” Sempre que são feitas denúncias, é nossa obrigação fazer a sua investigação e levá-la até ao fim, independentemente da qualidade e relevância social das pessoas a investigar. Todos devem ter o mesmo tratamento, em atenção ao princípio constitucional da igualdade”
Amadeu Guerra, 25 de outubro de 2018, em entrevista ao Observador
“Íntegro”, “independente”, “executivo”, “trabalhador”, “disciplinado”, “leal” e “frontal” são apenas algumas das características da personalidade de Amadeu Guerra descritas por quem o conhece bem. Às quais podemos acrescentar os resultados históricos dos seus dois mandatos como Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), derivados da sua capacidade de liderança de equipas e da reorganização que empreendeu no departamento mais importante do Ministério Público.
Amadeu Guerra nunca se colocou em ‘bicos de pés’ como diretor do DCIAP. A “discrição” é outra das suas características. Com uma procuradora-geral como Joana Marques Vidal, com quem tinha uma grande identificação de pensamento e de ação, Guerra sempre se manteve na sombra, coordenando as suas equipas, acompanhando de perto todas as diligências relevantes e apoiando os seus magistrados em momentos difíceis. Mas através das poucas entrevistas que concedeu — como uma conversa de fundo que teve com o Observador em Outubro de 2018 — também é possível perceber o que pensa sobre a administração da Justiça e as diferentes soluções que defende para termos um combate à corrupção mais eficiente e pragmático.
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Afinal, quem é, como lidera e o que pensa Amadeu Guerra?
Avô babado, bom garfo e ‘doente’ pelo Benfica — que mandou investigar
Se o mundo da Justiça está cheio de juristas que falam e escrevem demais — como se o tempo e o espaço fossem infinitos —, Amadeu Guerra é precisamente o oposto. Parece mais um executivo do que um jurista. Diz o seu pensamento de forma sintética e direta e gosta de ter reuniões de curta duração — logo, a conclusão é simples de retirar: é homem de poucas palavras, assertivo e detesta perder tempo.
Amadeu Francisco Ribeiro Guerra, 69 anos, nasceu em Tábua, no distrito de Coimbra. A sua persona pública demonstra a austeridade e a formalidade que caracteriza os beirões — e os magistrados. Mas os seus amigos contam que há duas coisas em que não é nada austero: é um bom garfo e adora praticar desporto.
Desde os tempos de meninice em Coimbra que adora jogar futebol e por todos os locais de trabalho por onde passou costumava participar em ‘futeboladas’ de circunstância com amigos e colegas. Foi assim, por exemplo, durante os anos em que esteve na Comissão Nacional de Proteção de Dados (entre 1994 e 2006) e na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (entre 2001 e 2006). As duas entidades partilhavam (e continuam a partilhar) um edifício na Av. D. Carlos I, em Lisboa (perto da Assembleia da República) e Amadeu Guerra participava com regularidade nos jogos que reuniam colaboradores das duas entidades.
Quem o conhece sabe que é um benfiquista de coração. Como muitos portugueses da sua geração, foi o Benfica de Eusébio que o levou a desenvolver essa paixão clubística e tenta não perder um jogo do clube da Luz. Mas uma paixão, como já veremos mais à frente, que é meramente abstrata — e não se confunde com os dirigentes do clube. O Benfica e o então presidente Luís Filipe Vieira foi um dos principais visados da equipa especial que constituiu no DCIAP para investigar o mundo do futebol. Amadeu Guerra não ‘brinca em serviço’.
Casado, com duas filhas e já um avô babado, Amadeu Guerra licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e entrou para a magistratura do Ministério Público em 1980. Após ter feito o estágio no Centro de Estudos Judiciários, fez o habitual percurso em diferentes jurisdições, tendo passado pelo Tribunal de Trabalho de Lisboa e pelas varas criminais do Tribunal da Boa Hora.
A sua área de referência, contudo, veio a ser a jurisdição administrativa, tendo tido uma ligação especial à área de proteção de dados. Como já referido, foi durante 12 anos membro da Comissão Nacional de Proteção de Dados — sendo reconhecidamente um dos maiores especialistas do MP nessa área — e esteve também cinco anos na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, onde conheceu e privou com o Luís Montenegro, que representava a Assembleia da República.
Foi precisamente na Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) que a personalidade de Amadeu Guerra começou a ficar conhecida do espaço público.
Estávamos em 2000, e José Souto Moura estava prestes a substituir Cunha Rodrigues como procurador-geral da República. Na companhia do então desembargador Mário Varges Gomes (que também fazia parte da CNPD), Amadeu Guerra apresentou na Procuradoria-Geral da República uma denúncia contra o ‘seu’ presidente João Labescat. Violando as regras de proteção de dados pelas quais a própria CNPD tinha de zelar, Labescat tinha alegadamente enviado para a PSP moradas de cidadãos incluídas na base de dados do recenseamento eleitoral, conta o semanário Expresso.
Um mês mais tarde, Amadeu Guerra Guerra e Varges Gomes (que veio a ser inspetor-geral da Administração Interna por indicação do Governo Sócrates) apresentaram uma segunda denúncia contra João Labescat. Desta vez, estava em causa a divulgação de nomes de menores vítimas do crime de violação em sentenças e acórdãos divulgados em bases de dados alojadas em sites do Ministério da Justiça. Labescat sabia do que se passava mas nada fez.
Em 2006, dois anos depois de ter sido promovido a procurador-geral da República, Amadeu Guerra demitiu-se da CNPD por ter igualmente denunciado de tinha ocorrido um controlo das chamas telefónicas na própria comissão. Apesar de nada ter a ver com a matéria, a razão foi simples: “Uma questão de princípio”, noticiou o Expresso.
Amadeu Guerra regressou aos tribunais administrativos e, em 2008, foi nomeado coordenador do MP do Tribunal Central Administrativo do Sul com 53 anos.
Como Amadeu reorganizou o DCIAP e devolveu-lhe a credibilidade perdida
Escolhido de forma surpreendente pela procuradora-geral Joana Marques Vidal para substituir Cândida Almeida em março de 2013, Amadeu Guerra foi olhado com desconfiança pela estrutura do MP. O DCIAP é um órgão da Procuradoria-Geral da República que se dedica à criminalidade mais complexa, nomeadamente nas áreas da criminalidade económico-financeira, terrorismo e contrabando, e o administrativista não parecia ser a melhor ideia.
Joana Marques Vidal, que também não era uma penalista (a sua especialista era a família e menores), não ligou a isso. Conhecia Amadeu Guerra e sabia que o seu perfil executivo e de organizador eram essenciais para recuperar a credibilidade de um departamento criado por Cunha Rodrigues em 1999 sob uma grande expectativa, mas que em 2013 estava nas ‘ruas da amargura’ com poucos resultados para mostrar. O estilo de gestão caótica de Cândida Almeida, que se tinha incompatibilizado com a Polícia Judiciária, conjugada com a ‘mão de ferro’ do ex-procurador-geral Pinto Monteiro, que tudo queria controlar, tinham deixado o DCIAP em ‘cacos’. O processo Freeport, que investigava José Sócrates e levou a um conflito aberto da hierarquica com os procuradores titulares do caso, era o exemplo paradigmático de como o DCIAP não funcionava.
Quem passou por esses dois mandatos tão díspares recorda-se que entrar no gabinete de Amadeu Guerra no DCIAP salientava logo as diferenças. Enquanto o gabinete de Cândida Almeida era um caos (alegadamente organizado) com processos em papel amontoados na secretária, espalhados pelos sofás e pelo chão do gabinete, o escritório de Amadeu Guerra era perfeitamente o oposto: imaculadamente organizado e arrumado, o que refletia bem as ideias claras que tinha para o DCIAP.
Amadeu Guerra revolucionou o DCIAP. Ou melhor, refundou aquele que deveria ser o principal departamento de investigação e ação penal do Ministério Público. Criou uma nova estrutura, promoveu a existência de equipas multidisciplinares com procuradores (mesmo de outra jurisdições, como a administrativa), inspetores da Judiciária e da Autoridade Tributária, técnicos do Banco de Portugal, entre outros especialistas, e transformou o DCIAP num departamento de coordenação nacional e de combate à criminalidade económico-financeira, violenta altamente organizada, assim como ao terrorismo.
Para tornar o combate à corrupção verdadeiramente eficiente, designou um magistrado como ponto de contacto para a cooperação judiciária internacional (o procurador Rosário Teixeira), generalizou a formação especializada a 60 magistrados afetos à investigação da criminalidade económico-financeira, convenceu a procuradora-geral Joana Marques Vidal a investir em recursos informáticos para ter mais e melhores ferramentas de análise e seleção da prova recolhida, criou uma sala forense e salas para pesquisa de informação automatizada (prova digital e digitalizada) e promoveu o recurso a cooperação com os melhores peritos da administração pública e, se fosse necessário, ao privado.
Por exemplo, ficou famosa no DCIAP a decisão de Amadeu Guerra de contratar a consultora Delloite para apresentar uma auditoria financeira sobre uma matéria de um dos processos mais mediáticos. A auditoria veio a custar algumas dezenas de milhares de euros, mas o estudo foi útil para munir o processo de prova pericial relevante.
Quando já estava de saída, em 2018, Amadeu Guerra contava em entrevista ao Observador que continuava a investir na modernização do DCIAP. Estava “em curso uma experiência com uma empresa especializada” que permitiria ao departamento “fazer a transcrição automática de depoimentos”. Além disso, explicava: “Precisamos que o Portal Cos [portal de comunicações de branqueamento de capitais com origem no sistema financeiro e não financeiro] receba, online, até ao final do corrente ano ou até ao fim do 1.º trimestre de 2019, todas as comunicações oriundas de entidades bancárias.”
A aplicação do princípio da igualdade no caso paradigmático da Operação Marquês
Quando Joana Marques Vidal lhe deu posse em março de 2013, a então procuradora-geral da República pediu-lhe que prosseguisse todas as investigações, sem excepção (…), sem omitir qualquer diligência necessária à descoberta da verdade, respeitando o segredo de justiça e, intransigentemente, a igualdade do cidadão face à lei.”
E foi exatamente isso que Amadeu Guerra fez. “Intransigentemente”, como disse Joana Marques Vidal.
Se no tempo de Fernando Pinto Monteiro e Cândida Almeida foram possíveis ‘inovações’ jurídicas como a emissão de despachos de intercalares de arquivamento de um ex-ministro como Luís Nobre Guedes (aconteceu no caso Portucale) ou ‘declarações de inocência’ de Ricardo Salgado (no caso da liberalidade), com Joana Marques Vidal e Amadeu Guerra isso deixou de ser possível. E a Operação Marquês é um exemplo paradigmático da aplicação da “igualdade do cidadão face à lei”.
Um ex-primeiro-ministro (José Sócrates, que foi preso preventivamente durante 10 meses), um ex-presidente executivo do Banco Espírito Santo (Ricardo Salgado), um ex-chairman e um ex-líder executivo da Portugal Telecom (Henrique Granadeiro e Zeinal Bava), um ex-ministro e ex-banqueiro (Armando Vara) e vários ex-gestores privados foram investigados, constituídos arguidos e formalmente acusados em pouco mais de quatro anos.
Também a investigação ao Universo Espírito Santo, que visou essencialmente a gestão de Ricardo Salgado, é outro bom exemplo da aplicação do princípio da igualdade. Repete-se: meses antes de Amadeu Guerra chegar ao DCIAP, Salgado tinha tido direito a uma declaração de inocência dada pelo procurador Rosário Teixeira, com grande pressão hierárquica.
A investigação da Operação Marquês também diz bem como Amadeu Guerra gere equipas. Depois de ter ponderado, autorizou a junção do caso da Portugal Telecom (que investigava a alegada corrupção de Zeinal Bava e Henrique Granadeiro por parte de Ricardo Salgado) ao caso de José Sócrates — criando-se assim um megaprocesso.
Mas não deixou isso sozinho nas mãos de Rosário Teixeira e alocou vários procuradores que, na fase final, chegaram a sete procuradores da República — precisamente os que assinaram o despacho de acusação contra os arguidos.
A pressão de Joana Marques Vidal para que o despacho de encerramento de inquérito fosse proferido foi aumentando de forma gradual até chegar a um auge, em março de 2017, em que a procuradora-geral solicitou a Amadeu Guerra que ponderasse assumir a direção do inquérito. As críticas a Rosário Teixeira e ao inspetor tributário Paulo Silva ficaram devidamente expressas num despacho de Marques Vidal que ficou nos autos por vontade expressa da líder do MP.
Amadeu Guerra tinha uma decisão difícil pela frente. Mas, como é seu costume, percebeu que iria perder mais tempo se afastasse Rosário Teixeira. Impôs um prazo definitivo à equipa, apoiou os seus magistrados e, no final, passou dias a fio no DCIAP a rever as 3.908 páginas do despacho de encerramento de inquérito. Lado a lado com os seus procuradores. A acusação foi deduzida no dia 9 outubro de 2017. Era a primeira vez que um ex-primeiro-ministro era acusado de corrupção no exercício do cargo.
O caso do “irritante” e o estilo de liderança de Amadeu Guerra
A forma como Amadeu Guerra geriu a tensão entre a procuradora-geral Joana Marques Vidal e a equipa da Operação Marquês diz bem das suas capacidade diplomáticas, mas também descreve bem o seu estilo de liderança, como vários procuradores do DCIAP confirmaram ao Observador.
Não é autoritário, nem impõe. Tenta falar e convencer diplomaticamente, e só em último caso é que rompe.
Amadeu Guerra acompanhava os processos do DCIAP de forma muito próxima — e tinha reuniões semanais com Joana Marques Vidal que, por sua vez, também era informada das matéria mais relevantes do departamento.
Enquanto diretor do DCIAP, estava a par de todas as diligências relevantes e, apesar de não impor uma regra, conseguiu convencer os procuradores a enviarem os despachos de encerramento de inquérito antes de os mesmos serem notificados. Muitas vezes, quando se deparava com um texto menos rigoroso ou com afirmações que não estavam fundamentadas, solicitava correções — o que era seguido.
A forte ligação profissional entre Amadeu Guerra e Joana Marques Vidal foi essencial para o que aconteceu com os chamados autos da Operação Fizz. Tratam-se de autos que tinham uma dupla sensibilidade: estavam em causa suspeitas de corrupção de um ex-procurador do DCIAP (Orlando Figueira) e o alegado corruptor ativo era Manuel Vicente, ex-presidente da Sonangol e então vice-presidente da República de Angola.
Foi um bom teste ao princípio da igualdade, mas não houve qualquer tipo de cedência. Mesmo com uma pressão pública (e “pornográfica”, aos olhos dos procuradores) do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa (que batizou o caso de suspeitas de corrupção de um magistrado português por parte de um dirigente angolano como um “irritante”), Amadeu Guerra e Joana Marques Vidal apoiaram as duas magistradas do DCIAP e o caso foi até ao fim: Manuel Vicente foi mesmo acusado de ter corrompido Orlando Figueira em fevereiro de 2017.
Contra a vontade do Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa ordenou em maio de 2018 a remessa dos autos para Angola no que diz respeito a Manuel Vicente. Se tal não tivesse acontecido, o ex-n.º 2 de José Eduardo dos Santos teria tido mandado de captura internacional e arriscava-se a ser julgado em Portugal à revelia. Em Angola, nada lhe aconteceu.
Este apoio aos magistrados não era, contudo, uma via verde total e absoluta. Amadeu Guerra sempre preservou o seu papel de líder da equipa.
Um bom exemplo passou-se logo no seu primeiro mandato enquanto diretor do DCIAP. Uma procuradora da República da equipa de Cândida Almeida pediu uma reunião para convencer Amadeu Guerra a nomeá-la coordenadora de uma secção relevante no DCIAP. Como percebeu que não estava a conseguir levar água ao seu moinho, fez uma ameaça: ou era nomeada, ou ia-se embora. A resposta de Amadeu foi pronta: “A porta está aberta, faça favor”, disse-lhe, de forma seca.
Defende a colaboração premiada e o seu mantra será: a lei é igual para todos
As prioridades de Amadeu Guerra como procurador-geral da República só serão conhecidas no próximo dia 12 de outubro, quando tomar posse no Palácio de Belém diante do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Mas dificilmente a sua principal prioridade não passará por uma prioridade ao combate à criminalidade económico-financeira, mas com uma estratégia diferente daquela que foi seguida por Lucília Gago.
Aliás, treze dias depois de Gago ter tomado posse como procuradora-geral da República, numa polémica sucessão de Joana Marques Vidal que levou a receios (que não se confirmaram) num recuo na luta contra a corrupção, Amadeu Guerra era bastante claro na única entrevista que concedeu ao Observador.
“Não é possível um retrocesso no combate à corrupção”, afirmava taxativamente.
Amadeu Guerra. “Não é possível um retrocesso no combate à corrupção”
Quando dá a entrevista ao Observador, ainda não sabia se iria continuar como diretor do DCIAP até ter idade para se jubilar. A relação inicial com Lucília Gago foi fria — congelada mesmo, quando a então procuradora-geral mandou o seu chefe de gabinete (hierarquicamente inferior ao diretor do DCIAP) reunir-se com Amadeu Guerra. É por isso que a frase de Amadeu Guerra, dita naquela altura, mostra, uma vez mais, um homem frontal de que não receia enfrentar aquilo que considera errado ou injusto.
Na mesma entrevista, Amadeu Guerra defendeu a mesma ideia de Joana Marques Vidal: a lei é igual para todos. “Sempre que são feitas denúncias, é nossa obrigação fazer a sua investigação e levá-la até ao fim, independentemente da qualidade e relevância social das pessoas a investigar. Todos devem ter o mesmo tratamento, em atenção ao princípio da igualdade, com consagração constitucional“, afirmou.
O agora procurador-geral da República é conhecido no mundo da Justiça pelo seu equilibro e ponderação — colegas procuradores, juízes e advogados reconhecem-lhe essas características. O que não o impede de ter uma visão mais ousada quando se trata de criar novos instrumentos para combater a criminalidade.
Por exemplo, é a favor da criação de mecanismos de colaboração premiada — que já foram várias vezes tentados, nomeadamente na Estratégia Nacional Contra a Corrupção do Governo de António Costa, mas que não passaram no Parlamento. Ou seja, conceder prémios em termos de penas no caso de o arguido ou suspeito colaborar na descoberta da verdade material de um determinado caso.
“Talvez fosse desejável ponderar a elaboração de um plano onde os aspetos do ‘direito premial’ fossem incluídos. Os mecanismos legais previsto na lei da droga, na lei relativa à prevenção criminal ou na lei relativa à corrupção no comércio internacional são um bom ponto de partida para se encontrar um regime mais estruturado, realista e eficaz em relação à pouca aplicação das disposições atualmente vigentes”, afirmou na entrevista que concedeu ao Observador.
Amadeu Guerra defende que “a colaboração relevante e decisiva com a investigação pode proporcionar a dispensa da pena/suspensão provisória do processo (sempre com intermediação judicial) ou a atenuação especial da pena na sequência de julgamento” e que tal regime “poderia ser aplicável à criminalidade económico-financeira, corrupção e criminalidade conexa ou a outro tipo de criminalidade a definir pela Assembleia da República”, enfatiza
“Odeio megaprocessos” e defende alternativas ao enriquecimento ilícito
No que diz respeito aos megaprocessos, ficou famosa uma frase sua proferida num colóquio em setembro de 2017: “Também eu odeio os megaprocessos”.
Ao Observador desenvolveu a ideia. “Nem todos os inquéritos podem ser separados em ‘miniprocessos’ sob pena de ser quebrada a coerência e visão de conjunto da atuação criminal dos arguidos. A separação de processos potencia, de igual forma, o arrastamento dos julgamentos – a realizar nos vários inquéritos separados – pois a separação de processos ou extração massiva de certidões implica a elaboração sucessiva de despachos finais em anos sucessivos. Tal metodologia também implica a sujeição sucessiva dos arguidos a vários julgamentos”, disse.
Várias fontes, contudo, salientam que Amadeu Guerra pode ter outra ideia sobre a questão dos megaprocessos. Grande defensor do pragmatismo como a melhor estratégia para a eficiência, o procurador-geral indigitado partilha dos elogios recorrentes que têm sido feitos ao trabalho do DIAP Regional do Porto na Operação Vórtex, Babel, Pretoriano e Turismo do Norte, entre outros casos.
Apesar de ter noção de que os megaprocessos têm uma relação direta com a complexidade das matérias sob investigação, Amadeu Guerra também sempre deu importância aos resultados. “Não ajuda ao prestígio do Ministério Público a perceção de que a corrupção e os crimes económico-financeiros não têm resultados”, disse em 2012. E não mudou de ideias.
Outra matéria sobre a qual tem um pensamento claro são os tribunais especiais, nomeadamente a eventual criação de um tribunal de competência territorial nacional para julgar os casos mais complexos, como acontece com a Audiencia Nacional em Espanha. Numa palavra, Amadeu Guerra recomenda cautela.
“Temos de ser cautelosos em relação ao modelo a adotar e à sua compatibilização com a Constituição da República. Por outro lado, é importante avaliar se o modelo a escolher se compagina com estrutura do nosso mapa judiciário e que impacto a sua criação tem em termos de quantidade de recursos humanos de juízes”, afirmou em 2018.
Em alternativa, sempre defendeu a formação de bolsas de peritos para “coadjuvarem os juízes” durante os julgamentos. O Conselho Superior da Magistratura já criou tal bolsa para a comarca de Lisboa.
Finalmente, o tema do enriquecimento ilícito. Ainda antes da criação do crime de enriquecimento injustificado (que criminaliza a não declaração de rendimentos de todos os titulares de cargos públicos e políticos abrangidos pela lei), Amadeu Guerra defendia soluções “no âmbito do direito fiscal (pela via da verificação dos património congruente com o rendimento) ou do direito civil, ainda que se pudesse recorrer (…) a amplos meios de prova a favor do cidadão para comprovar a origem lícita dos bens.”
A 12 de outubro saberemos melhor o projeto de Amadeu Guerra para o Ministério Público e outras ideias que defende para um combate à criminalidade mais eficiente.