Os preços da eletricidade continuam a atingir recordes nos mercados grossistas puxados pelo gás natural, que também renova máximos. O cenário repete-se em quase toda a Europa. Na sexta-feira, o Reino Unido acordou em choque para a notícia não totalmente inesperada de que os preços anuais da energia vão subir 80% para as famílias, a partir de outubro. Nos principais mercados grossistas, os contratos futuros de energia elétrica para o próximo ano estão a superar os 1.000 euros por MW hora em França (na sexta-feira) e na Alemanha já esta segunda-feira. No mesmo dia, a presidente da Comissão Europeia anunciou uma intervenção de emergência no mercado europeu de eletricidade, bem como uma reforma estrutural.
Portugal e Espanha não escapam a esta onda altista, ainda que a proteção do mecanismo ibérico permita conter o efeito face aos vizinhos. Na quarta-feira passada, o preço no mercado ibérico atingiu os 450,85 euros por MW hora (já incluindo o custo do mecanismo). Foi o valor mais alto desde que entrou em vigor o teto ao gás natural e pelo terceiro dia consecutivo. Os preços aliviaram no final da semana, mas os contratos futuros de compra de energia — eletricidade e gás — confirmam que a tendência altista se vai manter até ao inverno.
A Europa já enfrenta uma escassez inédita de gás natural, por causa da crise da Ucrânia, e uma seca histórica que está a afetar a produção hidroelétrica em vários países. As altas temperaturas, com ondas de calor em países como o Reino Unido, fazem subir o consumo de energia e o calor uniforme sem mudanças de pressão não é propício à produção eólica que volta a estar aquém da média histórica.
A agravar este quadro de grande pressão sobre os preços da eletricidade estão as falhas no motor nuclear francês. De grande potência elétrica europeia, França é tradicionalmente grande exportadora para todos os mercados adjacentes, mas agora, pelo contrário, o país teve de passar a comprar energia aos países vizinhos.
Esta é uma situação “atípica”, sublinha Jorge de Sousa, especialista em energia e professor do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL), onde coordena o grupo de investigação em sistemas de energia. E vem contribuir para a subida dos preços nos mercados que estão a vender a França. Não só porque a oferta que responde à procura francesa é abastecida por centrais a gás, como também porque as compras de um país têm o efeito de fazer subir os preços no exportador. O contágio só não é mais expressivo porque a capacidade de interligação é limitada e tem estado frequentemente congestionada pelo fluxo Espanha/França. E França, acrescenta Jorge de Sousa, também está a comprar energia elétrica ao Reino Unido e à Itália.
Historicamente, o nuclear abastece cerca de 70% do consumo elétrico francês, uma percentagem que é a maior a nível mundial. O país possui 56 reatores que representam uma potência instalada de 61 gigawatts, praticamente metade do total da sistema elétrico. Mas neste momento, refere Jorge de Sousa ao Observador, está disponível apenas metade dessa capacidade. É uma redução muito significativa, uma queda de 18 gigawatts registada no dia 25 de julho face a igual período do ano passado, que representa o mais baixo nível em 30 anos.
Uma parte substancial dos reatores desligados parou por razões de segurança técnica. No final do ano passado foi identificado um problema de corrosão de uma tubagem da parte de refrigeração de um reator. Há circuitos auxiliares que têm uma conduta por onde passa o fluido de refrigeração e que exigem soldaduras especiais. Foi identificada uma corrosão nessas soldaduras nas centrais de Civaux e Chooz (a primeira no centro do país e a segunda na fronteira com a Bélgica), explica Jorge de Sousa.
A mesma série de soldaduras foi usada em outras centrais, o que levantou a suspeita de existirem problemas de segurança de operação que levaram a suspender essas unidades que estão a ser alvo de uma auditoria técnica que pode demorar entre meses e dois anos. Ainda esta semana, a EDF indiciou que quatro dos 30 reatores em manutenção vão continuar sem operar durante mais semanas do que o previsto.
Há ainda a falta de investimento nesta tecnologia, nomeadamente na presidência de François Hollande. Perdeu-se know-how com a reforma dos técnicos mais velhos que não foram substituídos.
A renovação do parque nuclear francês ganhou um novo impulso com o anúncio feito por Emmanuel Macron — um plano de 50 mil milhões de euros para construir 14 reatores de água pressurizada da nova geração até 2035 . Mas a execução dos projetos nucleares costuma encalhar, com atrasos na entrada em operação das novas unidades porque a complexidade técnica e os requisitos de segurança são extremamente elevados. A EDF é a grande operadora nuclear europeia e está a desenvolver projetos para outros países, como a nova central de Hinkley Point no sul da Inglaterra cujo arranque está agora previsto para 2027, mais quatro anos que o calendário inicial.
A segunda razão para este apagão de quase metade do parque nuclear francês é a seca, destaca o professor do ISEL. A redução de caudal nos rios, sobretudo na zona sul, está a condicionar o nível de operação de algumas centrais. Os reatores são arrefecidos com água que é devolvida ao rio com uma temperatura mais alta. Se o caudal for reduzido, não é suficiente para evitar um aquecimento excessivo quando recebe a água usada no arrefecimento. Há um limite à quantidade de água quente que pode retornar ao rio sem o aquecer demasiado e este limite está também a reduzir a produção em algumas unidades. A seca pode vir aliás a tornar-se o maior problema para o setor elétrico em toda a Europa, realça o especialista em energia “O cenário mais dramático que pode verificar-se no setor é seguir-se um outro ano de seca”.
França atravessa a pior seca de sempre e cria gabinete de crise
Com o nuclear a meio gás e a produção hidroelétrica em baixa — as barragens são a terceira potência instalada em França a seguir ao nuclear e ao gás — resta ao país virar-se mais para as centrais de ciclo combinado e recorrer às importações.
Consumidores franceses protegidos, mas contribuintes podem pagar a conta da EDF
Apesar dos picos de preços internacionais, renovados na última semana, os consumidores franceses têm sido protegidos. O escudo de proteção chama-se EDF, a elétrica francesa onde o Estado é o maior acionista, e abrange famílias e empresas. Desde o início do ano que o Governo de Macron deu ordem à empresa para vender a energia nuclear que produz mais barata aos comercializadores de forma a segurar os preços cobrados aos seus clientes. O teto imposto foi de 46,2 euros por MW hora e conseguiu evitar as subidas de dois dígitos nos preços finais da eletricidade que abalaram os mercados vizinhos, incluindo a Espanha.
Jorge de Sousa assinala que a França “é um país muito protecionista do seu mercado”. E se no passado protegeu um sistema elétrico que produziu barato graças ao nuclear — limitando as interligações com países de energia mais cara (caso de Espanha) — agora protege os consumidores.
Perante a escalada dos preços grossistas, o Governo francês determinou que a EDF teria de aumentar a oferta de energia aos seus concorrentes a um preço limitado, numa política que tem um efeito prático comparável ao teto criado no mercado ibérico para o gás natural. E como o nuclear não chega para cobrir essa quantidade, explica o especialista, a EDF tem de vender a eletricidade produzida pelas centrais a gás ao preço administrativo, numa altura em que os valores do gás dispararam. Quer seja como produtora, quer como compradora a outros produtores que usam a gás, a elétrica francesa está a ser usada como amortecedor da crise dos preços. O que também tem custos. E se não pagam os consumidores, pagam os contribuintes.
Para o professor do ISEL, a EDF está a ser “a grande vítima” da política energética francesa. Apesar de o Estado ser o maior acionista, com 84%, a elétrica quer processar o Governo francês pelas perdas impostas na venda de energia e que chegou a valores estimados em 8,3 mil milhões de euros até agosto, e que podem chegar aos 15 mil milhões de euros num ano. O executivo respondeu, mostrando interesse em comprar os 16% que estão nas mãos dos privados. Uma espécie de nacionalização em nome da segurança de abastecimento (e do preço).
O caso do nuclear francês não é só um problema de França e acaba por contagiar os países vizinhos que se viram privados de um fonte a quem podiam comprar energia elétrica e na pior conjuntura possível. Olhando especificamente para a Península Ibérica, ou mais exatamente para Espanha, “estamos a produzir energia elétrica que está a ser consumida do outro lado dos Pirenéus”. E o adicional de energia que é produzida, assinala Jorge de Sousa, é por via do gás natural, porque todas as outras ofertas estão já encaixadas na procura da própria ibéria. “Como o gás está sujeito ao mecanismo ibérico que limita o preço” poderá estar a haver subsidiação aos franceses por parte dos consumidores portugueses e espanhóis que são chamados a pagar o custo deste mecanismo.
Congestionamento da interligação entre França e Espanha dispara com teto ibérico ao gás
Espanha e Portugal bem tentaram desligar França da formação de preços ibéricos no quadro do mecanismo que limita o preço do gás, mas tal foi recusado pela Comissão Europeia.
Como Portugal e Espanha propõem baixar o preço da eletricidade “desligando” a França
A solução negociada com Bruxelas prevê que as receitas do congestionamento da interligação sejam usadas em benefício dos consumidores do lado ibérico. Estas rendas aparecem, diz o especialista do ISEL, quando dois mercados ligados um ao outro fecham com preços diferentes, o que só acontece quando a interligação fica congestionada. Se for suficiente, o preço é igual. Toda a energia que está a ser comprada do lado espanhol a um preço é vendida do lado francês mais cara. O valor pago a mais por um dos lados — neste caso a França — é dividido pelos dois países.
Em julho, no primeiro mês completo de funcionamento do teto ibérico ao gás natural — que permitiu baixar o preço grossista da eletricidade na Península Ibérica — houve diferenças de preço entre França e Espanha em 100% das horas (a cada hora há um leilão de oferta e compra de energia que determina o preço dessa hora, que multiplicado por 24 dá o preço médio diário). Este dado que consta do relatório mensal do OMIE (operador espanhola da bolsa diária de eletricidade) mostra o nível de grande congestionamento da rede, no fluxo Espanha/França. A mesma publicação refere que as receitas de congestionamento dispararam 180% face a junho e 740% face a igual período do ano passado para 255 milhões de euros. Dos 50% que cabem a Espanha, 61 milhões de euros foram usados para minorar os custos de ajustamento do mecanismo pagos pelos compradores, refere o relatório mensal do OMIE .
Mas há uma parte dessas receitas que estão a ficar do lado francês. De acordo com o mesmo documento, França registou os preços máximos mais altos dentro da Europa em julho de 2022. E na hora máxima de acoplamento (casamento) entre os preços dos vários países, verifica-se que França está em sintonia com os países com os quais tem maior interligação, Alemanha, Bélgica, Holanda, estendendo-se ao leste da Europa.
O cenário de preços não é exclusivo de França e tem vindo a agravar-se em agosto na generalidade dos países do centro da Europa. No dia 17 de agosto, por exemplo, os valores máximos atingidos nos mercados com o preço “casado” foi de 747,9 euros por MW hora, o nível mais alto registado em décadas, escreve o site especializado em previsões de energia AleaSoft.
Ainda mais impressionantes são os valores atingidos no mercado de futuros em compras de energia para o próximo trimestre. Mais uma vez França destaca-se com os valores de 1.300 euros por MW hora para o preço da eletricidade nos meses de inverno.
Esta situação gerou já uma reação do regulador francês, a CRE (Commission de Régulation de l’Energie, a questionar esta alta de preços para contratos futuros que não corresponde a uma antecipação dos preços médios do mercado spot, atingindo uma grande diferença face ao que se estima para a Alemanha.
A CRE reconhece a fraca disponibilidade do parque nuclear, por causa da paragem de vários reatores, e assinala a pressão sobre o armazenamento de gás para o inverno causada pela guerra na Ucrânia. No entanto, questiona o salto dos preços em França, argumentando que o país tem acesso a fontes mais diversificadas de gás, para além de ter um preço no mercado grossista mais barato do que a Alemanha. E está a interrogar os principais operadores do mercado sobre as suas políticas comerciais para os próximos meses.
A espanhola Iberdrola, que também vende energia em Portugal, anunciou que não irá renovar os contratos de abastecimentos de gás e eletricidade aos seus clientes franceses.