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Há exatamente duas semanas, o chanceler alemão Olaf Scholz esteve nos Estados Unidos e recusou pronunciar sequer o nome Nord Stream 2. A seu lado, o Presidente norte-americano, Joe Biden, dava uma certeza: “Vamos acabar com ele” em caso de invasão russa à Ucrânia. Scholz não foi tão claro, apesar de ter sido insistentemente questionado sobre o assunto durante toda a conferência de imprensa, limitando-se a falar em política “alinhada” com os os parceiros e em “sanções necessárias” em caso de invasão. Esta terça-feira, porém, tudo mudou. “A situação agora é fundamentalmente diferente”, garantiu Scholz numa conferência de imprensa onde anunciou que o processo de certificação do Nord Strem 2, o novo gasoduto que vai ligar Rússia à Alemanha, vai ser travado.
[Ouça aqui o podcast “A História do Dia”]
https://observador.pt/programas/a-hist-ria-do-dia/a-nossa-fatura-do-gas-vai-ser-uma-arma-de-guerra/
Foi a resposta aos anúncios feitos por Moscovo no dia anterior, com o reconhecimento das repúblicas separatistas da Ucrânia e o envio de “forças de paz” russas para o leste do país. As declarações das Nações Unidas dizendo que as ações da Rússia violam a Carta de Princípios da organização foram invocadas por Scholz para justificar a decisão agora tomada. O objetivo é travar a Rússia e fazê-la regressar à mesa das negociações. Mas irão os russos ser travados pela suspensão de um projeto que ainda nem sequer estava a funcionar, ao mesmo tempo que já controlam a maioria do mercado alemão do gás? E que impactos pode esta decisão ter sobre os europeus?
Um desses impactos parece já óbvio: o preço da energia. O gás natural valorizou e o petróleo está quase a atingir a barreira dos 100 dólares por barril, o que não acontecia desde 2014. E estas valorizações, em particular a do gás natural, podem contagiar a cadeia de várias indústrias entre as quais a elétrica. E esse é para já o grande risco para a Europa, e também para Portugal, como reconheceu o secretário de Estado da Energia. À Rádio Observador, João Galamba afirmou que o abastecimento dos volumes necessários está assegurado, com a informação disponível no momento e dos contactos que manteve com as empresas importadoras de gás.
Para já, a decisão alemã de suspender a certificação do gasoduto Nord Stream 2, não afetou o abastecimento de gás à Europa, que compra à Rússia 40% do que consome. Se Putin mandasse fechar os gasodutos, não haveria gás no mundo disponível que chegasse para abastecer a Europa, nem navios ou terminais suficientes. Mas esse não é um cenário “provável”, segundo os especialistas ouvidos pelo Observador.
Suspensão do Nord Stream 2 pode travar uma invasão? “Já vem tarde”
Margarita Balmaceda estuda as relações entre Rússia e Ucrânia há mais de 25 anos e não tem dúvidas no diagnóstico que faz ao Observador: “A invasão já está a acontecer. Estamos a enganar-nos se achamos que vamos ver uma invasão como nos filmes, com soldados a avançar sincronizados. A invasão está a acontecer a pouco e pouco, com os ataques em Donbass, as forças por procuração, o envio de ‘forças de paz’.”
Esta professora da Universidade Seton Hall tem-se dedicado nos últimos anos a estudar a forma como a Rússia utiliza a energia como parte da sua estratégia na política externa e não tem dúvidas ao dizer que o cancelamento do Nord Stream 2 deverá ter pouca influência no comportamento do Kremlin face à Ucrânia daqui para a frente. “Já vem tarde”, diz. As consequências do ato anunciado pelo chanceler Olaf Scholz não influenciam uma Rússia, que já controla grande parte do mercado europeu de gás, mesmo sem ter o Nord Stream 2 concluído.
O espaço para retaliações, porém, existe: “Devemos esperar uma redução do fornecimento, o aumento do preço e os russos a tentarem retratar-se como ‘salvadores’ porque continuam a fornecer gás.” Por outro lado, acrescenta, pode haver uma disrupção do gás que já é fornecido à Europa através do gasoduto Brotherhood, que atravessa a Ucrânia: “É uma profecia auto-cumprida, porque um dos objetivos de Vladimir Putin é o de desestabilizar a Ucrânia e esta é uma boa forma de o fazerem.”
Apesar disso, a professora de Diplomacia e Relações Internacionais considera que a Alemanha fez bem em avançar com esta decisão. “Era um passo que precisava de ser dado, porque a Alemanha já está profundamente comprometida pela sua hesitação em relação à Rússia e ao Nord Stream até agora.”
Os russos quase controlam o mercado europeu — e usam a energia como arma
Uma avaliação partilhada por António Costa Silva, especialista em energia que foi presidente da Partex, empresa de exploração da Fundação Gulbenkian e autor do primeiro programa de recuperação económica da pandemia. Costa Silva considera que a Alemanha é um país que em termos energéticos só olha para o seu umbigo. E isso é um dos grandes problemas da política energética europeia, defende.
“A Alemanha resolveu o seu problema energético com o Nord Stream 1 e agora com o segundo gasoduto que faz o by pass dos países bálticos e da Polónia, mas está a cercear todo o desenvolvimento da política europeia de energia e todo o desenvolvimento do mercado único da energia que era a única maneira de a Europa não ficar presa do gás russo”. Atualmente, 55% do gás importado pela Alemanha vem da Rússia.
Para António Costa Silva, a interrupção do projeto do Nord Stream 2 é “uma jogada política” que, mais do que afetar a Alemanha, afeta o centro da Europa (Áustria e até Itália) e o Báltico, que estão muito dependentes do gás russo. Para o especialista, a “Alemanha em termos energéticos é o cavalo de Troia da Rússia na Europa”.
O novo gasoduto iria abastecer a Alemanha, mas o remanescente iria para países terceiros. A Alemanha continuará a receber o gás do Nord Stream 1. Ainda que esta interrupção seja desconfortável para um país que ambiciona acelerar a transição energética, o que passa por fechar as centrais nucleares e substituir o carvão “mais sujo” por centrais a ciclo combinado que usam gás natural, como destaca Nuno Ribeiro da Silva, presidente da Endesa Portugal ao podcast a “História do Dia” da Rádio Observador.
Mas para Costa e Silva, o “problema crucial não é a Alemanha, é o resto da Europa e aquilo que o presidente Putin pode fazer se tiver numa situação extremamente difícil e se repetir as jogadas que já fez no passado em 2006 e 2009, em que cortou o abastecimento“.
No cenário extremo de a Rússia interromper o seu abastecimento à Europa — pouco provável no atual contexto — não há gás natural no mundo que chegue para a substituir. Mas no cenário mais provável de redução do abastecimento há vários fornecedores que podem vender mais à Europa. E um deles é os Estados Unidos, grande produtor de gás, mas que só exporta uma pequena parte. Dados recentes indicam que as vendas americanas de GNL (gás natural liquefeito) para a Europa atingiram recordes, à medida que os europeus procuram alternativas. Os EUA são o segundo maior fornecedor de Portugal a seguir à Nigéria.
Ao contrário dos europeus, os americanos até podem ter ganhos económicos com esta crise. Não são tão afetados pelo preço alto do gás (a maioria da produção fica no país e está protegida da escalada do preço) e têm uma oportunidade para fazer excelentes negócios a vender gás natural liquefeito altamente valorizado à Europa.
Margarita Balmaceda reforça que a situação de corte no abastecimento é improvável. Para a investigadora, o mais provável é que a Rússia continue a estratégia que tem adotado desde outubro — a mesma altura em que o processo de certificação na Alemanha se atrasou e em que Putin aumentou os seus contingentes militares de forma significativa fronteiras da Ucrânia: reduzir o fluxo de gás que fornece à Europa, fazendo subir os preços. “Há contratos que estabelecem a quantidade mínima de gás que tem de ser entregue, mas são valores baixos. Não acho que a Gazprom vá arriscar não cumprir os contratos, mas prevejo que reduza o fluxo aos mínimos.”
Portugal e Espanha não vão sofrer muito impacto, afirma Costa e Silva. Mas o impacto no resto da Europa pode ser “brutal”. E mais uma vez aponta o dedo à Alemanha e à União Europeia, que não promoveu o mercado único da energia, que passaria por ligar a Península Ibérica e os seus oito terminais (um é o de Sines) para receber gás natural liquefeito à rede europeia de gasodutos através de França. Só assim se poderia compensar a enorme dependência em relação à Rússia.
“Isso não aconteceu porque a Alemanha resolveu o seu problema unindo-se à Russia, fazendo o bypass dos outros países” e colocando a Europa “na boca do lobo”, sublinha Costa e Silva — sobretudo a Europa central e do Leste.
A Europa “está a lidar com um mestre da geopolítica que se chama Vladimir Putin”. “Tem muitos defeitos, é um autocrata, mas é um homem como ninguém em termos das lideranças, estuda a política internacional” e não hesita em usar a energia como uma arma. E a UE perdeu muito tempo ao não apostar na diversificação das fontes de abastecimento, na criação de um mercado único. Avançou com mercados únicos em outras áreas e deixou que o mercado da energia não funcionasse. Nesse aspeto, a política energética da Alemanha “tem sido desastrosa” para a Europa.
Apesar de outras fontes realçarem que, por outro lado, o acesso reforçado ao gás russo também permitiu às indústrias europeias pouparem face ao que teriam de pagar caso recorressem mais ao gás natural liquefeito que tem os custos de transporte.
Costa Silva até defende que a Rússia deve ser um parceiro estratégico, mas primeiro a Europa tem de diversificar fontes de abastecimento e receber gás de outros fornecedores e por outras infraestruturas. Só quando funcionar essa fachada atlântica e a Europa receber gás de todo o lado — da Rússia, Norte de África, América, África, é que os “russos compreendem que vão ter de aderir ao jogo. Agora foram transformados nos reis do jogo da energia”.
Mas o reforço da ligação à rede da Península Ibérica também depende de França — que, assinala o secretário de Estado da Energia, João Galamba, tem resistido a isso em defesa do seu sistema elétrico muito assente no nuclear. França resistiu há anos a um reforço da ligação, porque o projeto então apresentado pela Comissão Europeia previa que parte substancial do investimento fosse suportado pela gestora da rede francesa e consumidores de gás.
Alemanha está “a repensar a relação com a Rússia”
As lideranças alemãs, recorda ainda o dirigente da Partex, estão ligadas à maior companhia de gás do mundo, a russa Gazprom — citando o caso do ex-chanceler Gerard Schröder, que lançou o projeto quando estava na liderança da Alemanha e preside agora ao consórcio Nord Stream e à petrolífera russa Rosneft. O que ajuda a explicar também porque o país tem sido muito hesitante nas suas decisões. Margarita Balmaceda considera que o próprio partido de Schröder, os sociais-democratas do SPD, não tem lidado com este incómodo de forma convincente: “Isto sabe-se há anos e eles ainda não conseguiram lidar com o legado de Schröder nesta matéria”, diz.
O projeto não foi abandonado por Angela Merkel e pelo seu partido, a CDU. Porém, o atual chanceler, Olaf Scholz, é precisamente do SPD, o que levanta questões sobre o papel de Schröder neste projeto. E, na atual composição do governo, tem de lidar com a posição dos parceiros de coligação, os Verdes, que ocupam atualmente as pastas dos Negócios Estrangeiros e da Economia e Energia — estes têm-se oposto desde sempre ao avanço do Nord Stream 2.
“Os Verdes têm a sua posição histórica, mas não foi só isso que influenciou esta decisão”, resume Balmaceda. Por um lado, há a pressão norte-americana — na noite de segunda-feira, Biden e Scholz tiveram uma conversa telefónica onde o assunto foi certamente abordado. Por outro, “está a haver um repensar da relação com a Rússia nos últimos tempos”, diz a investigadora, que destaca como decisiva a redução de fornecimento que tem sido levada a cabo pelo Kremlin para inflacionar os preços. “Se até aí a opinião pública alemã estava a favor do Nord Stream 2, ao ver esta forma de chantagem clara começou a mudar a sua perceção. Parece-me que a Rússia deu um tiro no pé com esta atitude.”
O que não significa, porém, que tudo esteja bem para a Alemanha. A Rússia ainda tem a faca e o queijo na mão no que diz respeito à influência nos preços do mercado e ainda pode agir judicialmente contra os alemães se o gasoduto vier a ser cancelado de vez. “Há contratos e seguros que provavelmente incluem provisões caso haja atrasos ou cancelamentos, para que o investimento seja recompensado”, prevê a professora. “Quando Angela Merkel decidiu abandonar a energia nuclear, houve procedimentos judiciais para compensar empresas que duraram anos.”
É também por isso que a Alemanha não avançou para um cancelamento total do projeto, mas sim para a retirada do pedido de análise de segurança das entidades competentes. “Embora isto soe técnico, é um passo administrativo necessário para que o gasoduto não possa ser certificado agora. E sem a certificação, o Nord Stream 2 não pode entrar em operação”, resumiu Olaf Scholz na conferência de imprensa onde fez o anúncio que abalou a manhã desta terça-feira.
O Kremlin, contudo, está atento. “É um grande tema para o futuro. Tenho a certeza que há muitos advogados já a trabalharem nisto“, acredita Balmaceda. Até lá, tudo se resumirá ao preço. A única certeza é que, de uma forma ou de outra, vai aumentar.