No ano passado, Miguel Milhão, fundador da Prozis, avisou que ia deixar de celebrar o aniversário no dia do seu nascimento, passando a festejar o “dia da fecundação”, numa referência à sua posição contra a interrupção voluntária da gravidez. Agora, pagou publicidade em vários canais televisivos com a seguinte mensagem: “Eu venho avisar, eu venho avisar que todos esses zombies vão-se iluminar, porque desde 82 a marcar posição e a celebrar o dia da fecundação”. E os primeiros segundos de publicidade foram transmitidos na RTP, no passado domingo, durante o intervalo do jogo da final da Taça de Portugal, um espaço publicitário de grande visibilidade. Questionada pelo Observador, a estação pública de televisão afirma não ver qualquer questão política ou de ideologia nesta mensagem.
Fonte da RTP explica mesmo que a publicidade em questão pretende divulgar o podcast de Miguel Milhão — que é transmitido através do Youtube –, e adianta que a mesma foi avaliada e que “de acordo com os critérios, não se identificou qualquer obstáculo legal à emissão do spot, designadamente de propaganda política ou de ideologia“. E explicou ainda que, tal como acontece com todas as publicidades, foi feita uma avaliação prévia em conformidade com a lei em matéria de publicidade “não a critérios subjetivos”. “Este caso não foi diferente”, acrescentou a mesma fonte.
Fundador da Prozis assumiu-se contra o aborto e influencers já estão a cortar vínculo com a marca
Apesar de a RTP não ter identificado nenhuma questão política ou ideológica, é certo que os segundos de publicidade pagos por Miguel Milhão através de uma agência de publicidade se traduzem numa posição clara anti-aborto. Ativo nas redes sociais, o fundador da Prozis escreveu há praticamente um ano, no Linkedin, que tinha mudado a data da celebração do seu aniversário. “Agora, comemoro o dia da minha fecundação (dia 2 de junho) e não o dia em que saí da barriga da minha querida mãe. Parece-me que tem lógica, porque o início da minha existência dá-se quando ‘nasce’ a primeira célula ‘Miguel’. Quando nasce o ADN ‘Miguel’. É essa data que pretendo comemorar até ao fim da minha vida”, lê-se na publicação.
A publicidade passou também na SIC, que segundo o Expresso não detetou qualquer ilegalidade, e na TVI. O Observador contactou as duas estações privadas de televisão, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
“Matar um embrião ou matar um feto, ou um recém-nascido, ou a criança é a mesma coisa”, defende Milhão
E a posição de Miguel Milhão sobre a interrupção voluntária da gravidez já não é novidade. É conhecida, pelo menos, desde 2022, ano em que o fundador da Prozis decidiu apoiar publicamente a decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que revogou a lei do aborto que estava em vigor desde 1973. “Parece que os bebés por nascer têm os seus direitos de volta nos EUA, a natureza está a curar-se”, escreveu na altura também no Linkedin. Depois destas palavras, várias celebridades que mantinham parcerias com a Prozis fizeram questão de se pronunciar contra a posição de Miguel Milhão e cortaram relações com a marca de suplementos desportivos.
[Já saiu o terceiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio e aqui o segundo episódio.]
A opinião de Miguel Milhão traduziu-se em múltiplas críticas e, dias depois, o empresário falou sobre o assunto durante o podcast que ainda hoje mantém e cujo último convidado foi Afonso Gonçalves, líder do movimento nacionalista “Reconquista”, já bloqueado pelo Youtube várias vezes depois de publicar vídeos em que fala com migrantes, sugerindo que estes vivem em Portugal à custa de subsídios, banido pela rede social X e cara da invasão à apresentação do livro “No Meu Bairro”, em setembro do ano passado.
Durante o podcast, Miguel Milhão defendeu que a sua posição “nem sequer é religiosa, é ética” e que, durante a frequência no curso de Filosofia, era o único contra a interrupção voluntária da gravidez. “A ditadura das ideias é a pior ditadura que há. Isso é o princípio do fim das civilizações”, disse ainda. “Eu sou contra o aborto e há aqui gente na Prozis que é a favor. E eu não ando aí a ver quem é a favor do aborto e dizer que a quero destruir, só por pensar diferente de mim. O desenvolvimento da vida e a sua permanência é o conceito da vida humana. Na minha forma de pensar, matar um embrião ou matar um feto, ou um recém-nascido, ou a criança é a mesma coisa, não há diferença.”
O vídeo de 44 minutos resultou em dezenas de comentários e alguns tiveram direito a resposta de Miguel Milhão que, na altura, sublinhava sempre a sua posição: “Se eu tivesse uma filha que tivesse sido violada, ou que a minha mulher tivesse sido violada, eu tentaria falar com ela e cuidava dessa criança. Não consigo sacrificar um inocente pelos crimes de um criminoso.”
O que diz o Código da Publicidade?
No Código da Publicidade, cuja criação data de 1990, é referido que “não se considera publicidade a propaganda política”. Coloca-se então aqui a questão de perceber se os segundos de publicidade de Miguel Milhão podem ou não ser considerados propaganda política. Joaquim Dantas Rodrigues, advogado, explicou ao Observador que “este tipo de publicidade que foi feito não pode ser associada a um partido político” e, por isso, não pode considerar-se que é propaganda política. “Nós podemos, às vezes, até julgar produtos com os quais a maioria pode até não concordar”, acrescentou o advogado.
“Pela lei, não compete ao órgão de comunicação censurar isto. E neste caso concreto não vejo como sancionar a empresa ou o senhor sobre esta questão. Não descobri nada na legislação que pudéssemos imputar nesta situação”, explicou Joaquim Dantas Rodrigues, lembrando que o caso seria diferente “se fosse feito por um partido político”.
Além disso, aparece no final a referência ao seu podcast transmitido no Youtube, sugerindo que a promoção ao podcast seria o objetivo da publicidade e não a transmissão de uma posição contra a interrupção voluntária da gravidez.