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Anestesista em choque, a cirurgia urgente que demorou 24h e uma morte sob investigação. As histórias dos 50 dias de escusa às horas extra

Desde outubro que milhares de médicos se recusam a fazer mais trabalho extra, lançando o caos nos serviços de urgências hospitalares. Quatro histórias que retratam as dificuldades do SNS.

Na primeira madrugada de novembro, e com a urgência externa de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Amadora-Sintra encerrada, sobravam duas médicas obstetras para assegurar a urgência interna, um número abaixo dos quatro especialistas exigidos para uma maternidade da dimensão da do Hospital Fernando da Fonseca, que faz mais de 2600 partos/ano. Nesse dia, tinham entrado em vigor as escusas ao trabalho suplementar de vários especialistas em Obstetrícia, o que levou o hospital a acionar o plano de contingência. Estava a começar aquele que o diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde antecipou como “o pior mês de sempre” no SNS. Mas as dificuldades já se agravam há semanas, com cada vez mais médicos a recusarem-se a fazer horas extraordinárias além daquelas a que são obrigados por lei.

Naquela madrugada no início de novembro, pouco antes da duas da manhã, as duas obstetras foram chamadas para uma cesariana emergente. A frequência cardíaca do bebé de Marlene começara a diminuir de forma brusca (uma situação que os médicos designam como “desaceleração”), obrigando a uma cesariana de emergência. Enquanto o parto decorria, uma outra grávida, Patrícia, internada no hospital, começava a sofrer um descolamento da placenta, com hemorragia associada — outra situação clínica grave, e que também obriga à realização de uma cesariana de emergência. Sem mais obstetras ao serviço, e perante a necessidade de dar resposta às duas mulheres, a equipa médica enfrentava sérias dificuldades e tinha de tomar uma decisão.

Duas obstetras para duas cesarianas e uma médica “em estado de choque”

A entrega de milhares de escusas à realização de trabalho extraordinário para além da 150 horas anuais obrigatórias por lei tem provocado constrangimentos em dezenas de hospitais de norte a sul do país, com muitos serviços de urgência a encerrarem e outros a funcionarem com equipas reduzidas. O protesto dos médicos tem afetado particularmente os hospitais periféricos, que, perante a incapacidade de tratar os doentes, os enviam para os hospitais centrais (nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra) — que começam, também estes, a enfrentar dificuldades de resposta a um volume de doentes muito superior ao habitual.

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Perante a falta de recursos, somam-se situações de falta de articulação entre hospitais, de insuficiência de resposta aos doentes nas unidades hospitalares de destino, de situações caricatas provocadas pela falta de especialistas nas escalas, e até de mortes diretamente relacionadas com a demora na resposta, em tempo útil. O Observador recolheu quatro casos — que retratam cada uma destas realidades — e que tiveram lugar nas regiões Norte, Centro e Sul do país.

O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, no final da visita ao Serviço de Urgência de Obstetrícia e Ginecologia/ Bloco de Partos e à Unidade de Cuidados Intensivos e Especiais Neonatais do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na Amadora, 03 de janeiro de 2023. A visita é um agradecimento e reconhecimento do empenho e da dedicação dos profissionais durante a época festiva. MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Obstetras do Amadora-Sintra entregaram escusas a mais horas extra. Negociações entre médicos e Ministério da Saúde são retomadas na quinta-feira

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Voltando ao Amadora-Sintra, e perante o alerta dado às médicas — pela enfermeira especialista — de que Patrícia estava sofrer uma hemorragia, as duas obstetras decidiram deixar a cesariana de Marlene para auxiliar esta outra grávida. Na primeira cesariana, o bebé já tinha nascido, mas faltava suturar o útero. No bloco, com Marlene, ficou apenas uma enfermeira, e, a “segurar o útero” a anestesista que estava a apoiar a cirurgia, diz ao Observador a médica anestesista Ângela Rodrigues, que garante que tanto a colega anestesista como a enfermeira “ficaram em estado de choque”. “É uma catástrofe: duas cesarianas emergentes em simultâneo com apenas dois médicos”, diz a especialista, que alerta para a “falta de segurança” com que os médicos atuam em vários serviços hospitalares, devido à diminuição das equipas.

Para além de ter ficado a “segurar o útero” com compressas, até chegar o apoio de emergência dos médicos cirurgiões (que não têm competência para intervir em cesarianas), a médica anestesista estava ainda a sedar a grávida, segundo Ângela Rodrigues. “A minha colega anestesista ficou em estado de choque, porque nunca na carreira tinha sido obrigada a desempenhar um papel que não é o dela, de ter ficar sozinha a segurar o útero da grávida. E ameaça rescindir o contrato se lhe voltar a acontecer o mesmo. Também a enfermeira ficou em estado de choque, teve de ser medicada”, garante a especialista, que faz também parte da direção do Sindicato Independente dos Médicos e trabalha no Hospital Amadora-Sintra.

Garcia de Orta não garante epidural durante o trabalho de parto por falta de anestesistas

No final, esta história viria a ter um final feliz. Marlene, Patrícia e os respetivos bebés salvaram-se e estão bem de saúde, numa episódio que retrata, na prática, as dificuldades que as circunstâncias podem impor aos médicos que se encontram a trabalhar integrados em equipas com um número de especialistas abaixo daquele que é recomendado pela Ordem dos Médicos. Um pormenor relevante: para se proceder a uma cesariana são sempre necessários dois especialistas. “As coisas que se veem neste país… ninguém acredita. Estas médicas foram heroínas”, diz Ângela Rodrigues.

Há cerca de uma semana, o bastonário da Ordem dos Médicos tinha criticado a atitude dos hospitais quanto à constituição das equipas de urgência. Carlos Cortes afirmou que há dezenas de queixas de que as urgências estão a funcionar com equipas que não cumprem os rácios mínimos e apelou aos conselhos de administração hospitalares e à Direção Executiva do SNS que fossem transparentes.

"Isto já não é uma questão de dinheiro; é uma questão de segurança para os utentes e para os médicos"
Ângela Rodrigues, anestesista do Hospital Amadora-Sintra e dirigente do Sindicato Independente dos Médicos

Questionado, o Hospital Fernando da Fonseca confirma a situação em que as duas obstetras se viram envolvidas, admite que estavam escalados menos especialistas do que o exigido, mas garante que a equipa de Cirurgia Geral acorreu ao bloco de partos logo de seguida para auxiliar a anestesista que ficou com Marlene. No entanto, de acordo com a Ângela Rodrigues, a ajuda demorou pelo menos 20 minutos, uma vez que, também com uma equipa reduzida, os cirurgiões têm dificuldade em dar resposta a todos os doentes. “A equipa de cirurgia diz que não tem competência para fazer cesarianas, e é verdade”, sublinha. A dirigente sindical realça que está em causa a segurança de profissionais de saúde e doentes. “Isto já não é uma questão de dinheiro; é uma questão de segurança para os utentes e para os médicos. Vamos ter um dezembro péssimo”, vaticina.

Mais de 60 km e 24 horas depois, Sofia voltou para o hospital de origem sem ser operada

Pouco mais de 30 quilómetros separam o Hospital Padre Américo, em Penafiel, do Hospital de São João, no Porto. Com a urgência cirúrgica de Penafiel encerrada, no domingo, dia 22 de outubro, por falta de médicos (em greve às horas extras), foi esta a distância que Sofia, de 23 anos, percorreu, pela A4, para ser submetida a uma cirurgia ao apêndice. A jovem tinha dado entrada, horas antes, na urgência de Penafiel com um quadro de apendicite aguda.

À primeira vista, esta é só mais uma no meio de tantas histórias de doentes transferidos de um hospital periférico para um hospital central, devido à indisponibilidade que muitos médicos demonstram em realizarem mais horas extra. Neste caso, o problema, relatado ao Observador pela médica cirurgiã Susana Costa, é que Sofia também não foi operada no Porto, e no dia seguinte, uma segunda-feira, mais de 24 horas depois de ter dado entrada no São João, voltou para Penafiel — para aí ser operada.

As causas para este incêndio, cujo alerta foi dado às 8h02, são desconhecidas

Urgência cirúrgica do Hospital de Penafiel está fechada desde outubro e assim deverá continuar até final do ano

© Ricardo Castelo / Observador

Susana Costa garante que situações como esta têm ocorrido com frequência. “É inaceitável. Estamos a submeter doentes com indicação cirúrgica a transferências de mais de 30 quilómetros. Ficam horas num serviço de urgência, sem conforto, e são retransferidos para serem operados”, relata a médica, que acompanhou Sofia na viagem até ao Porto e no regresso a Penafiel. “É um enorme prejuízo para os doentes”, acrescenta.

Segundo a médica cirurgiã, naquele domingo, a urgência do Hospital de São João, a braços com doentes encaminhados por várias unidades hospitalares da região Norte, estava “repleta de doentes”. Sofia esperou horas, com dores abdominais, até ser informada de que iria regressar ao hospital de origem, por acordo entre as direções dos serviços de urgência dos dois hospitais. Sofia acabou por ser operada ao apêndice no dia seguinte, mas a cirurgia foi feita à custa de outro doente. O hospital Padre Américo teve de cancelar uma operação programada para poder operar a jovem. Em outubro, esta unidade hospitalar esteve vários dias com a urgência de Cirurgia Geral encerrada por falta de especialistas disponíveis para continuarem a realizar horas extra. Em novembro, a situação terá piorado e a urgência cirúrgica tem estado fechada todos os dias.

Nova semana do “pior mês do SNS” com 37 urgências encerradas: veja as limitações em cada hospital

Susana Costa alerta para as complicações clínicas que podem resultar de tempos de espera e de transportes longos entre hospitais. “Se alguns doentes não tinham situações clínicas complicadas, ao fim de tantas horas e de vários transportes podem ver a sua situação agravar-se. O risco de complicação infecciosa, de isquemia, é muito maior”, salienta a especialista, que chama também a atenção para o impacto económico dos atrasos nas cirurgias.

“Se submetermos um doente a uma operação 12 horas depois do timing em que devia ter sido operado, a probabilidade de complicações é muito maior, a necessidade de internamento é maior, a necessidade de antibioterapia também, vai demorar mais tempo a recuperar para retomar a sua vida laboral”, salienta a cirurgiã de Penafiel, que é também uma das porta-vozes do movimento Médicos em Luta. “Fica muito mais caro do que aumentar em 30% o vencimento dos médicos”, defende.

Cirurgia protelada terá provocado morte nas Caldas da Rainha. Hospital abriu inquérito

Também no final de outubro, Maria deu entrada no Hospital das Caldas da Rainha com uma gangrena de Fournier — uma infeção aguda dos tecidos moles da região perianal, que exige intervenção médica imediata. Grande parte dos médicos cirurgiões do Centro Hospitalar do Oeste (CHO, que abarca esta unidade hospitalar) apresentaram escusas à realização de mais horas extra, que já se encontravam em vigor em outubro.

Nesse dia, a urgência tinha apenas um cirurgião escalado, um médico prestador de serviço. “O médico estava sozinho e a cirurgia foi protelada”, conta ao Observador o cirurgião Paulo Sintra, que teve conhecimento do caso. “Foi tentada a transferência para o Santa Maria, que não aceitou”, acrescenta o médico. O Hospital das Caldas pediu depois ajuda ao serviço de Cirurgia do Hospital de Torres Vedras, mas quando chegou o cirurgião “já não foram a tempo” e Maria acabou por morrer horas depois devido a um choque séptico, a falência de vários órgãos causada por uma infeção generalizada.

Utente morreu no Hospital das Caldas da Rainha. Cirurgia terá sido adiada por falta de especialistas na escala

CARLOS BARROSO/LUSA

“Não atuar de imediato de certeza que contribuiu para o desfecho”, diz o especialista. Questionado pelo Observador, o Centro Hospitalar do Oeste confirma a morte da mulher e adianta que abriu um inquérito “para apurar as circunstâncias da assistência prestada à utente” — cujo falecimento o CHO “lamenta” — “para cabal esclarecimento deste caso concreto”. No entanto, o centro hospitalar garante que a “utente foi prontamente assistida e com intervenção de várias especialidades” e que se tratava de “uma situação de extrema gravidade clínica e com prognóstico reservado no momento da admissão na Urgência”.

Ainda antes do início da entrega das escusas, vários serviços hospitalares já se encontram bastante condicionados devido à falta de médicos especialidades. Nos casos da Obstetrícia e da Pediatria, a Direção Executiva do SNS tem divulgado planos dos mapas de urgências desde final de 2022 e desde março de 2023, respetivamente, de modo a concentrar médicos em determinados hospitais, de forma alternada.

Médicos dos centros de saúde estão “sobrecarregados”. Mais de 300 mil consultas ficaram por realizar devido à greve às horas extra

Rodrigo caiu de um primeiro andar, passou por Torres Novas e Santarém e acabou em Santa Maria

As escusas apresentadas pelos médicos às horas extraordinárias (para lá das 150 anuais previstas na lei) agravaram um problema crónico no SNS, de falta de médicos para todas as necessidades, que tem levado ao encerramento temporário de vários serviços de urgência em todo o país, obrigando a um funcionamento em rede.

Na região Centro, ainda antes do início da apresentação sucessiva de pedidos de escusa, foi precisamente a a falta de articulação entre hospitais que atrasou o socorro a uma criança de dois anos, que caiu do primeiro andar de um prédio em cima de uma estrutura de cimento. Rodrigo foi levado pela família para o hospital de Torres Novas para ser assistido. Contudo, naquele que era o último domingo de setembro, e com a urgência pediátrica encerrada por determinação da Direção Executiva do SNS, o hospital (que pertence ao Centro Hospitalar do Médio Tejo) decidiu transferir Rodrigo para o Hospital de Santarém, quando esta unidade também não estava capacitada para prestar cuidados à criança, politraumatizada, uma vez que, nesse dia, a urgência de Ortopedia se encontrava encerrada por falta de médicos.

“Santarém tinha de facto a Pediatria aberta, mas este doente tinha de ser visto pela Ortopedia, como é óbvio”, diz o atual diretor do serviço de Cirurgia do Hospital de Santarém, Paulo Sintra, que salienta que a criança deveria ter ido de imediato para o centro de Trauma mais próximo, ou seja, para o Hospital de Santa Maria ou para o D. Estefânia, em Lisboa.

"A rede está a ser gerida de uma forma puramente administrativa. Quando não há médicos pelo meio, dá asneira"
Paulo Sintra, cirurgião

Em casos como este, em que o INEM não é acionado (e em que, por isso, não há intervenção do Centro de Orientação de Doentes Urgentes, o CODU), a comunicação entre hospitais é crucial para decidir qual a melhor unidade de destino para os doentes, consoante as valências que cada unidade hospitalar tem operacionais em determinado momento. No caso, terá falhado a comunicação entre o Hospital de Torres Novas e de Santarém. Contactada, fonte oficial do CHMT garante que foram feitas diversas tentativas de contacto com a urgência do Hospital de Santarém — que ficaram sem resposta — e que a criança foi transferida com segurança, acompanhada de médico e enfermeiro. Rodrigo foi depois encaminhado para o Hospital de Santa Maria, a 80 quilómetros de distância.

“O problema é que a rede está a ser gerida de uma forma puramente administrativa. Quando não há médicos pelo meio nestas decisões, dá asneira”, salienta Paulo Sintra.

Desde o início de outubro que o SNS está a ser afetado pelas escusas de médicos à realização de horas extraordinárias para lá das 150 horas extra anuais previstas na lei. Uma situação que, no caso de alguns hospitais, está a provocar também o adiamento de cirurgias programadas (uma vez que alguns conselhos de administração estão a desviar médicos para os serviços de urgência, secundarizando a atividade programada) e a diminuição do número de camas em cuidados intensivos (uma medida relacionada com a entrega de minutas por parte de muitos médicos intensivistas e que terá impacto nas cirurgias programas, uma vez que uma parte destes atos implicam um internamento posterior em unidades de intensivos).

Segundo a contabilização feita pelo movimento Médicos em Luta — e tendo em conta que os hospitais optam por não divulgar o número de escusas que recebem –, há cerca de 3.500 a 4 mil minutas entregues neste momento. O protesto está a condicionar fortemente as urgências hospitalares, com 37 hospitais a verem um ou mais serviços de urgências afetados.

*os nomes dos utentes referidos neste artigo são fictícios

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