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JOÃO SEGURO/OBSERVADOR

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António Vaz Carneiro: "Nenhuma terapia alternativa tem qualquer base científica, com exceção da acupuntura médica"

O médico não tem problemas em contrariar os colegas ou os decisores políticos se achar que as afirmações não foram baseadas em ciência. E desafia os opositores da ciência a provarem que está errado.

António Vaz Carneiro criou o Centro de Investigação de Medicina Baseada na Evidência (Cembe) há quase 20 anos, mas acha que se tornou mais conhecido por causa da gripe A, em 2009. Sem ser infecciologista, e baseando-se apenas no que os dados científicos lhe diziam, estimou que, naquele ano, a gripe A não mataria mais de 100 pessoas em Portugal — morreram 80. Na mesma altura, propôs à ministra da Saúde que não se comprasse nenhuma vacina contra esta gripe porque era inútil, mas não lhe deram ouvidos.

Medidas desnecessárias na prática clínica acontecem diariamente, segundo o também diretor do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública, como as análises e exames de diagnóstico que os doentes fazem sem necessidade e que lhes podem causar mais mal que bem. Por isso se prepara para lançar uma ferramenta de apoio à decisão — “Choosing Wisely Portugal” –, no site da Ordem dos Médicos, em que é apresentada a melhor informação disponível em cada especialidade para que médicos e doentes façam escolhas informadas em saúde.

A comunicação da melhor informação disponível em saúde é um dos objetivos do Cembe e da Cochrane Portugal, que promove a realização e divulgação de revisões sistemáticas de publicações científicas dentro das áreas da saúde. O médico internista, diretor da Cochrane Portugal, falou-nos da medicina baseada na evidência e da importância que isso tem  nos melhores cuidados de saúde que podem ser prestados às pessoas.

António Vaz Carneiro é médico internista no Hospital de Santa Maria e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa - João Seguro/Observador

JOÃO SEGURO/OBSERVADOR

Ainda há pouco tempo uma pessoa me dizia que não queria evidências, queria provas. Evidência é prova ou não? Esta tradução literal do inglês faz sentido?
Essa tradução, tenho de assumir que fui eu que a fiz. No início, quando falámos em criar o centro [Centro de Investigação de Medicina Baseada na Evidência, Cembe] discutiu-se muito a tradução. A tradução [de “evidence” para] “evidência” é uma tradução errada, mas acabei por defender que a tradução de “evidence-based medicine” ficaria melhor captada se fosse “medicina baseada na evidência” e não “medicina baseada nas provas”. De facto, devia ser “medicina baseada nas provas científicas”. Evidência, em português, é aquilo que não necessita de provas. Em inglês, “evidence” quer dizer provas. São duas coisas completamente diferentes. Acabou por prevalecer a minha ideia. E é curioso, que hoje já se utiliza muito na saúde “evidência” como “prova”, quando de facto não é.

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Mesmo quando a evidência é forte podemos ter certezas absolutas ou nunca há certezas absolutas na ciência e, neste caso em particular, na medicina?
Os fenómenos biológicos, pela sua variabilidade intrínseca, impedem qualquer certeza absoluta sobre o que fazemos, apesar do desenvolvimento científico ser cada vez maior — aliás, ser extraordinariamente intenso. Daqui a cinco ou 10 anos, a medicina que vamos praticar não tem nada a ver com a que fazemos hoje. Desde que me formei nunca vi nada assim. E ao contrário do que as pessoas pensam, os fenómenos biológicos são suficientemente imprevisíveis para funcionarmos basicamente em termos de estimativas probabilísticas. Deixe-me explicar melhor. Se eu der um medicamento qual é a probabilidade de que o doente melhore? Há uns doentes que vão melhorar, há uns doentes que não vão melhorar e há outros doentes que vão piorar, mas individualmente não sei o que vai acontecer a cada doente. A maior parte deles vai ter a resposta que os estudos detetaram, mas há certos doentes que não. Em tudo aquilo que fazemos há uma enorme carga de incerteza, ao contrário do que as pessoas pensam.

E quando estamos a desenvolver tecnologias, essa incerteza não diminui, antes pelo contrário: em certos aspetos aumenta. Vou dar um exemplo: hoje a imagiologia em medicina é de tal ordem sofisticada que estamos a detetar coisas nos doentes que não fazemos a mais pequena ideia de qual é o significado clínico. A imagiologia está de tal maneira desenvolvida que nos cria problemas novos. Portanto, a única hipótese que tenho de diminuir a incerteza é com informação de boa qualidade, não tenho outra. É a informação científica que me permite diminuir a incerteza, não são os avanços tecnológicos, é pura e simplesmente a informação de alta qualidade. Mas continuamos a trabalhar em áreas de muita incerteza, portanto temos de estar preparados para um mau resultado — fez-se tudo como manda o estado da arte, mas as coisas correram mal.

Esse é um dos problemas que leva algumas pessoas a deixarem de acreditar na medicina: quando se espera que a medicina resolva todos os problemas e não consegue resolver. Deixam de acreditar e passam a acreditar noutras coisas.
Essas pessoas precisam compreender que os fenómenos biológicos só podem ser captados através de uma linguagem científica. Se alguém provar [que existe] outra, eu aceito. Mas a grande metodologia para determinar a natureza profunda num ser humano, numa célula, num sistema é através do método científico, não tenho outro. Hoje sei o que é um enfarte do miocárdio ou um enfarte do coração, porque sei o que é uma circulação coronária que entope e onde deixa de passar o sangue e mata a parte do músculo que é irrigado por aquela artéria que deixou de funcionar. Sem método científico não sou capaz de captar a verdadeira natureza do fenómeno biológico normal e anormal. E esta abordagem tem sido espectacularmente eficaz.

"É a informação científica que me permite diminuir a incerteza, não são os avanços tecnológicos."

Se percebo o que me está a dizer, só podemos ter medicina baseada na evidência.
Certo.

Não pode haver outro tipo de medicina?
Pode haver, mas não é eficaz e não vai ter os resultados que nós obtivemos. Vou dar-lhe um exemplo de uma métrica clássica, mas que é verdadeiramente espectacular: a expectativa de vida. Uma criança do sexo feminino que nascesse no século passado, em 1900, esperaria viver 40 anos, em média. Se fosse do sexo masculino esperaria viver uns 36, mais ou menos. Uma criança do sexo feminino que nasça hoje em Portugal espera viver 86 anos. E um homem, 78-79 anos. Ganhámos quase 50 anos de sobrevida. Por melhores condições sociais, por melhores saneamentos básicos, por melhores condições de habitação. Mas, tiremos o cavalinho da chuva, mais de 60 ou 70% disso foram os remédios [o sistema de saúde]. Que, ainda por cima, para permitirem viver dos 80 aos 81 anos, são precisos mais remédios do que dos 30 para os 31.

Num século ganhámos 50 anos de sobrevida. Isto muda radicalmente as sociedades e, bem entendido, aumenta o peso específico nos sistemas de saúde: quanto mais velhas as pessoas são, mais precisam dos sistemas de saúde. O maior fator de risco para a morte é a idade — quanto mais velhos nós somos, mais provável é morrermos. Isto é tiro e queda.

Há uma nova filosofia que se chama medicina narrativa. Já ouviu falar?
Embora nenhum médico tenha a coragem de dizer que a ciência não é importante para a sua prática, houve inicialmente uma reação de reserva a este novo paradigma [medicina baseada na evidência]. Pensava-se que a ciência iria engessar, imobilizar o ato médico, que teria de se fazer como a ciência dizia. Rapidamente se verificou que não era assim. A prática da medicina baseada na evidência é uma combinação de três coisas. Primeiro, a minha relação com o doente — a relação médica que não tem nada a ver com ciência, tem a ver com sensibilidade, moral, ética, tem a ver com psicologia, com a interação pessoal, com a capacidade de comunicação. E, durante 25 séculos era o que havia, havia a relação com os doentes, não havia mais nada. Depois, em segundo, apareceu a ciência a sério no século passado. Passei a ter uma relação muito boa com os meus doentes e, simultaneamente, a dominar o melhor possível o corpo científico da minha especialidade. Corpo científico esse que duplica de três em três anos ou de quatro em quatro anos. Em terceiro, há uns 20 e tal ou 30 anos apareceu todo um mundo da parte da gestão, da economia, dos recursos e dos gastos. Hoje espera-se que um médico tenha uma excelente relação com os doentes, domine bastante bem o corpo científico da sua prática e, simultaneamente, seja um gestor de recursos que lhe são entregues para ele gerir e do qual ele é responsável.

Pretendeu-se que no meio desta tríade, as últimas partes iriam prejudicar a parte da relação humana entre os médicos e os doentes, daí uma tentativa de explicar uma outra realidade médica através da narrativa de casos individuais. É preciso escrever a relação humana entre os médicos e o contexto do doente na sociedade? Sim, sim, achamos que é de todo o valor. Não acho que a medicina narrativa seja, por definição, anti-científica. Entra às vezes por uns campos, que eu teria cuidado a entrar por aí, mas reflete uma necessidade absoluta. A compaixão que tenho pelos meus doentes que estão a morrer não pode ser substituída por ciência, ou tenho ou não tenho, ou fui treinado para isso ou não fui treinado para isso. A medicina narrativa tenta recentrar a prática nos valores dos doentes. Sabemos isso e defendemos isso desde sempre na medicina científica. Digamos que, neste momento, a medicina narrativa complementa a medicina científica.

A falta de tempo para os doentes é um problema?
A sociedade exige-nos isso, quando estou sentado numa consulta e esperam que veja seis doentes por hora. Estou disposto a alargar o tempo de consulta, mas têm de ser os cidadãos a dizer: “Não, não, não quero que veja seis, só quero que veja quatro.” Se não, não há alternativa, não tenho como. A produtividade deste hospital é astronómica. Estão aqui 10 mil pessoas todos os dias. Não tenho tempo, tem de sair àquela hora, porque vem outra pessoa a seguir. Tenho de fazer todo aquele trabalho naquela compressão de horas porque todo o sistema trabalha em compressão de horas. Só socialmente disponibilizando uma nova realidade, mas não é isso que parece. Antes pelo contrário, parece estar a ser exigido cada vez mais trabalho, isto é, a pressão social para nós produzirmos é cada vez maior.

Hoje em dia temos 10 vezes mais produtividade do que quando me formei. Hoje vejo 10 vezes mais doentes do que quando me formei, com problemas do género: 95% dos medicamentos que utilizo nem sequer existiam quando saí da escola médica. A produção de informação de alta qualidade é absolutamente esmagadora.

"Hoje vejo 10 vezes mais doentes do que quando me formei."

Porque é que criaram o Cembe — centro de medicina baseada na evidência?
O centro produz conhecimento, faz investigação ou faz uma gestão da informação existente. A produção científica em medicina é absolutamente esmagadora. Publica-se qualquer coisa como três milhões de artigos por ano. Desses, uma parte significativa não se aplica diretamente aos doentes, mas restam umas centenas de milhar que, em teoria, são importantes ou são relevantes para os cuidados. O que quer dizer que se publica qualquer coisa como sete mil artigos por dia. Desde que estamos aqui, já saíram mais 500. Quando chegar a casa logo à noite gostava de saber quais é que vou ler. Isto é um problema complexo. E está a piorar — no sentido que está a melhorar –, isto é, quando me formei pensava-se que o conhecimento médico duplicava em 10 anos, agora, os últimos estudos, diz que duplica em 2,7 anos. E provavelmente no futuro, nos próximos 20 anos, alcançaremos os seis meses a um ano de duplicação. Portanto, centros como o meu são cruciais.

Como é que um médico se mantém a par de todas essas publicações?
Não consegue. E são centros como o meu que vão buscar os estudos que são relevantes, que sabem procurá-los — há 20-30 bases de dados a nível mundial que têm todos os estudos biomédicos que são relevantes, desde coisas puras e duras de cancro até coisas psiquiátricas. A base de dados mais importante é a Medline e tem 24 milhões de artigos, depois a Embase (a “Medline europeia”) que tem 22 milhões. A questão não é saber se tenho resposta para as minhas questões, devo ter, a questão é onde está, e uma vez que tenha aquilo na mão: “Isto é bom?” Essa é que é a grande questão. Aquilo que fazemos, e somos especialistas, é identificar e localizar estes estudos, num primeiro passo. Num segundo passo, avaliá-los cuidadosamente em termos da sua qualidade metodológica, que me diz se o estudo é bom ou não é — a grande parte dos estudos não é suficientemente bom para levar em conta. O terceiro passo é sintetizá-los. E o quarto passo é entregá-los à pessoa que vai decidir: ao médico, ao gestor, ao doente. O que fazemos é garantir que a nossa informação é a da mais alta qualidade de base científica. Não temos opinião. Costumo dizer que não tenho opinião, mostro o que a ciência mostra. Se as pessoas acreditam, muito bem, se não acreditam, muito bem.

São procurados com frequência?
Há áreas em que somos intensamente procurados, como na área académica, como é óbvio.

E pelos decisores políticos?
Sim, temos feito alguma coisa, mas não é a nossa área principal. O problema de toda esta investigação para os políticos é que demora tempo, e para os políticos é tudo para anteontem. E há uma tensão entre o rigor que tenho de ter para fazer estas coisas e a velocidade com que o ministro precisa de respostas. Temos tentado dar um apoio mais pontual e mais rápido, mas aquilo que consideramos de melhor qualidade demora tempo. Vamos tentar fazer isto de outra maneira, racionalizar alguns passos, para diminuir o tempo, mas continua a ser um problema grande. Consultam-nos pontualmente, mas não temos uma política baseada na evidência. Nem devemos ter, provavelmente.

Não chegamos a ter ou não precisamos?
Não é possível ter, porque há uma decisão política de oportunidade ou até de custo. Isso aceito perfeitamente. A questão que muitas vezes ponho é: “Quando há boa evidência porque é que não a utilizam?” Essa é que é a questão. Mas temos de lhes deixar essa liberdade.

"Quando me formei pensava-se que o conhecimento médico duplicava em 10 anos. Agora, diz-se que duplica em 2,7 anos. E provavelmente no futuro, nos próximos 20 anos, alcançaremos os seis meses a um ano de duplicação."

Pego exatamente nisso, na existência de evidências e nas decisões políticas, para falar sobre as terapêuticas não-convencionais. Estas terapêuticas têm validação científica ou não?
Se olharmos para o modelo de produção de prova, nenhuma terapia alternativa tem qualquer base científica, com exceção da acupuntura médica — que é uma especialidade médica. Temos estudado muito isso e já não é possível dizer outra coisa. Não há nenhuma prova, por mais remota que seja, que as terapias tradicionais chinesas, a homeopatia, o pézinho chinês, as quiropráticas, a osteopatia, funcionem. A osteopatia e a quiroprática são uma espécie de fisioterapia de massagens. Para as dores poderão funcionar, mas não podem curar um enfarte de miocárdio, nem o cancro da mama.

Não há nenhuma base científica para isto. E não havendo nenhuma base científica, temos o dever moral e ético de nos opormos firmemente a este tipo de práticas. Porquê? Porque elas são enganadoras. O argumento de que muita gente frequenta as terapias alternativas não é um argumento válido sob o ponto de vista científico e profissional. As pessoas continuam a fumar apesar de toda a gente saber que o tabaco faz mal.

Porque é que a medicina alternativa faz tão poucos estudos? Vamos estudar! Já propus isso mais do que uma vez. Se acham que os copos de água da homeopatia curam a gripe mais frequentemente do que os outros medicamentos, proponho fazermos um estudo. Arranja-se um financiamento e fazemos o estudo aqui, não tenho problemas nenhuns. Pego em seis mil doentes, três mil com vírus da gripe e três mil sem gripe, dou os copos de água da homeopatia, sigo estes doentes durante três meses e vejo qual é o resultado. É um estudo relativamente fácil de fazer. Porque é que nunca foi feito?

A queixa dos profissionais das terapias alternativas é de falta de financiamento para este tipo de estudos. Argumentam que a investigação em medicina é financiada pela indústria farmacêutica e que a indústria farmacêutica não tem interesse em financiar estes trabalhos.
Isso é uma falácia. Podem sempre arranjar financiamento. O que acontece aqui, a meu ver, é que as sociedades modernas, apesar de viverem baseadas na tecnologia produzida por ciência — o telemóvel é um objeto de física, o automóvel saiu de um processo de engenharia complexa —, na saúde (e não só) caracterizam-se por uma crença, cientificamente infundada, de que estas abordagens são válidas em termos terapêuticos para os problemas mais comuns que as pessoas têm.

As pessoas quando não encontram a solução na medicina — porque a medicina não tem solução para tudo —, procuram outras alternativas.
Mas também não vão encontrar.

Também prevalece a ideia de “o mais natural possível” e os medicamentos são considerados o oposto a isto. Daí que algumas pessoas procurem estas alternativas.
Mas as moléculas são todas iguais. A molécula de um medicamento é igualzinha à molécula da planta, não há nenhuma diferença entre a estrutura química fabricada no laboratório e a estrutura na planta. Portanto, essa ideia de que os medicamentos são qualquer coisa de anti-natural é uma ideia trágica, porque habitualmente as pessoas, ao prescindirem de usar alguns medicamentos que lhes poderiam salvar a vida, quando verificam que estão a ser enganadas já é tarde demais. As pessoas acham que o que é natural não faz mal. É mentira! Há ervas chinesas altamente tóxicas. Tive vários doentes a 24 horas de terem o fígado transplantado por uma reação hepatotóxica gravíssima por causa de uns chás chineses.

Não achamos que a medicina possa solucionar tudo, isso seguramente não achamos. A medicina está longe de poder resolver todos os problemas das pessoas, mas tem impacto extraordinariamente positivo na vida das pessoas. Acontece que hoje há uma coisa filosófica, que há 20 anos não existia, a que chamo “ignorância militante”, cujo exemplo típico é o Presidente dos Estados Unidos. Não sei se o homem é inteligente ou não é inteligente, o que sei é que ele diz assim: “Não há alterações climáticas.” E vem um cientista e explica: “Mas olhe que eu tenho provas científicas de que isto é verdade.” Trump responde: “Não quero saber. Porque a minha opinião é tão válida como os seus dados científicos. O que eu acredito é tão importante como os resultados.” E isto é novo. Isto permite que as pessoas digam barbaridades que há 20 anos não diziam.

O diretor do Cembe afirma que não existe qualquer prova científica de que as terapias não-convencionais funcionem - João Seguro /Observador

JOÃO SEGURO/OBSERVADOR

Acha que as pessoas perderam a confiança na ciência como um todo?
Acho que há um movimento anti-científico fortíssimo a nível mundial.

O que pode justificar isto?
A resposta é complexa. A minha explicação para isto tem a ver com as novas forças sociais que nos rodeiam hoje em dia. Nunca pensei dizer isto, mas acho que atingimos um ponto em que provavelmente estamos a ter democracia a mais. Explico-lhe o que quero dizer com isto: quando os pequenos grupos — por definição, minorias — impõem a sua vontade às maiorias (seja cultural, social, política ou técnica), o que acontece é que um consenso generalizado sobre uma coisa deixa de ser bom e passa a ser interpretado como algo de opressor. Sente-se um ódio não justificado às elites, pensa-se que as elites são todas corruptas, que se servem a si próprias, não se importam com as outras pessoas e até nos exploram. Essa raiva anti-elites espalha-se rapidamente para a ciência. A ciência também é tida como uma elite, os cientistas e investigadores são tidos como pessoas que se servem a si próprias, que têm as suas carreiras, que não querem saber de mais ninguém, o que produzem é só porque acham que aquilo é bom para eles. Na saúde, que é talvez dos campos onde há mais dinheiro, as pessoas entram automaticamente numa fase de conflito conceptual e deixam de acreditar que há pessoas que não têm conflitos de interesse, que são capazes de dizer aquilo que pensam, explicando de uma maneira transparente quais foram as suas opções e porque é que dizem o que dizem. No outro dia escrevi um artigo sobre o leite. Penso que muita gente poderá ter pensado que estava a ser capturado pela indústria do leite, ou seja, alguém me estava a pagar para dizer aquilo. Isto é uma tragédia.

As pessoas só veem aquilo que querem ver e só só leem o que se encaixa naquilo que já pensam?  É isso que quer dizer? Como é que a ciência pode chegar a estas pessoas que têm enraizados uma série de mitos sobre por exemplo o leite, as vacinas…
Informando-as.

Mas essas pessoas só são informadas se quiserem ser informadas.
De acordo, mas na saúde as coisas têm consequências. Posso achar engraçado que alguém pense que a Terra é plana. Não tem importância. Na saúde a questão é outra. As decisões dos doentes são sempre boas. Se fez uma análise de benefício-risco e decidiu, por mim está sempre bem, não tenho de impor a minha opinião. Coisa diferente é a vacinação: aqui é o interesse coletivo contra a decisão individual. As pessoas podem dizer que têm o direito de não serem vacinadas. Também têm o direito de andar no lado esquerdo da autoestrada, mas é melhor não o fazerem. As pessoas que não se vacinam estão a ter um risco maior de apanhar a doença, não só para si, mas também para os outros, porque são veículos de propagação. A única hipótese que temos é a comunicação, não temos outra. Dentro de todos os campos científicos há sempre mitos e crenças, mas nenhum deles se aproxima da saúde. A saúde é de longe aquele onde há mais mitos e crenças.

"Estamos a ter democracia a mais. Explico: quando os pequenos grupos — por definição, minorias — impõe a sua vontade às maiorias, o que acontece é que um consenso generalizado sobre uma coisa deixa de ser bom e passa a ser interpretado como algo de opressor."

Também é o campo da ciência que nos afeta mais diretamente. E os mitos em saúde não são inócuos.
Não são inócuos. Têm consequências individuais, têm consequências familiares e têm consequências coletivas e sociais. Uma delas é a aprovação recente da licenciatura em medicina tradicional chinesa. Não foram apenas os ministros da Saúde e da Ciência e Tecnologia — que são pessoas honestas, que têm uma base científica e que sabem que aquilo é uma fraude inominável —, mas os deputados que aprovaram aquilo por unanimidade. Portanto, temos aqui um problema muito sério, porque não chegámos aos decisores. Vamos pagar um preço e esse preço irá espalhar-se durante muitos anos. A esperança aqui é que o sistema nacional de saúde seja capaz de detetar as complicações e as não intervenções que estes tipos de terapias fazem e ajudar os doentes na parte mais precoce possível. Quanto às convicções, não temos, na minha perspetiva, outra alternativa que não a informação maciça, sistemática, permanente.

Uma das alegações para esta decisão dos deputados é regulamentar, porque toda gente pode praticar, indiscriminadamente, em qualquer sítio, em clínicas de qualquer tipo e com profissionais com qualquer tipo de formação e experiência. Acha que esta regulamentação pode servir de proteção aos doentes?
Mas é uma regulamentação em relação a quê? Temos de ter um padrão para regulamentar. A regulamentação é em relação a quê? Aos quatro humores, aos três aquecedores, ao yin e yang? Não. Têm de me dizer o que é para regulamentar. Vou mesmo dizer que tive um ataque de coração e que fiz uma massagem não-sei-quê para tratar a minha doença coronária? Regulamenta o quê? O que é que eu posso regulamentar nesta barbaridade? Regulamento o quê, o acesso? Mas o acesso como? Defino o que são os quadro clínicos?

No artigo que escrevi para o Observador com o bastonário [da Ordem dos Médicos], o que propunha era pôr na parede destes consultórios que estas terapias não curam as doenças. Pelo menos, quando o doente chega, tem ali aquela informação. Não vou ter sorte nenhuma, mas era o mínimo que eu achava que se devia fazer. Não há provas científicas que a medicina tradicional chinesa cure doenças cardiovasculares, oncológicas, reumatológicas, psiquiátricas. Não há. As sociedades modernas são suficientemente complexas e desorganizadas no sentido cultural do termo para nós sabermos que não podemos regulamentar tudo. E este fenómenos vão sempre existir. A minha esperança é que as pessoas estejam suficientemente informadas para saberem o risco que correm. Não tenho outra hipótese.

Na medicina alopática tradicional reconhecemos que uma consulta em que o terapeuta alternativo está uma hora inteira com o doente, a conversar olhos nos olhos, e a ouvi-lo atentamente, dá uma sensação de segurança que não dá o médico apressado que tem dez minutos para ver o doente. Sabemos isso, reconhecemos isso. Não é, no entanto, justificação, para se poder oferecer aos doentes terapêuticas ineficazes, potencialmente perigosas, não monitorizadas. Isso é inaceitável. Não podemos ter dois pesos e duas medidas. Não posso exigir à indústria farmacêutica que faça 20 ensaios clínicos para um novo medicamento, que gaste 300, 400, 800 milhões de euros a fazer isso, para aprovar este medicamento, que depois ainda tenha de se sujeitar a um processo regulamentar terrível até chegar ao mercado, e de repente achar que qualquer pessoa faz uma massagem tsuiuiyangyangyen [nome inventado]. Não pode ser. Temos de ter um mínimo de honestidade intelectual.

Em medicina, quando se substitui a ciência pela política, quem sofre são os doentes

Mas a própria Organização Mundial de Saúde [OMS] recomenda estas terapias.
A Organização Mundial de Saúde não é, na minha perspetiva, uma agência que mereça o respeito que tem universalmente, porque muitas vezes não está a agir como uma agência científica, mas como uma agência política e confunde as duas coisas. E ao confundir as duas coisas está a matá-las a ambas. As pessoas ficam sem saber se aquilo é uma recomendação política ou se é uma recomendação técnico-científica.

Como é que fica uma pessoa que ouve e aceita esta recomendação da OMS?
É uma recomendação errada. Nos nossos pressupostos de que uma abordagem na saúde devem haver uma base científica, eles estão errados. Não têm mais ciência do que nós temos. Não se baseiam em nada diferente do que aquilo que nós nos baseamos. A comunicação é aquilo que nós temos de lutar permanentemente — e vocês jornalistas são fundamentais para isso. Temos de estar constantemente a informar as pessoas.

Mas a quantidade de desinformação…
É gigantesca.

Por exemplo, a população idosa está mais suscetível a programas de televisão com esta desinformação ou informação pseudocientífica.
Por isso a minha proposta seria um sistema proativo com o Ministério [da Saúde] e com as sociedades profissionais (como a Ordem dos Médicos). Com o programa da Harvard Medical School, que coordenava, íamos ter com as pessoas onde elas estavam: nas televisões das salas de espera dos centros de saúde, nas redes internas das grandes companhias, como PT, EPAL, … Fazíamos vídeos, quizzes, dávamos notícias. Consegui cinco minutos, duas vezes por semana, às nove da manhã, na SIC.

No outro dia estava lá numa entrevista [num programa da tarde] e estava a falar de uma coisa séria e chata sobre cuidados paliativos e decisões em fim de vida. Quando acabei de falar aparece uma mesa com um homem vestido de branco que começa a vender coisas. Ao fim de cinco minutos disse: “Oh Júlia, ele só está a dizer disparates. Você não pode deixar que o homem diga aquela coisa das vitaminas, aquilo intoxica os doentes. Como é que pode ter uma coisa daquelas aqui?”. “Quem é que o senhor pensa que paga o programa? Se eu evitar que eles venham cá, não tenho o programa no ar”. Portanto a minha proposta é muito simples: comprar segmentos. Íamos à televisão pública, púnhamos uma vez por semana, em [horário nobre], três minutos de um bom técnico (médico, farmacêutico, enfermeiro) que viesse trazer qualquer coisa de importante. Depois púnhamos isso nas redes sociais, depois púnhamos isso nas rádios. Tem de ser uma proatividade muito grande, isto implica um projeto de comunicação profissional e implica um investimento importante para estarmos sempre presentes.

"A Organização Mundial de Saúde não é, na minha perspetiva, uma agência que mereça o respeito que tem universalmente, porque muitas vezes não está a agir como uma agência científica, mas como uma agência política e confunde as duas coisas."

O que também deixa dúvidas nas pessoas é irem a dois médicos e os dois terem uma abordagem diferente.
É angustiante. Gostamos que os médicos digam a mesma coisa. Mas há muitas razões [para não o fazerem]: podem não ter certezas; a cultura científica dos médicos pode ser diferente; os médicos têm relações diferentes com os doentes; embora tenham contemplado as mesmas hipóteses, um médico escolhe uma hipótese, e outro escolhe outra, se for uma opção terapêutica que se sabe que o doente não vai fazer — não vale a pena recomendar uma dieta sem sal, sem açúcares e sem gorduras. Querem torturar os doentes?

Acha que os médicos, sobretudo os que não fazem investigação, têm falta de conhecimento do que é a ciência e do que é o método científico?
Acho. Tive uma polémica, no Expresso, com um colega — o Manuel Pinto Coelho —, de quem até sou amigo, que foi entrevistado pelo Expresso a propósito de um livro que escreveu, “Chegar Novo a Velho”. Na entrevista faz uma data de afirmações absolutamente bárbaras, coisas como nunca na vida vi escritas. Devo confessar, que ando nisto há muitos anos, nunca tinha visto barbaridades, coisas absolutamente grotescas, algumas delas perigosíssimas, totalmente desinseridas da ciência tradicional, tais como beber cinco litros de água do mar por dia. Aquilo foi de tal maneira que escrevi um artigo longo onde começo por dizer que o meu texto tem uns pressupostos: a ciência moderna para ser eficaz e para poder ser eficaz tem de ter provas científicas. Quem não acredita na ciência mais vale não continuar a ler. E foi só baseado nisso que me dirigi a três questões que o meu colega Pinto Coelho disse: a água [do mar], que a luz do Sol não traz qualquer problema ao cancro da pele e que as estatinas matam os doentes e o colesterol não provoca doença — isto é uma coisa catastrófica. Ele tinha outras, mas nem fui por aí.

Escolheu as mais graves?
As mais graves. Durante as semanas seguintes, os meus doentes vieram perguntar: “Será que devo continuar a tomar esta coisa [estatina] para o colesterol, o seu colega Pinto Coelho diz que não.” E aí tive de fazer um esforço secundário para explicar aos meus doentes. Àqueles que são capazes de ler um artigo [científico] envio-lhes os estudos. Mas nem todos são capazes. Estas pessoas [como o médico Pinto Coelho] destroem a nossas vidas, fazem a nossa vida miserável. Estas pessoas dão cabo de anos de esforços. São pessoas que têm uma autoridade grande, alguns até são prémios Nobel.

Há um prémio Nobel que defende que a infeção com o vírus VIH pode ser tratado estimulando o sistema imunitário com antioxidantes e suplementos alimentares.
Imagine o que é um tipo ir contra estas figuras. Mas temos de ir. Dê lá por onde der. Não tem nada a ver com a cultura científica da pessoa, tem a ver com a honestidade intelectual e com um conjunto de princípios. Que é o que eu digo quando discuto com as terapias alternativas. Não consigo discutir com um matemático se para ele dois e dois não são quatro. Tem de haver um mínimo de conceitos comuns, tem de haver um acreditar em sistemas de causalidade, em que aquilo em que vejamos causalidade seja comum, se não quem é que vai falar do quê. Se ele não acredita que dois e dois são quatro, estamos a falar de quê?

Presidente da Comissão Nacional para a Formação Profissional Contínua da Ordem dos Médicos - João Seguro/Observador

JOÃO SEGURO/OBSERVADOR

Mas há vários médicos que praticam terapias não-convencionais.
Há.

Como é que explica isso? Não é mais um motivo para as pessoas terem confiança nas terapias não convencionais?
Voltamos ao mesmo. As sociedades modernas são suficientemente abertas para haver dentro delas uma variação minor — porque não há muitos médicos que façam isso —, mas que têm uma voz grande. Este homem está a vender 50 mil exemplares deste livro. Se eu publicasse um livro sobre as coisas que tenho escrito, teria o mesmo impacto? Não.

A maior parte do público não tem uma educação estatística para compreender as probabilidades de doença. Ou seja, pensa que as relações causais são sempre fixas — se for para o sol apanho sempre cancro. O exemplo típico foi o que aconteceu com as leis anti-tabágicas, que se destinam a proteger não os fumadores, mas os fumadores passivos. Muita gente achava que chegava ao meio-dia ao restaurante e que se alguém estivesse a fumar saía às 14 horas com cancro.

Dou-lhe um exemplo: a crença de que a dieta e a diminuição das gorduras da dieta pode ter um impacto grande na saúde cardiovascular. Temos de procurar os ensaios clínicos, as experimentações, não podemos estar só a fazer ligações entre o colesterol médio desta população e a taxa de doença coronária [estudos observacionais]. Isso é válido, mas não é válido para estabelecer uma causalidade. Tenho de mexer no colesterol e ver o que acontece à taxa de doença coronária. Se ela baixar, posso dizer que é causal. E tenho centenas de ensaios clínicos a fazer isto.

Nos ensaios clínicos, os doentes são sujeitos a dietas metabólicas, feitas em laboratórios especiais para poderem diminuir a taxa de gorduras abaixo de 20%. E depois faz-se as experiências: se pegar nos doentes e for tirando 80 para 70, 70 para 40 e 40 para 20, o que é que acontece à doença coronária passado cinco anos? É um bom estudo. O que é que verificámos: em média — e isto está muito bem provado, estou a falar de dezenas de ensaios clínicos —, quando passo para a uma dieta ultra restritiva em termos de gordura — impossível de uma pessoa fazer no dia-a-dia —, o máximo impacto que tenho no colesterol global é entre seis e 12 miligramas por decilitro. Ou seja, se tiver 300 passo a ter 290. Outros aspetos: a mortalidade cardiovascular não se altera e a taxa de enfartes de miocárdio, fica igual. Agora tenho de lidar com esta informação. O que é que eu sei: sei que a dieta não vai alterar a minha mortalidade cardiovascular, não vai alterar a possibilidade de ter um ataque de coração, não me vai alterar a possibilidade de ter uma trombose. O que vai fazer é baixar uma percentagem pequena e modesta no meu colesterol. É bom? É. Justifica-se? É a grande questão. Devo ou não sacrificar a minha vida toda, em termos da qualidade daquilo que gosto [de comer] para ter uma redução tão modesta de apenas um marcador de doença coronária que é o colesterol? Pessoalmente, acho que não vale a pena. Pessoalmente, se tiver um problema de colesterol, tenho pena, mas tenho de tomar um comprimido [estatina] que me reduz 50% do colesterol.

E o doutor Pinto Coelho disse algo totalmente diferente.
Quando ele me diz que o colesterol não é importante. Penso: “O que é que se passa na cabeça deste tipo (para além de querer ganhar dinheiro com isto)?”. Este tipo está a ser tecnicamente estúpido, está a negar a própria natureza da ciência que depois vai chamar quando diz que quer dar 80 mil [unidades internacionais de] vitamina D por dia aos doentes com cancro. 80 mil é 100 vezes a dosagem indicada, não sei se está a ver os efeitos secundários que pode dar. Os alternativos têm uma linguagem dupla: não acreditam na nossa ciência, mas têm uma ciência qualquer.

O que é que se passa com o “decreto-lei das chamuças”, que impede que os bares do sistema nacional de saúde comprem estas coisas? Passa-se que há uma ignorância total e uma negligência total nos dados científicos mais estruturados. Isto destina-se a satisfazer uma tendência de sanitarismo nas nossas sociedades modernas que é depois cruelmente negada pela realidade: as pessoas vão ter na mesma enfarte do miocárdio. Mas já não são assacados aos políticos.

Mesmo quando dou estes dados científicos, as pessoas não acreditam. Olham para mim de lado: “Lá está este gajo com a mania da ciência.” E eu vou buscar os estudos e mostro. O que esses senhores [médicos e profissionais que não se baseiam na ciência] têm de dizer é: “Esses estudos que me está a mostrar não são válidos”. “Ok, agora discuta comigo onde é que eles não são válidos.” Curiosamente, nunca ninguém fez isto comigo. Faço a minha análise metodológica de um dos estudos e digo: “Em que é que a minha análise não está correta? Diga-me com o que é que não concorda comigo?”. Nunca ninguém me diz isso, mas isso é que era importante dizer.

"Mesmo quando dou estes dados científicos, as pessoas não acreditam. Olham para mim de lado: 'Lá está este gajo com a mania da ciência'."

Muitas vezes as pessoas não distinguem causalidade de correlação.
Pois não. Por isso dou o exemplo do Canderel, em muitas das minhas conferências e das minhas aulas quando quero falar sobre causalidade em medicina [vídeo]. Vamos supor que quero estabelecer a relação entre Canderel e obesidade. O estudo é muito simples: pego num conjunto de alunos, espalho-os por um conjunto de cafés, aleatoriamente selecionados e os [observadores] vão passar uma manhã encostados ao balcão. Quando a pessoa chega e diz: “Uma bica”, classificam como gordo, magro ou normal. Depois: põe ou não põe Canderel. No fim do dia reunimos todos aqui e o que é que verificamos: que temos uma relação entre quem é que põe Canderel e o seu peso. O que é que concluímos habitualmente? Que a taxa de utilização do Canderel é muito maior nos gordos do que nos outros (o que não quer dizer que os outros não utilizem). Qual é a conclusão? O Canderel engorda. (E a malta ri-se.) Não. Há uma correlação entre o Canderel e a obesidade que não é causal.

Isto que é tão fácil de ver com exemplos simples, é muito mais complicado em medicina clínica. Afinal posso tratar a gripe com antibióticos. Em sei que o agente é viral, não responde aos antibióticos, mas os doentes ficam melhores — tirando uma percentagem que vai morrer, toda a gente fica melhor. Ah! Deve ser do antibiótico. Não! Toda a gente vai ficar melhor na mesma. O antibiótico acelera a cura? Há uma série de estudos que diz que não. Mas há um subgrupo de doentes que precisa de fazer antibióticos: quem tem doença pulmonar obstrutiva crónica [DPOC], que se vão infetar secundariamente, quando têm gripe. Como essas pneumonias de DPOC são gravíssimas, quando têm gripe damos antibiótico, mas não é para tratar o vírus, é para fazer prevenção de uma complicação grave altamente mortal.

Temos uma boa educação científica?
O nosso sistema de educação no secundário é muito bom, dá-lhes [aos alunos] uma solidez em termos destes conceitos científicos básicos. Mais tarde, é um conjunto de influências culturais que permitem e fomentam a divergência — no sentido mais filosófico da palavra —, ou seja, o seu pensamento ser tão bom como o dos outros. No fundo queremos democratizar coisas que não deverão ser democratizadas. Volto à minha afirmação inicial, um pouco controversa: se calhar estamos a ter democracia demais, no sentido que estamos a entrar por campos que nos estão a prejudicar seriamente, pela sua natureza de impacto global.

Devíamos proibir mais e obrigar mais? Por exemplo, tornar as vacinas obrigatórias? Ou proibir totalmente o consumo de tabaco?
A resposta para a obrigatoriedade das vacinas é que em Portugal as vacinas não são obrigatórias e, no entanto, temos 98% de taxa de vacinação, portanto não é preciso as vacinas serem obrigatórias. Quanto ao tabagismo é impossível. A solução nunca passa por proibir, a solução passa por informar.

Dou como exemplo: às oito da noite, em horário nobre, passa o anúncio da Depuralina, e eu já propus à Ordem dos Médicos que logo a seguir comprássemos um minuto de publicidade e disséssemos assim: “Boa noite, sou o Dr. Silveira da Ordem dos Médicos. O que acabou de ouvir não é verdade, não há nenhum estudo que diga que a Depuralina faz bem, antes pelo contrário. O Infarmed, todas as semanas, tem lá um conjunto de relatórios de efeitos secundários desta coisa que não é inócua. Portanto, não tome isto, porque isto é tudo mentira”. Era isto que eu propunha.

Depois temos o Calcitrin
O Calcitrin e essas coisas todas.

Que usa figuras públicas.
Porque é isso que vende. Mas falávamos também com figuras públicas. Temos que utilizar as armas que são eficazes. Se eles estão a vender banha da cobra com o Ronaldo, pegamos no Messi e vendemos o correto. Não vale a pena estar a ter estado de alma. A proibição é totalmente impossível. Houve uma altura que estava convencido que era possível, hoje estou perfeitamente convencido que é impossível. As sociedades são demasiado abertas, a informação boa ou má flui de uma maneira de tal maneira intensa que não temos outra alternativa que não seja tentar oferecer às pessoas fontes de informação que elas acreditem e que sejam sérias, sem conflitos de interesse, relevantes e credíveis.

Estamos a falar da televisão, que é sem dúvida o que chega ao maior número de pessoas, mas o que dizer de todos os programas detox que estão disponíveis e de todos os livros de dietas, por exemplo.
Não consegue proibir isso. No outro dia também escrevi umas coisas sobre uma terapêutica anti-aging [anti-envelhecimento], que eram umas infusões endovenosas [injetadas nos vasos sanguíneos], num consultório qualquer da multinacional que vendia isso. E havia lá umas miúdas das telenovelas, todas com ar contente a injetar aquilo. Servia para as ressacas, após viagens de avião, como anti-aging. E o dono daquilo, ou representante daquilo, era um jovem anestesiologista dos Civis [Hospitais Civis de Lisboa, desde 2013 totalmente integrados no Centro Hospitalar de Lisboa Central]. Quando vi aquilo, mandei uma carta para o Infarmed: “Atenção que estamos a injetar diretamente na veia substâncias que não estão lá a dizer quais são”. Eles não diziam qual era a composição dos fluídos. Imagine ao ponto a que isto chegou: as pessoas vão injetar coisas que nem sabem o que é. Se houver toxicidade não há salvação para esta pessoa, não temos tempo. Parece que finalmente já fecharam isso. Aí sim, acho que vale a pena fechar [proibir].

Em relação aos médicos das dietas e os “doutores Tallon”: tive uma doente minha que me mostrou, há muitos anos, uma receita — ao fim de muita insistência minha, porque a terapêutica que lhe estava a fazer para a hipertensão não estava a funcionar e aquilo não era lógico. Eu achava que havia alguma coisa que ela não me estava a contar. Depois de a ter pressionado percebi que estava a fazer os medicamentos do Tallon. E bem entendido eram os efeitos secundários dos medicamentos do Tallon que estavam a ter uma ação antagonista para os meus hipertensivos. Tinha psicotrópicos, metabloqueantes, diuréticos, calmantes e hormonas tiroideias. E em doses que não sei quais são, porque são manipulados.

O que é que acontecer a doentes como este? Têm um acidente vascular cerebral, têm uma arritmia por causa da tiroide ou um enfarte do miocárdio, aparecem no serviço de urgência e não dizem que estão a tomar as coisas do Tallon. Como tem 60 e tal anos, os médicos acham que é normal. O sistema nacional de saúde não deteta estas situações. E os próprios doentes têm vergonha de dizer e não mostram. A única possibilidade que tinha para fechar esses consultórios era provando o dano que estão a produzir, o que é muito difícil, se não impossível. A situação é ainda mais melindrosa: eu estou sujeito à ativação de processos legais contra mim, porque a minha prática é explícita, pública, aberta e os tipos que estão a fazer uma série de malfeitorias têm uma prática clínica privada, fechada, não acessível.

"Em Portugal as vacinas não são obrigatórias e, no entanto, temos 98% de taxa de vacinação, portanto não é preciso as vacinas serem obrigatórias."

A ideia da regulamentação destas terapias não convencionais não é esta: torná-las mais públicas e abertas? Sabendo quem são as pessoas, que práticas têm, poderem estar regulamentados nesse sentido, ser fiscalizadas.
Percebo o seu ponto de vista, mas fiscalizados comparando com o quê? O que é uma prática tradicional chinesa aceitável. Está a ver onde quero chegar? Diga-me o que é uma prática tradicional chinesa aceitável e posso ver se estão a fugir da prática ou não.

A resposta dos terapeutas não convencionais é que devem ser eles a avaliarem-se uns aos outros, consoante a especialidade. Os médicos também se avaliam uns aos outros, não são outras pessoas a avaliar os médicos.
Certo. Mas os médicos explicam às pessoas o que é que fazem e mostram-lhes as coisas — têm de mostrar, se não estão a ser eticamente reprováveis —, eles [os terapeutas alternativos] não. Eles dizem “nós é que sabemos”, porque não têm nada para mostrar. O que é que eles têm para mostrar? Que a água tem memória? Que a água tem memória?! Que eu pus uma coisa na água, dissolvi-a duzentas vezes… É um mito, é uma crença, não há nada a fazer.

Estes terapeutas estão verdadeiramente convencidos que sou um bandido, que vivo à custa da indústria farmacêutica e do Governo, e que estou aqui ou para poupar dinheiro ao Estado ou para ganhar dinheiro. Isto é uma coisa trágica, porque as pessoas não acham que haja pessoas independentes, sem conflitos de interesse. Isto é um projeto que tem de ser feito com as duas grandes classes: os profissionais de saúde e os profissionais de comunicação social. E temos de ter um plano, bem montado, permanente, que nunca mais vai terminar, para que de maneira séria, transparente, fornecer informação credível, isenta de conflitos de interesse, e em que as pessoas possam acreditar — pelo menos, que possam pensar que esta fonte é uma fonte boa. Já ficaria satisfeito se achassem que esta fonte de informação que lhes damos é uma fonte boa.

Os artigos científicos não são uma garantia de boa informação por si só, nem sequer os artigos científicos em boas revistas científicas.
A maior parte deles são, mas alguns não. Nenhum estudo é perfeito.

Para nós jornalistas isto às vezes é um problema. Baseamo-nos numa boa revista científica, mas às vezes o estudo pode ser mau.
É difícil que numa boa revista científica um estudo seja completamente mau. O que pode é acontecer é ser um estudo que está feito de tal maneira cujas conclusões sejam exageradas. Os autores dizem que é muito bom e vamos a ver e não é bem assim. Grupos como o meu encarregam-se de fazer isso [verificar].

Temos o exemplo de um dos artigos que impulsionou os movimentos de antivacinação.
O do [Andrew] Wakefield? Mas esse foi retirado e ele foi suspenso.

Sim, foi retirado, mas foi inicialmente publicado na The Lancet, que é uma revista muito conceituada.
Tem razão, tem razão. Fez mais mal à ciência que todos os outros juntos.

É uma revista conceituada que tem revisão por pares. À partida, confia-se. Ele tinha uma série de co-autores que não viram o artigo ou não pensaram no assunto. Isto faz com que se gere uma dúvida sobre a ciência e a verificação que é feita.
Absolutamente.

Como é que se publica uma coisa destas?
Quando analisamos este tipo de estudos, ou qualquer tipo de estudos, é preciso percebermos que estamos a analisar e estamos a ver efeitos habitualmente de modesta dimensão. Nunca temos uma intervenção que diminua a mortalidade de quatro milhões de doentes para um milhão de doentes. Isso é tão espetacular que os pormenores nem são importantes. Mas não, estamos sempre a pensar que diminui a mortalidade de três em cada 100 para dois em cada 100. A ciência teve tanto impacto na medicina que estamos a olhar para riscos cada vez mais pequeninos. No caso do cancro não, mas nos outros casos encolhemos tanto, tanto a mortalidade, demos tanta qualidade de vida à pessoas que para ganhar uma nova coisa vou ter de fazer um estudo gigantesco para tentar olhar para aquilo. E quando temos hoje acesso a grandes bases de dados com cinco, seis, oito, dez milhões de doentes, o que é que nós podemos fazer? Olhar para tudo o que ali está e fazer aqueles estudos estatísticos em que, controlando as outras variáveis, concluo, por exemplo, que quem bebe mais leite tem mais cancro do ovário. Mas do que estamos a falar? Em cada três milhões de doentes, se todos beberem leite, um tem um cancro a mais. Se ninguém beber leite, um tem um cancro a menos. Tenho de fazer uma interpretação daquilo? Vale a pena comunicar isto? Devemos dizer às pessoas para não beberem leite?

E agora, temos mesmo de deixar de comer carne?

Esse exemplo é semelhante ao alarme causado pelo relatório da OMS que considerava as carnes vermelhas processadas cancerígenas.
A Organização Mundial de Saúde disse que a ingestão de 50 gramas de carne processada por dia ou 100 gramas de carnes vermelhas aumentava o risco de cancro do cólon em 18 e 17% [respetivamente]. Óbvio que ficou tudo em pânico. Quando cheguei aqui [à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa], perguntei aos meus alunos como é que se interpreta isto. “Por cada 100 doentes que comem carne vermelhas, 17 morrem. Se todos deixarem de comer carne vermelha, ninguém morre.” Isto é verdade? Não! É 17% de quê? Da probabilidade de ter cancro do cólon durante uma vida inteira. Estatisticamente falando, a taxa de incidência cumulativa de cancro ao longo da vida é, por cada 100 mil doentes que nasce hoje, 58 homens e 46 mulheres vão ter um cancro do cólon. Desses, 25% vão morrer. Sensivelmente, por cada mil portugueses que nascem um vai ter cancro do cólon. Se 100 mil pessoas deixarem de comer carne vermelha hoje, 17 deixam de ter cancro. 17 beneficiam, os outros não. É assim que se deve apresentar o risco. Os meus alunos calcularam o risco 10 mil vezes maior do que era na realidade. Repare que são alunos de medicina. A comunicação do risco é dramática.

Falta mais cultura de ciência, e conhecimento de método científico, nos cursos de medicina?
Sim. Falta a interpretação do risco, acima de tudo. Somos muito bons a fazer o diagnóstico, a fazer tratamentos, mas a comunicar riscos somos muito maus. E, no entanto, a medicina é comunicar riscos. O que é que se deve fazer com o risco: medir o risco — calculá-lo —, comunicá-lo e geri-lo. Somos muito bons no primeiro [medir], somos muito maus no segundo [comunicar] e portanto somos maus no terceiro [gerir].

Em 2009, tinha aparecido a epidemia de gripe A e tinham morrido as primeiras pessoas no México. Pus-me a seguir aquilo com atenção porque já sabia que ia sobrar para mim. Mais cedo ou mais tarde, alguém ia fazer uma pergunta. Fui estudando cuidadosamente o que ia saindo. Em julho, tínhamos uma informação extraordinária — entrou-se em pânico e a malta fez aquela investigação toda [em seis meses]. Entretanto, a Organização Mundial de Saúde começou a fazer os gripanários (a transformar o sistema nacional de saúde por causa da gripe, a guarda áreas dos centros de saúde por causa da gripe). Todas as noites havia notícias sobre gripe, quantos é que tinham morrido, e quando eu fui entrevistado, disse: “Não me parece que esta gripe tenha importância. Pelos meus cálculos, considerando o que está aqui a decorrer, baseando-me nos estudos que tenho poderão morrer menos que 100. A gripe sazonal mata 800”.

No fim desse ano tinham morrido 80 pessoas com gripe A e 970 com a gripe sazonal anual. Houve um responsável da Saúde muito conhecido em Portugal que disse que podiam morrer 80 mil portugueses. Há aqui um problema grave, quando um tipo como eu que nem sequer é infecciologista, mas tem uma base sólida científica, que diz que talvez morram menos que 100, e há outros, ditos especialistas, que dizem que podem morrer 80 mil. Não podemos ter os dois razão. Se ele tem razão, eu sou uma besta, porque estou claramente a desvalorizar um risco gravíssimo. Se eu tenho razão, o gajo é uma besta, que não sabe o que está a dizer e tem uma responsabilidade pesada naquilo que se fez que foi causar um pânico generalizado.

"Não podemos ter os dois razão. Se ele tem razão, eu sou uma besta, porque estou claramente a desvalorizar um risco gravíssimo. Se eu tenho razão, o gajo é uma besta, que não sabe o que está a dizer."

Numa reunião com a ministra da Saúde, Ana Jorge, que me convidou para falar sobre risco, lembro-me de estar à volta de uma mesa com umas 50 pessoas — a ministra, a equipa ministerial, o Infarmed e uma série de professores catedráticos. E a questão era a vacina para a gripe A, a vacina, a vacina. Mais perto do fim, diz-me o secretário de Estado: “Está muito calado. Não quer dizer alguma coisa”. “O que eu tenho a dizer não vai agradar”. Fiz uns cálculos de merceeiro e calculei que, baseando-me nas taxas de seroconversão e dado o perfil das vacinas que se propunham comprar, eu calculei que, por alto, precisaríamos de vacinar entre 80 e 90 mil pessoas para salvar uma vida. Dado que a população de risco seriam talvez dois milhões de pessoas, iríamos potencialmente ter que vacinar dois milhões e quinhentas mil pessoas para evitar um conjunto de mortes relativamente modesto. “Eu meteria esse dinheiro na gripe sazonal e não nesta gripe [gripe A].” A eficácia da vacina era aquela, era o que estava publicado. Ficou um silêncio na sala porque toda a gente tinha dito que era preciso comprar vacinas e a minha opinião era não comprar as vacinas.

Ela disse-me: “Acha mesmo que eu posso fazer isso”. Disse-lhe: “Acho que não, acho que temos de comprar as vacinas”. Porque o único país da Europa que não comprou as vacinas foi a Polónia que fez este tipo de estudo e decidiu não comprar. Todos os outros 27 compraram. “O que é que sugere?”. “Diga que compra, mas não compre.” Ficou tudo absolutamente siderado. “Se tem que fazer, compre três mil e diga que comprou 300 mil.” Onde é que eu quero chegar com isto? Ela podia fazer outra coisa [que não fosse comprar]? Não. Compreendo a posição dela muito bem. O que posso concluir é que os 27 países não olharam para a ciência. Ou então olharam e decidiram que queriam salvar aquela vida. Chama-se gestão do risco.

Onde é que eu quero chegar com isto? Quero atacar a ministra? Claro que não, compreendo a posição dela muito bem. A minha ideia é: não é possível aparentemente comunicar realidades bem sólidas, com abordagens perfeitamente independentes, frias e objetivas dos factos, porque o ruído da comunicação contra é suficientemente grande para a nossa mensagem não conseguir passar. A gestão do risco é muito deficiente, porque a comunicação do risco também é muito deficiente. Embora o risco esteja muito bem medido.

Mais uma vez é a questão de as decisões políticas não se basearem na ciência.
Bem, algumas são. Mas há sempre uma parte da decisão política que nunca vais ser baseada na evidência, não só porque não existe, mas também não é natural que assim seja. O Governo tem de ter opções, pode ter uma opção mais para a doença cardiovascular ou mais para a oncologia. Os administradores e profissionais de saúde é que não se podem dar a esse luxo. Têm de tentar fazer a melhor decisão através de dados científicos de boa qualidade. A maior parte dos estudos deixa-nos dúvidas, mas já há muita informação que nos permite decidir bem — aceitando que as nossas decisões, por vezes e em certos doentes, não vão funcionar.

E quando os estudos parecem contraditórios, uns dizem que faz bem, outros dizem que faz mal, como com o vinho, o café, o chocolate?
O café, por exemplo, é um caso típico de um alimento que tem má reputação inexplicavelmente. O café só faz bem. Há dezenas de revisões sistemáticas que mostram que, quando tudo o resto é igual, as pessoas que bebem mais café têm menos diabetes, menos doença de fígado, menos Parkinson, menos demência, morrem menos globalmente e morrem menos por doenças cardiovasculares. O efeito é modesto, mas dado o número de pessoas que bebe café aquilo é epidemiologicamente muito significativo. Não é a cafeína, porque o descafeinado também tem estas propriedades. É qualquer coisa dos milhares de componentes que aquilo tem, que tem um efeito sobre a saúde consistentemente positivo. Claro que uma pessoa que bebe café e não consegue dormir não deve beber, porque aquilo é um estimulante.

Quando temos uma série de estudos durante muitos anos, demonstrando consistentemente esses mesmos benefícios, não me parece legítimo duvidar disso. O que nos põe em apuros são os benefícios curtos e espetaculares — provavelmente não são verdade. Ou os benefícios mais modestos e muito variáveis — numas circunstâncias faz bem, noutras circunstâncias não faz nada, noutras faz mal. É preciso olhar para os doentes, para as amostras. Isso é que nos causa problemas. Essa é grande a vantagem das revisões sistemáticas.

Acha que há enviesamento nos ensaios clínicos e na investigação? Os estudos são sobretudo feitos com caucasianos, com homens, com adultos? Temos estudos enviesados ou podemos confiar nas generalizações?
Até há uns 30 anos, tudo o que se sabia da medicina tinha sido estudado em homens de meia-idade, entre os 45 e os 65 anos, depois extrapolava-se alegremente — exceto as doenças pediátricas e as doenças das mulheres. Tudo o que acontecia em homens dos 45 aos 65 anos era extrapolado para os mais velhos, para as mulheres, para as diversas raças. Rapidamente se começou a verificar que isso era um logro, que era um erro, porque o fundo genético das pessoas sendo diferente, a maneira como as doenças se vão manifestar e a gravidade dessas doenças e a capacidade de resposta aos medicamentos, é substancialmente diferente. O que é que se descobriu? Por exemplo, para os fatores de risco mais comuns da doença coronária — ou seja, colesterol, hipertensão arterial e diabetes — quando os doentes têm mais de 75 anos, convém não tratar, ou tratar suavemente, deixá-los ter a glicémia alta, deixá-los ter um bocadinho de hipertensão, deixá-los ter o colesterol nos 300. Porquê? Porque quando tratamos, os doentes morrem mais. Quantos doentes acima dos 75 anos estão a fazer uma estatina? Dezenas, se não centenas, de milhares. Onde é que quero chegar com isto? Quando estamos a ser agressivos a tratar aos 40 anos é uma coisa e aí os resultados são positivos. Aos 75 anos devemos ser calminhos, deixar as pessoas em paz, e tratar o mínimo possível, porque quando tratamos agressivamente eles morrem mais. Só consigo identificar isto porque tenho amostra com doentes com 80 e 85 anos, se não não conseguia. Está a ver a dificuldade em introduzir todos estes dados e estas variantes. Por isso é que existem centros como o nosso. É um trabalho absolutamente gigantesco de entendimento do que é a ciência clínica, das suas metodologias, das suas vantagens e desvantagens, da maneira como as conclusões foram obtidas e depois a translação daqueles conhecimentos, para o mundo todo, para a prática.

"Para os fatores de risco mais comuns da doença coronária, quando os doentes têm mais de 75 anos, convém não tratar, ou tratar suavemente, deixá-los ter a glicémia alta, deixá-los ter um bocadinho de hipertensão, deixá-los ter o colesterol nos 300. Porque quando tratamos, os doentes morrem mais."

É esse o objetivo da Cochrane?
É. A Cochrane destina-se exatamente a produzir evidência científica sintetizada de alta qualidade para suportar estas decisões mais sofisticadas.

E o objetivo da Cochrane é ser utilizada por clínicos?
Temos um grupo na Cochrane que é um grupo da gestão e dos serviços de saúde, que só faz estudos sobre intervenções em serviços de saúde, gestão, etc. Mas acima de tudo é um programa clínico.

E está acessível aos doentes?
Para já estão só acessíveis os resumos e estamos a traduzir, para cada revisão que sai, um pequeno texto para os doentes e esse pequeno texto vai ser inaugurado no site da Ordem [dos Médicos] onde temos essa informação toda. Já temos cerca de 600 lá dentro. A Cochrane faz revisões sistemáticas, as revisões sistemáticas são para ser utilizadas, acima de tudo, para problemas clínicos — por médicos, farmacêuticos, enfermeiros. Depois tem áreas como a gestão em saúde. E até tem uma parte sobre medicina alternativas — tem 109 ou 110 revisões sobre intervenções alternativas. É uma rede com um prestígio singular a nível mundial porque as metodologias são muito rigorosas. O que implica que uma boa parte daquelas revisões conclua que o tratamento não tem efeito, algumas delas que tem efeito contraditório. E isso enerva a indústria, enerva os médicos, porque querem ter resultados. Numa boa parte daquilo, os resultados são muito modestos.

Estamos demasiados centrados nos medicamentos, nos tratamentos, nos exames de diagnóstico?
Estamos. Um dos projetos que também estamos a desenvolver na Ordem [dos Médicos] chama-se “Choosing Wisely” [escolher com sabedoria], que apresenta recomendações [para médicos e para doentes] daquilo que não devemos fazer porque é inútil. Vai ser inaugurado até ao verão. Por exemplo, um doente com lombalgia, a causa número um de idas ao médico. Uma lombalgia normal não precisa de nenhuma imagiologia — nenhum raio-x, muito menos TAC —, nada. Porquê? Há uma série de estudos que demonstram que não há nenhuma relação entre a morfologia da coluna e os sintomas. Há doentes com colunas desgraçadas, completamente assintomáticos e doentes com uma coluna impecável com sintomas que nem se podem mexer. Isto para os doentes também é importante: “Não peça ao seu médico uma imagiologia, porque não vai ajudar”.

[Outro exemplo:] se não tiver uma doença que altere o metabolismo ósseo, não deve pedir suplementos de vitamina D. No entanto, há um negócio florescente de vitamina D. A maior parte dos estudos mostra que é totalmente inútil e até é perigoso. [Ainda] outro exemplo: se a pessoa vai para o hospital fazer uma cirurgia a uma hérnia não deve fazer análises, nem à coagulação, nem ao hemograma, nem ao eletrocardiograma. Porquê? Porque temos estudos que comparam os doentes que fizeram as análises tradicionais — as análises de rotina — e os doentes que não fizeram. E os doentes que fazem as rotinas morrem mais e têm mais complicações que os que não o fazem. As pessoas que fazem as análises podem vir com alguma coisa alterada e o anestesiologista não anestesia enquanto isso não for controlado. E o doente fica mais um dia no hospital, e infeta-se, complica-se, e morre mais do que os que não fizeram as análises. Vamos pegar nisto e fazer esta recomendação: não se devem fazer análises de rotina para um cirurgia eletiva, não complicada, num hospital.

"Os doentes que fazem as análises de rotina [antes das cirurgias] morrem mais e têm mais complicações que os que não o fazem."

Todas as recomendações vão ser baseadas em estudos de boa qualidade. Estamos a tentar diminuir o quê? A sobreutilização. Em cada uma das especialidades onde é que está a evidência científica de boa qualidade que diz que uma prática comum não deve ser feita, porque no mínimo é inútil — não altera nada o diagnóstico do doente — e no máximo é prejudicial. Nada disto tem a ver com dinheiro, tem a ver com avaliações clínicas. Vai chamar-se “Choosing Wisely Portugal” porque temos uma rede internacional com Harvard e com os canadianos, mas em português vamos chamar “escolhas criteriosas em saúde”. Vamos disponibilizar isto gratuitamente para toda a gente no portal da Ordem [dos Médicos], 24 horas por dia, sete dias por semana, por especialidade.

Se tem alguma dúvida se deve fazer um check up, por exemplo — e nós hoje temos evidência que o check up é contraproducente. A ideia é excelente, a prática é péssima. Se faço um conjunto de análises, de sangue e de imagiologia, se houver alguma coisa vê-se logo lá. Isto é acreditar que os testes, quando são anormais, querem sempre dizer doença. Que não é verdade. Ou quando estão normais querem sempre dizer saúde. Que também não é verdade. E é isto mundo dos falso positivos e dos falsos negativos que nos fazem ter cabelos brancos. A outra coisa, é diagnosticar coisas que não têm importância clinicamente. Diagnostico aquele nódulo pequenino na próstata, quero fazer muitas coisas, mas o doente nunca vai morrer disso [do nódulo], porque tem 70 anos e vai morrer de doença cardiovascular. Vou operá-lo aos 70 anos? No mínimo vai ficar um ano incontinente e vai ficar impotente permanentemente. Se for para lhe salvar a vida falo com o doente, mas se não for para lhe salvar a vida, tenho de pensar duas vezes. Como digo aos meus alunos, convém matar o mínimo possível de doentes. E convém torturá-los o mínimo possível, para isso temos de ser diligentes, informados, estar seguros da nossa capacidade de intervenção e ser capazes de falar com os doentes, explicando-lhes as opções.

Então e a deteção precoce, em particular do cancro?
A deteção precoce é uma ideia absolutamente provada cientificamente. Se é verdade na maior parte das especialidades, como cardiologia, no cancro é importantíssima. Não há nenhum estudo que demonstre que, quando o cancro é localizado, não tem melhor prognóstico do que quando o cancro está generalizado. Dito isto, a questão não é essa. A questão é: quando estou a fazer um rastreio do cancro, o que é que eu espero que um rastreio eficaz me documente? Duas coisas: primeiro, que me detete os cancros clinicamente ocultos, que não têm sintomas; em segundo, que essa intervenção diminua a incidência de cancros avançados. Um rastreio que não faça isso não é um rastreio eficaz. Porque é que não é eficaz? Porque só estou a detetar os cancros que não avançam. Se o número de cancros avançados não foi alterado pelo rastreio, aqueles que estou a diagnosticar são inúteis, nunca vão avançar. Se uma percentagem importante daqueles que eu detetei avançasse, ao fim de uns anos via que a taxa de doentes com a doença mais avançada necessariamente diminuía. No cancro da mama e no cancro da próstata isso não acontece. O que nós vemos é um aumento da deteção de cancros pequeninos, sem nenhum impacto na mortalidade global. Por definição estamos a diagnosticar cancro que não têm importância. São cancros que não são para mexer.

Mas mexe-se?
Mexe-se.

E é mau?
Tiro-lhe a mama e digo que a curei. Mas ela nunca ia morrer daquilo. Mas sou capaz de dizer à pessoa que ela não vai morrer? Não. Estou a falar de grupos. Dito isto, no cancro da mama, a melhor revisão sistemática mostra que se eu tiver 10 mil mulheres a fazer mamografias, vou talvez salvar uma num período de 10 anos. É esta a realidade. 200 delas vão ter falsos positivos e vão ficar alarmadas e vão ter de repetir os testes que vão ser depois normais, mas nunca mais ficam descansadas. E é com estes números que pergunto: deve recomendar-se o rastreio de cancro da mama ou não? Explico isto à minha doente e ela pode decidir. Devo recomendar isto como terapêutica de massas: sim ou não? Essa é que é a discussão.

É uma discussão que está a ser feita entre os médicos?
Está. Hoje já não se está a pedir mamografias e PSA [análise ao antigénio específico da próstata, um marcador tumoral]. Mas isto não é intuitivo. Há estudos fantásticos sobre doentes que tinham feito a mamografia, mas que recusaram ser tratadas. Algumas dessas doentes tinham nódulos pequenos — cancro in situ que é uma doença mamografia (antes das mamografias não existiam). Essas pessoas receberam indicação para serem seguidas, eventualmente fazerem uma biópsia e disseram que não queriam. Não lhes fizeram nada, mas pediram que elas voltassem daí a seis meses. Em 50% dos casos já não estava lá nada. O que quer dizer que algumas destas lesões regridem espontaneamente.

Vamos supor que lhe tiro a mama, salvei-lhe a vida, sou um gajo fantástico, mas você nunca ia morrer disso. Tudo se vira contra a base científica da medicina. Se der um medicamento e a pessoa morrer com o efeito secundário desse medicamento estou muito mais seguro do que se não der o medicamento, porque acho que não devo dar, e a pessoa tiver o acidente vascular cerebral que esse medicamento prevenia. Se eu não der a aspirina e a pessoa tiver um AVC caem-me em cima porque não dei a aspirina, mas se der a aspirina e a pessoa tiver uma hemorragia cerebral ninguém me diz nada. A culpa é do medicamento. Mas não é não. A culpa é minha porque o prescrevi. Sou tão culpado, como não dar. Fiz uma avaliação de risco, calculei as estimativas probabilísticas e decidi desta maneira. A responsabilidade é a mesma. Os médicos têm tendência para “over do it”, “over treat”, “over diagnose” [fazer demais, tratar demais, diagnosticar demais].

Os médicos estão a salvaguardar-se?
Concerteza.

E o próprio doente também o exige. Se vai ao médico e este não passa exames ou não dá medicamentos é um mau médico.
É o casamento perfeito. O doente quer e nós também. Qual é o problema? Isto não é boa medicina. Até aqui sabíamos isto? Não. Isto é de há 10 anos para cá. Agora passámos a saber, daí o “Choosing Wisely” na Ordem dos Médicos. Disponibilizar aos profissionais de saúde e às pessoas: “Olhem que há uma série de coisas que a gente faz que não deve fazer!”. Perante isto punha na parede do centro de saúde: “Aqui não se pedem PSA [para detetar cancro da próstata]”.

Para António Vaz Carneiro, a única medicina eficaz é a medicina baseada na evidência - João Seguro/Observador

JOÃO SEGURO/OBSERVADOR

Acha que vai ter impacto? E a quanto tempo esperam que venha a ter impacto?
Vai ter impacto a muito tempo, mas vai ter impacto. Não há hipótese nenhuma.

Mas é uma coisa a longo prazo.
A longo prazo.

Há muita educação a fazer para médicos e doentes?
A ciência está a evoluir a uma velocidade estonteante. Muitos dos estudos do risco são recentes. Ainda ontem [no dia anterior], numa reunião, alguém voltou a afirmar: o sistema nacional de saúde faz chocantemente pouca prevenção para o tratamento que faz. Eu tive de dizer ao gestor: “Tenha paciência, a prevenção é boa, mas é menos boa do que o que pensa. Não vamos poder evitar a maior parte das doenças com prevenção”. Sim, é melhor não fumar. Sim, é melhor pôr o cinto de segurança. Sim, é melhor não estar 20 horas por dia ao sol quando se é adolescente. Sim, é melhor não ser gordo. Mas tudo isso tem um impacto relativamente modesto. A maior parte das doenças são genéticas e a maior parte das doenças vamos tê-las simplesmente porque vamos ter um conjunto de circunstâncias aleatórias — e o cancro é um doença aleatória — em que vamos ter de as ter. Há algumas coisas que podemos fazer [para prevenir]? Há. Vale a pena fazer disso um investimento brutal? Não. Devemos ter dinheiro para tratar os doentes. Não vale a pena desviar dinheiro do tratamento para a prevenção, isso é uma loucura. No balanço final, vão morrer muito mais doentes indevidamente porque não foram tratados do que os doentes que vamos salvar com a prevenção. E é isso que temos de perceber. Hoje já há estes dados, há 10 anos não havia. Podem dizer que não acreditam neles, mas para isso têm de os ler, porque para discutir têm de saber o que estão a dizer.

Isto entra numa parte polémica. A prevenção está muito relacionada com o estilo de vida, mas diz-me que o impacto é mínimo as doenças que podemos prevenir.
É pequeno, é um dado modesto, mas sim, tem algum impacto. Mais vale não fumar do que fumar. Eu metia o dinheiro todo [da prevenção] no tabaco. Para que é que hei-de estar a martirizar as pessoas com a dieta? O tabaco é o grande risco cardiovascular que existe, que depois também tem o risco pulmonar, coronário, oncológico. Não vale a pena estar a martirizar as pessoas com a dieta. Estou convencido que o exercício físico tem um impacto muito mais positivo na doença cardiovascular e até no cancro do que a maior parte das pessoas se apercebe. É difícil quantificar o exercício físico, mas sabe-se que, em termos do impacto cardiovascular, o ideal seria fazer um anaeróbio 135 minutos por semana, três períodos de 45 minutos. Que é o que eu faço: jogo duas vezes ténis por semana e depois ao fim de semana passo uma hora inteira no ginásio. Adoro fazer exercício físico, só não faço mais porque não tenho tempo. Estou convencido que o impacto do exercício físico é muito mais eficaz que a dieta, sem comparação, até no cancro. Porque é que o exercício é bom? Porque também nos alerta para toda uma outra alteração dos nossos estilos de vida: fumar menos, ter uma atividade global melhor, descansar melhor, mas é mais difícil de fazer.

[Mais,] sou daqueles que acreditam que os médicos de Medicina Geral e Familiar não devem fazer prevenção, eles estão lá é para tratar os doentes. Se o sistema quer fazer prevenção, arranje um consultório com uma enfermeira que, se tiver dúvidas, pergunta ao médico. O médico não deve fazer prevenção. Aliás, se formos fazer prevenção, com as recomendações que nos dão, com tudo o que funciona, um médico de Medicina Geral e Familiar com 1.800 doentes não fazia mais nada durante sete horas por dia a não ser prevenção.

"Os médicos de Medicina Geral e Familiar não devem fazer prevenção, eles estão lá é para tratar os doentes. Se o sistema quer fazer prevenção, arranje um consultório com uma enfermeira."

O Cembe é o único centro de medicina baseada na evidência?
É o único centro em Portugal que faz isto. Somos um dos grandes centros da Europa a fazer isto. E se tivesse dinheiro fazia disto [do Cembre] um dos maiores centros mundiais. Infelizmente não tenho, nem nunca tive, o financiamento que precisava. O modelo que temos aqui, é um modelo que trouxe da América. É uma unidade estrutural da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. É uma coisa pública, mas que tem dentro uma start up privada. Com essa start up fazemos consultoria externa e com o dinheiro fazemos investigação.

Consultoria externa para quem?
80% para a indústria farmacêutica. Sobretudo processos regulamentares de aprovação de comparticipação. Não vamos aos congressos, não falamos das coisas deles, só fazemos trabalho técnico, científico. O dinheiro entra para a universidade. A universidade fica com o overheads [despesas gerais]. Pago tudo o que tenho a pagar com o resto. E é um modelo fantástico que nos permite estudar aquilo que queremos.

E gostava de aumentar a equipa?
Gostava sempre de aumentar a equipa. Claro.

O que podia fazer mais, se tivesse mais pessoas?
Aumentar a amplitude da minha ação no sistema nacional de saúde. Somos neste momento 32 pessoas, que já é um número muito grande. Dessas 32 pessoas, tenho 16 a salário fixo, os outros são consultores. Os quatro séniores são todos professores da Católica, são os sócios dessa firma. Aquilo que precisava era duplicar estes recursos. Em Toronto, no Canadá, o centro tem 50 milhões de dólares por ano. Com 50 milhões de dólares por ano fazia deste centro o melhor do mundo. Contratava já 100 pessoas. Só de pensar nisso fico já com os olhos a brilhar. Não me queixo, geramos muitos recursos, temos muitos clientes, mas não chega nem aos calcanhares dos alemães, nem dos ingleses. O curioso é que eles têm estes grupos todos com uma produtividade sistemática muito inferior à nossa. Eles precisam de mais gente para fazer aquilo que nós fazemos. Nós estamos aqui 12 horas por dia.

Quando dinheiro é que tem o centro por ano?
Varia muito. Diria que as despesas que temos aqui variam entre 250 e 300 mil euros por ano, mais ou menos. Portanto tenho de gerar esse dinheiro e depois mais para fazer investigação, o que varia muito de ano para ano. Às vezes temos dinheiro da FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia], às vezes temos projetos europeus, mas é muito complexo por causa da parte burocrática. Não temos dimensão para fazer certos projetos. Contamos com financiamento externo, privado, para fazer as coisas públicas. E claro que a universidade adora-me. Trago para a universidade, todos os anos, dezenas de milhares de euros. Não só não lhes peço dinheiro, como lhes trago dinheiro. E acho que deve ser assim.

Porque é que não existe um centro deste tipo noutra cidade portuguesa?
A razão porque o meu centro, que vai agora fazer 20 anos, existe aqui e porque é que não existe no Porto, é porque provavelmente essas estruturas são um pouco mais conservadoras que nós. Porque isto é um centro de rutura, é um centro de vanguarda a nível mundial, mas é preciso aceitá-lo. É preciso ser flexível e aberto. E esta escola é espetacular sobre esse ponto de vista. Aqui tenho a liberdade de fazer o que quero, investigar o que quero, organizar o que quero, ter interação com o sistema à minha volta, com os alunos, com os internos, com os doutorandos. Sou totalmente livre. E olhe que não há muita gente no mundo que possa dizer isso. Nesse aspeto é importante as pessoas saberem que os sistemas académicos têm uma presença extraordinariamente importante.

"Com 50 milhões de dólares por ano fazia deste centro o melhor do mundo. Contratava já 100 pessoas. Só de pensar nisso fico já com os olhos a brilhar."

Como é que consegue arranjar tempo para fazer tudo?
Sou muito organizado. Todos os dias janto em caso com os meus filhos e a minha mulher, era o que me faltava. Vou ao cinema pelo menos uma vez por semana.

E faz desporto.
Faço desporto. Sagrado. Às terças e quintas-feiras, à uma hora da tarde ninguém me telefona. É uma questão de organização. E tenho uma equipa fantástica. Tenho uma grande felicidade de estar numa escola médica, portanto ter um conjunto de jovens brilhantes em que todos os anos um deles fica connosco. Ficam connosco, estão uns anos connosco, aprendem esta área. Isto é muito útil para um médico em termos individuais porque aprende a ir buscar toda a informação que precisa num ápice. Temos muitos jovens que colaboram connosco que depois são os agentes de transformação do próprio sistema. Aprendem connosco, treinam connosco e depois vão ser os futuros líderes, como já se está a verificar na Medicina Geral e Familiar, muita da malta nova que lá está, está a transformar aquela realidade toda.

Quando saem levam com eles tudo o que aprenderam aqui.
E podem ensinar outros. E podem montar nos sítios onde estão sistemas de apoio à decisão desta natureza, ou seja, sistemas que lhes deem respostas. Há uma série de centros de saúde onde são os meus alunos que lá estão a fazer exatamente aquilo. Os tipos são bestiais. A maneira como lidam com o fluxo de informação, a maneira como fazem reuniões para normalizar procedimentos. As pessoas não têm a noção da qualidade intrínseca daquilo que é o nosso sistema nacional de saúde.

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