países do mundo e estudos de caso sobre a Nigéria e Moçambique.
“Os militantes, em muitos casos mercenários com fins lucrativos ou combatentes locais que perseguem interesses locais, incitados por pregadores que aderem a uma ideologia de jihadismo salafita, atacam autoridades estatais, militares, policiais e civis, incluindo chefes de aldeia, professores (ameaçados por causa do currículo secular), líderes muçulmanos e cristãos, e fiéis”, continua o documento.
Para compreender a real extensão do problema do jihadismo, que busca impor pelo terror um califado global em África, é preciso compreender a complexidade do tecido social do continente e também ter em conta que “a ameaça dos grupos islamitas militantes em África não é monolítica, mas compreende uma mistura em constante mudança de cerca de duas dezenas de grupos que atuam e cooperam cada vez mais ativamente em 14 países”, aponta o relatório, citando dados do Centro Africano de Estudos Estratégicos.
“Os grupos islâmicos mais ativos na África Subsaariana incluem: Jama’at Nusrat al Islam Wal Muslimin (JNIM), uma coligação de afiliados islamitas como a FLM e a Al-Qaeda (AQIM), Boko Haram, Ansaroul Islam, Katiba Salaheddine, Jihad al-Islamiyya, Al-Shabaab na Somália, e o Estado Islâmico transnacional no Grande Sara (ISGS), África Ocidental (ISWA), África Central (ISCA) e Somália (ISS)”, detalha o documento.
Situação deteriorou-se nos últimos dois anos
O relatório da fundação AIS especifica que a situação em África tem conhecido uma deterioração significativa ao longo da última década, com os últimos dois anos a terem sido cruciais para a consolidação de uma rede jihadista num continente em que, apesar da pobreza extrema, as comunidades têm um historial de convivência relativamente pacífica.
“Na África Subsariana, as populações têm sido historicamente divididas entre agricultores e criadores de gado nómadas, sofrendo ocasionalmente surtos de violência resultantes de conflitos de longa duração por motivos étnicos e de luta por recursos, mais recentemente exacerbados pelas alterações climáticas, pobreza crescente e ataques de bandos criminosos armados. Apesar destes conflitos, na sua maioria, comunidades e diferentes grupos religiosos têm vivido juntos em relativa paz. Na última década, contudo, a violência irrompeu em toda a região com uma inimaginável ferocidade”, diz o documento.
“Nos últimos dois anos, os grupos jihadistas consolidaram a sua presença na África Subsariana e a região tornou-se um paraíso” para os grupos terroristas que pretendem instituir várias províncias num “autoproclamado califado de uma rede islâmica transnacional”. Com a consolidação do extremismo islâmico na região verificou-se uma sofisticação nos métodos de combate: “Ataques de bandos criminosos locais, impulsionados por pregadores jihadistas salafitas, passam de ataques esporádicos e arbitrários a ataques ideológicos e específicos”.
A cada dois anos, o relatório internacional da AIS classifica os países do mundo consoante o grau de liberdade religiosa que se vive nos seus territórios. No documento deste ano, 26 países foram classificados com a pior designação, a de “perseguição, crimes de ódio e violência desencadeada por motivos religiosos”. Nesses 26 países, vivem quatro mil milhões de pessoas (51% da população mundial). Quase metade desses países encontra-se em África, nota o documento.
Moçambique foi um dos países em que a situação mais se deteriorou desde o último relatório. No documento de 2018, o país nem sequer entrara na tabela (que inclui apenas duas categorias, a perseguição e a discriminação, não sendo atribuída classificação aos países onde não há violações significativas da liberdade religiosa), mas agora surge com a pior classificação, numa altura em que a guerra começada no final de 2017 atinge um dos seus períodos mais tensos.
O relatório da AIS aponta Moçambique como “novo neste sinistro clube” de países com organizações extremistas ativas. “O grupo jihadista Ansar al-Sunnah Wa Jama (ASW), alinhado com o Daesh, lançou uma insurreição na província maioritariamente muçulmana de Cabo Delgado, assumindo o controlo do porto de Mocímboa da Praia, uma infra-estrutura prioritária para o processamento das enormes reservas de gás natural descobertas ao largo da costa norte de Moçambique”, diz o documento. “A partir de Moçambique, os jihadistas proclamam ter estabelecido ‘províncias do Califado’ nas Comores, no norte de Madagáscar e, através do Oceano Índico, até à Indonésia, Malásia e Filipinas.”
A brutal insurreição jihadista, alimentada a partir do norte do país, veio disromper uma histórica coexistência pacífica entre religiões em Moçambique. “O sul e as cidades são predominantemente cristãos, e é no norte e nas zonas costeiras que se encontram muitos muçulmanos (a maioria sunitas). Mas as religiões tradicionais africanas estão também fortemente representadas, em particular nas zonas rurais”, diz o relatório, num segmento específico sobre o país. “As relações entre o Cristianismo e o Islamismo em Moçambique têm sido historicamente calmas, marcadas pela coexistência respeitadora e pela deferência às tradições de cada um.”
“Recentemente, no entanto, as relações têm sido desafiadas por uma crescente insurreição islamista no norte do país. A violência, consequência da pobreza, da corrupção e da frustração entre os jovens desfavorecidos, é alimentada por insurgentes islâmicos fundamentalistas que entram através dos países vizinhos e por jovens pregadores islâmicos que regressam a Moçambique com estudos em países como o Egipto, Kuwait, Arábia Saudita e África do Sul imbuídos de uma interpretação estrita do Islão”, explica o relatório.
Moçambique com 139 ataques em três anos e meio
O conflito armado no norte de Moçambique teve início em outubro de 2017, com o ataque à vila de Mocímboa da Praia, no norte da província de Cabo Delgado, perto da fronteira com a Tanzânia. Desde essa altura, calcula-se que “os insurgentes islamistas tenham realizado cerca de 139 ataques, matando mais de 350 civis e militares”, diz o relatório. Os ataques têm sido levados a cabo pelo grupo Ansar al-Sunnah Wa Jama, localmente conhecido como Al-Shabaab (termo árabe para juventude, pelo qual também é conhecido o grupo fundamentalista, mas distinto, que opera na Somália).
Um dos ataques mais sangrentos até à data ocorreu em abril de 2020 na aldeia de Xitaxi, no distrito de Muidumbe, onde foram executados 52 jovens. Os insurgentes têm atacado sucessivamente aldeias e vilas, queimando casas e deixando milhares de pessoas desalojadas, independentemente da religião dos habitantes. Em junho de 2018, por exemplo, o Al-Shabaab “queimou 164 casas e cinco carros, matou gado e decapitou um líder islâmico local dentro de uma mesquita antes de a incendiar”, diz o relatório.
Nos últimos meses, a guerra subiu de tom, especialmente com o violento ataque à vila de Palma, no norte do país, na região dos grandes projetos de exploração de gás natural. O grupo filiado no Estado Islâmico reivindicou mesmo o controlo da povoação após vários dias de confrontos que mataram dezenas de pessoas e deixaram até um cidadão português ferido. Palma já voltou, entretanto, a estar sob controlo das autoridades moçambicanas, mas o violento ataque deixou largas centenas de pessoas desalojadas, muitas das quais poderão estar ainda escondidas nas densas florestas que rodeiam a povoação — o que aumentou para cerca de 700 mil o número de deslocados internos que se estão a refugiar, em condições precárias, em cidades mais a sul, como Pemba e Montepuez.
“Embora a liberdade religiosa seja respeitada e as relações entre o Governo e os grupos religiosos, e entre os próprios grupos religiosos, sejam fortes e estáveis, existe um risco significativo de que a violência em curso no norte possa desestabilizar a tolerância religiosa histórica na sociedade moçambicana”, avisa o relatório, salientando que, “como as regiões norte e costeiras de Moçambique são predominantemente muçulmanas, muitos dos civis mortos ou feridos são muçulmanos”.
Pandemia fez aumentar violações à liberdade religiosa
Embora a situação em África mereça um destaque particular na edição de 2021 do relatório da AIS, o documento analisa as violações da liberdade religiosa em todo o mundo, apontando também para graves problemas na China e em Myanmar, onde as minorias dos uigures e dos rohingyas, predominantemente muçulmanas, continuam a enfrentar “uma perseguição severa e a comunidade internacional só agora começou a aplicar o direito internacional para a impedir”.
A pandemia da Covid-19 contribuiu para aprofundar a discriminação com base na religião, já que em vários lugares as minorias foram “culpadas pela pandemia”, diz o relatório. “Os preconceitos sociais pré-existentes contra as minorias religiosas em países como a China, o Níger, a Turquia, o Egipto e o Paquistão levaram a um aumento da discriminação durante a pandemia da Covid-19 através, por exemplo, da recusa do acesso a ajuda alimentar e médica.”
“Indícios sobre violações da liberdade religiosa observadas no nosso relatório de 2018 aceleraram e alargaram-se à situação atual, onde os ataques sistemáticos e flagrantes vêm de governos, seja da China ou da Coreia do Norte, e de grupos terroristas internacionais como o Boko Haram ou o Daesh e outros grupos fundamentalistas. Estes contextos têm sido exacerbados pela pandemia da Covid-19. Os Estados têm utilizado a insegurança para aumentar o controlo sobre os seus cidadãos, e os participantes não estatais têm aproveitado a confusão para recrutar, expandir e provocar crises humanitárias mais vastas”, acrescenta o documento.
A pandemia também contribuiu para abrir espaço à consolidação da ameaça extremista islâmica. “Vários governos africanos, esmagados pelos desafios colocados pela pandemia em fúria, reafetaram forças militares e de segurança para apoiar as necessidades de saúde da população em geral. Particularmente nos primeiros meses, grupos terroristas e jihadistas aproveitaram o facto de o Governo estar focado na pandemia para aumentar os seus ataques violentos e consolidar os ganhos territoriais”, diz o documento, acrescentando que a pandemia também alimentou o discurso dos extremistas, que enquadraram a doença como um “castigo de Deus para o ‘Ocidente decadente’, prometeram imunidade contra o vírus e asseguraram um lugar no paraíso para os jihadistas”.
Mas mesmo nos países ocidentais, onde o relatório não identificou violações significativas à liberdade religiosa, foi possível detetar “casos de abuso”, sobretudo relacionados com a “aplicação desproporcionada de restrições entre atividades religiosas e atividades empresariais, bem como à agressividade da polícia e das forças armadas na abordagem de violações de restrições relacionadas com práticas religiosas”.
Portugal sem violações da liberdade religiosa — mas há alertas ao Ocidente
No capítulo sobre Portugal, o relatório diz que nos últimos dois anos “não houve em Portugal incidentes significativos envolvendo lugares de culto, com excepção de furtos, actos de vandalismo e situações ocasionais de utilização dos espaços que gerou alguma controvérsia”.
Entre os casos apontados pelo relatório encontram-se a polémica em torno de um concerto numa igreja na aldeia de Cem Soldos, em Tomar; algumas controvérsias relacionadas com o pagamento de impostos sobre os imóveis da Igreja Católica, nomeadamente o caso de Penafiel; as críticas à RTP por privilegiar a Igreja Católica na mensagem de Natal do cardeal-patriarca de Lisboa; casos de vandalização de património religioso em São João da Madeira e em Campo Maior; e ainda o homicídio da irmã Maria Antónia Guerra, conhecida como a “freira radical”. O documento aponta ainda o caso de uma atleta muçulmana de Tavira que foi proibida de entrar num jogo de basquetebol por estar a utilizar coberturas para os braços, pernas e cabelo (hijab).
Embora a situação portuguesa seja de respeito generalizado pela liberdade religiosa, o relatório deixa alertas para a incapacidade dos países ocidentais em lidar com as novas formas de extremismo islâmico.
“O ‘ciber-califado’, em expansão global, é agora um instrumento estabelecido de recrutamento e radicalização online no Ocidente. Os terroristas islamitas usam tecnologias digitais sofisticadas para recrutar, radicalizar e atacar. Embora não sejam capazes de neutralizar as comunicações terroristas online, as unidades antiterroristas conseguiram impedir ataques em vários países ocidentais”, aponta o documento, que defende o ensino religioso nas escolas como modo de reduzir a radicalização. “O Ocidente tem menosprezado as ferramentas que reduzem a radicalização. Embora os governos reconheçam que o ensino das religiões mundiais nas escolas reduz a radicalização e aumenta a compreensão inter-religiosa entre os jovens, um número crescente de países tem eliminado as aulas de educação religiosa.”