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Desde que entrou em vigor o mecanismo ibérico que limita o preço do gás que temos ouvido os responsáveis políticos de Portugal e Espanha anunciarem as poupanças geradas por este teto. Na sua última intervenção no Parlamento, o ministro da Energia e Ação Climática, Duarte Cordeiro, quantificou a poupança em 18% face a uma situação em que o teto ao gás não existisse, o que se traduziu numa redução dos preços da eletricidade no mercado grossista de 55 milhões de euros durante 23 dias e apenas para o lado português.

Mas este fim de semana, o presidente da Endesa Portugal, e um dos mais respeitados especialistas no setor da energia em Portugal, apresentou uma versão diferente, e até contraditória, sobre os efeitos que o mecanismo terá para os consumidores finais da eletricidade. Nuno Ribeiro da Silva avisou que há um custo resultante deste mecanismo e que começará a ser passado para os clientes, incluindo domésticos, referindo até a possibilidade de aumentos na fatura até 40% a partir de julho e agosto, a que chamou de uma “desagradável surpresa” para os consumidores contribuintes.

Apesar do desmentido feito pelo Ministério da Energia e Ação Climática logo no domingo aos títulos que iam saindo da entrevista dada à Antena 1 e ao Jornal de Negócios e do esclarecimento prestado pelo regulador ERSE, a “notícia” do aumento de 40% na fatura elétrica ganhou dimensão e dominou a atualidade. Ainda na segunda-feira, Duarte Cordeiro interrompeu as férias para afastar categoricamente cenários de aumentos de 40%, tal como o secretário de Estado da Energia, João Galamba, já tinha feito.

As principais concorrentes da Endesa, nomeadamente a EDP e a Goldenergy, também vieram a público. A primeira garantiu que iria manter os preços aos domésticos até final do ano, a não ser em “caso de situações excecionais nos próximos meses”. A segunda indicou não ter ainda a informação necessária para poder calcular a compensação a pagar pelos seus clientes.

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Nuno Ribeiro da Silva não tem estado disponível para esclarecimentos adicionais públicos. E a Endesa  garantiu apenas que iria cumprir os preços estabelecidos nos contratos para clientes residenciais — que como já veremos não afasta necessariamente a possibilidade de subidas de preço para alguns consumidores.

Endesa fez 69 contratos com entidades públicas este ano. Fornece câmaras, fisco, segurança social e até regulador da energia

Já esta terça-feira saiu um despacho de António Costa a remeter para validação prévia do secretário de Estado, João Galamba, todas as faturas apresentadas pela Endesa aos seus (muitos e relevantes) clientes públicos. O primeiro-ministro justificou a medida drástica e inédita com “as ameaças de práticas especulativas nos preços a praticar pela Endesa e o dever de o Estado proteger o interesse dos contribuintes na gestão dos dinheiros”.

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Mas afinal o que vai acontecer ao preço da eletricidade? O mecanismo ibérico criado para baixar o preço vai funcionar como anunciado? Ou apenas transferir os custos no tempo e entre agentes de mercado? Espanha ganha mais do que Portugal? Há o risco de alguns consumidores ficarem a perder? Quem tem de pagar e quando?

Como surgiu o mecanismo ibérico que limita o preço do gás?

O mecanismo ibérico foi uma iniciativa de Espanha, com algum contributo de Portugal, e representa uma intervenção nas regras da formação de preço do mercado grossista da eletricidade. É neste mercado ibérico que as elétricas vendem a maioria da sua energia e também compram para abastecer os seus clientes. E há um ano que os preços estavam a subir, primeiro por causa da retoma pós-pandemia e do agravamento do CO2 e depois por via dos efeitos da guerra na Ucrânia e das sanções à Rússia.

O objetivo é desligar o preço da energia elétrica do valor do gás natural que, na qualidade de tecnologia mais cara, é a última a entrar no leilão de ofertas e procuras que define o preço grossista a cada hora. A regra no mercado energético europeu é que nas horas em que o gás natural fecha o preço toda a energia vendida no mesmo período recebe o mesmo preço inflacionado pelo gás, mesmo aquela que não tem os custos de combustível, como é o caso da renovável e do nuclear.

Com este desligar, e quando o preço é fechado pelo gás, apenas as centrais térmicas (gás e carvão) vão ser compensadas pelo diferença entre o teto e o preço que corresponde aos custos da sua produção. O resto da energia vendida na mesma hora — a renovável e a nuclear que é transacionada a preço de mercado — passa a receber o valor que resulta do teto. O ganho “inesperado” é retirado a estes operadores e apropriado pelo sistema, possibilitando preços menos altos e é o que permite ao mecanismo gerar poupança para os compradores. Mas envolve o pagamento das tais compensações às centrais térmicas que estão a produzir abaixo do custo real do gás natural.

Desde meados de junho que se aplica um teto de 40 euros por MW hora ao preço do gás que tem vindo a limitar o preço final do mercado grossista da Península Ibérica. Este regime foi aprovado pela Comissão Europeia e é válido até 31 de maio de 2023.

O mecanismo tem funcionado?

De uma maneira geral sim. Na maioria dos dias, a operadora que gere a bolsa diária espanhola, OMIE, divulga o preço médio diário (calculado a partir do preço obtido em cada hora de transação) que resultaria da regra normal do mercado e o resultante da aplicação do teto aos custos que as centrais a gás podem imputar à energia que vendem em mercado.

De acordo com dados divulgados pela presidente do OMIE quando esteve no parlamento português até 10 de julho, o efeito positivo do mecanismo no preço grossista tinha sido de 147 euros por MW/hora. Este efeito é superior aos 96 euros de compensação a pagar às centrais a gás que somam ao preço obtido por via do teto de 145 euros por MW hora.

Os compradores que foram chamados a pagar as compensações às centrais desembolsaram 241 euros por MW hora (145 + 96 = 241), um valor que, sublinha Carmen Becerril Martinez, é inferior ao registado em França para o mesmo período: de 314 euros por MW hora em França e de 255 euros por MW hora na Alemanha. Números dados pelo Ministério do Ambiente sobre o preço para esta segunda-feira referem que o preço médio do Mibel foi de 114,14 euros por MW hora a que somam os 84,9 euros de ajustamento. A soma de 199 euros por MW hora é inferior aos 253,1 euros por MW hora que resultariam, em tese, das negociações sem mecanismo.

No mesmo ciclo de audições, o ministro Duarte Cordeiro quantificou em 55 milhões de euros os ganhos para Portugal que correspondem a uma poupança de 18%.

Mas também há custos?

Sim, e essa é a outra face da moeda da qual os responsáveis políticos evitam falar, ainda que a incluam nas contas sobre os efeitos positivos da medida. Esse custo (ajustamento referido no diploma legal) ganhou grande visibilidade com as declarações do presidente da Endesa Portugal. Ainda que Nuno Ribeiro da Silva, ao contrário dos políticos e autoridades de energia, se tenha apenas focado no custo do mecanismo, sem reconhecer os ganhos que é suposto gerar (e que serão superiores, de acordo com todas as contas até agora apresentadas).

Com a criação deste mecanismo, o mercado ibérico de eletricidade passou a gerar quatro preços diários que contam para o cálculo da poupança: o preço médio diário com o mecanismo; o custo de produção das centrais a gás ao preço real de mercado (sem o teto); a parte desse custo extra que cabe aos compradores pagar (a compensação às centrais a gás); e o preço médio diário que resultaria caso não fosse aplicado o teto. A poupança resulta da diferença entre o preço sem teto e o preço que resulta da aplicação do mecanismo somando a compensação.

Quem paga? E quando paga?

Este foi o tema mais sensível da negociação do mecanismo ibérico entre Portugal e Espanha, por um lado, e os dois governos e a Comissão Europeia, por outro lado. O princípio anunciado como uma vitória de Portugal é o de que paga apenas quem beneficia no pressuposto já referido de que a fatura será sempre inferior ao ganho gerado pela aplicação do mecanismo.  Mas esta regra simples tem impactos distintos dos dois lados da fronteira e, até certo ponto, explica a confusão que em Portugal tem acompanhado as primeiras semanas de execução do mecanismo e a sua repercussão nos clientes que são chamados a pagar.

A fatura é apresentada aos clientes que estão diretamente expostos aos preços de mercado. E se em Espanha esta exposição abrange uma fatia considerável dos lares, para além de empresas, em Portugal não é assim. A maioria dos clientes, sobretudo domésticos, tem contratos com preços fixos (com a duração de um ano, regra que também se aplica à tarifa regulada). O desenho inicial do mecanismo não isentava estes consumidores de pagar os custos, o que suscitou alertas das elétricas, mas também do regulador português. Pedro Verdelho explicou no Parlamento que a ERSE defendeu uma correção que garantisse que nenhum consumidor saísse prejudicado pela intervenção, ainda mais por ter tido a cautela de contratar um preço fixo. Outra ressalva teve que ver com o funcionamento do mercado a prazo que opera em Portugal.

A solução passou por repercutir os custos da compensação à medida que os contratos fixos terminam e têm de ser renovados ou renegociados. Nesse momento, o consumidor será sempre confrontado com a nova realidade do mercado e com a escalada dos preços e em tese beneficia também da existência do teto ao preço do gás, daí que pague também a compensação. A mudança ou renovação de contrato seria a tal “surpresa desagradável” assinalada por Nuno Ribeiro da Silva, a qual poderia resultar em subidas da fatura já em agosto de 40% até para os clientes domésticos. Uma subida que, sublinhou o gestor, era explicada pelo tal novo custo do mecanismo que apareceria nas faturas, e não por uma decisão comercial da Endesa. A elétrica veio garantir depois que iria cumprir os preços contratualizados com os clientes residenciais.

São sobretudo as empresas a pagar? E os domésticos?

No domingo, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) esclareceu que o consumo abrangido pela obrigação de pagar as compensações representa 18% do total nacional de junho e 29% em julho e realça que é “maioritariamente industrial”. Isto porque os clientes industriais são os mais expostos às flutuações do mercado, só estando protegidos os clientes (na maior parte os domésticos) durante a vigência do contrato de preço fixo. A ERSE sublinhava, ainda assim, que os consumidores chamados a pagar estes custos serão sempre os que beneficiaram do mecanismo que representa “um ganho face aos preços que seriam observados sem esta intervenção”.

Mas, como já vimos, também os consumidores domésticos com contrato no mercado liberalizado serão chamados a pagar, na medida em que as condições contratualizadas (preço) sejam revistas no termo dos respetivos contratos. E foi ao impacto nestes clientes a que se referiu Nuno Ribeiro da Silva.

Ao longo da vigência do mecanismo (até 31 de maio de 2023) estima-se que 44,3% da procura de energia portuguesa seja chamada a pagar o ajustamento na medida do benefício que irá receber. A percentagem para Espanha é de 60%.

Se há números para o consumo abrangido, o mesmo não acontece para o número de clientes portugueses que terão de suportar este custo. O Observador questionou a ERSE sobre o universo de contratos residenciais cujo prazo termina em junho, julho e agosto e o regulador referiu que só as comercializadoras têm esses dados. Mas todos os contratos assinados a partir de 26 de abril, mesmo que com preços fixos, podem vir a sofrer ajustamentos para pagar os custos do teto ibérico porque a isenção só abrange contratos até 26 de abril.

O presidente da ERSE, Pedro Verdelho, destacou no Parlamento que a procura chamada a financiar os subsídios a pagar às centrais a gás tenderá a subir com o tempo, o que permitirá diminuir o encargo assumido por cada um porque é socializado por mais clientes. Pedro Verdelho admitiu ainda que o subsídio tenderá a diminuir até ao final do ano, aumentando o benefício, à medida que entrarem mais renováveis no mix de produção como costuma acontecer no inverno, o que reduzirá a necessidade de recurso a centrais térmicas. Mas para isso é preciso que chova e muito.

Quanto vão pagar a mais?

O presidente da Endesa Portugal foi até agora o único responsável a avançar com estimativas, as tais “surpresas desagradáveis” que podem chegar a aumentos até 40%. Este número foi categoricamente desmentido pelo Ministério da Energia e Ação Climática. O secretário de Estado João Galamba referiu que aumentos desta dimensão eram impossíveis. A reação de outras elétricas parece reforçar esta posição. A EDP afirmou que não aumentaria os preços dos contratos até ao final do ano a não ser que se verificassem condições (ainda mais) excecionais.

A Goldenergy veio indicar que ainda não tinha a informação disponível necessária para quantificar o que representa a imputação desse custo aos seus clientes. Estes dados relativos à energia vendida em cada contrato e o custo real da produção elétrica a gás natural são dados pela bolsa (OMIE) e pela REN, que não respondeu às perguntas remetidas pelo Observador sobre este processo.

Tanto quanto o Observador conseguiu apurar a sua entrega está a demorar mais que o previsto, o que está a atrasar a faturação dessas compensações aos clientes. Mas, em alguns casos, a conta já está a chegar. O Observador tentou ainda perceber se a demora no apuramento das compensações a pagar a partir de junho pode implicar faturas mais pesadas por incluírem valores superiores a um mês, mas não conseguiu esclarecer esta questão com a ERSE.

A Goldenergy sinaliza que há um custo que não está refletido no preço dos mercados grossistas que visa compensar os produtores a gás e que esse custo é repercutido nos diferentes agentes do sistema de acordo com condições previstas no decreto.

Mas também estas condições suscitam dúvidas. O decreto-lei que aprova o mecanismo diz que o valor do ajuste de mercado (compensação) “não se imputa aos consumos realizados ao abrigo dos contratos de fornecimento a preços fixos celebrados antes de 26 de abril, bem como aos preços fixos ao abrigo de instrumentos regulatórios aprovados antes dessa data” (onde estão os clientes da tarifa regulada).

A ERSE refere ainda, no comunicado, uma isenção para a energia contratada com instrumentos de cobertura de risco a prazo que parece diferenciar as elétricas e os seus clientes em função do tipo de oferta contratada. “Os comercializadores, na quantidade de energia aprovisionada através de contratação a prazo ou intra grupo, com preços firmes, estão isentos do pagamento do custo do mecanismo. Nesse sentido, os seus clientes com ofertas comerciais de preço firme, e como tal não beneficiando do presente mecanismo, não poderão ser onerados por um custo relativamente ao qual o comercializador não incorreu.

Porque é que o presidente da Endesa disse o que disse?

As declarações de Nuno Ribeiro da Silva apanharam de surpresa os agentes de mercado, sobretudo pela certeza das previsões de subida da fatura referidas. O presidente da Endesa é um gestor com grande experiência de declarações públicas e de intervenção como especialista de energia e na tomada de posições “sem papas na língua”.

Elétricas avisam Bruxelas. Proposta para baixar preços beneficia mais espanhóis do que portugueses

É certo que a Endesa, tal como as outras elétricas, já manifestaram publicamente a sua posição contra a intervenção política no mercado, alertando para os seus riscos. As empresas de energia também são contra porque perdem receitas na produção a partir de fontes renováveis, os tais ganhos inesperados que em vez de serem taxados com um imposto são reciclados no sistema para baixar os preços finais.

Nuno Ribeiro Silva frisou os alertas feitos ao Governo sobre esta matéria e esta quarta-feira a edição do jornal i refere que o gestor avisou em particular o secretário de Estado da Energia, João Galamba, das declarações que ia fazer. A falta de explicações públicas do próprio tem alimentado uma série de teses especulativas, algumas das quais até admitem que a Endesa estaria interessada em não ter mais clientes porque nesta conjuntura a comercialização está a gerar perdas para as grandes elétricas, como aconteceu com a EDP no primeiro trimestre. Mas parece evidente que houve uma tentativa de atribuir ao mecanismo toda a culpa pela subida dos preços que tem outras causas, quando o objetivo do mecanismo é precisamente o de travar essa subida.

Espanha ganha mais que Portugal?

O modelo deste teto foi desenhado em Madrid com uma preocupação muito clara e urgente de resolver o problema criado no Governo de Mariano Rajoy (PP) e agravado com Pedro Sánchez que colocou os preços de 11 milhões famílias espanholas indexados às cotações do mercado. Se a medida trouxe grandes descidas de preços quando o mercado estava em baixa (sobretudo na pandemia) transformou-se num pesadelo político no último ano quando os preços começaram a bater recordes. Foi para resolver este fogo político e social que o Governo de Sánchez, que é apoiado por parceiros à esquerda, se bateu pelo mecanismo com uma urgência e atenção mediática que não teve equivalência em Portugal onde, como referiu uma das fontes ouvidas pelo Observador, muito poucas pessoas perceberam o que estava em causa.

Na sessão de audições realizadas na comissão parlamentar de ambiente e energia, o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, reconheceu que o mecanismo tem uma “relevância superior para Espanha” porque o mercado espanhol “estava mais desprotegido. Portugal tem grande parte do consumo (e quase todos os domésticos) em preço fixo e no caso da tarifa regulada há uma parte da produção renovável que funciona como almofada para amortecer os preços altos: as eólicas que vendem a energia a um preço limitado e que devolvem ao sistema (e ao consumidor) o ganho a mais arrecadado com os preços de mercado. Mais altos.

Porque Portugal aceitou?

Na mesma intervenção, o ministro do Ambiente defendeu que o mecanismo também acrescenta proteção a Portugal, dando como exemplo de beneficiários a Siderurgia Nacional, um dos maiores clientes industriais que estava exposto à escalada dos preços grossistas (e que chegou a suspender a produção por causa do preço da eletricidade, mas também do gás). Duarte Cordeiro invocou a Comissão Europeia que validou os benefícios para os consumidores e a condição colocada por Portugal (e Bruxelas) que Espanha acatou: quem estivesse protegido (a maioria dos consumidores portugueses domésticos) não ficaria exposto aos custos do mecanismo, ou seja, todos os que tinham preços fixos contratados. O ministro sinalizou ainda que a Comissão admite aplicar este mecanismo em outras áreas da Europa.

Apesar dos argumentos técnicos, no setor elétrico fala-se de uma decisão política tomada ao mais alto nível, com António Costa empenhado em apoiar Pedro Sánchez na sua cruzada ibérica pelo teto do gás na eletricidade, quando Espanha vivia já uma inflação altíssima e Portugal ainda estava com uma subida de preços moderada.

Não há riscos? O ganho será sempre maior do que o custo?

No papel, todas as condições parecem estar garantidas. E há fator que reforça a certeza de que há ganho é esta conta simples: O ajustamento do custo aplica-se apenas 30% da produção, enquanto 50% da energia produzida (renovável a nuclear) abdica dos lucros inesperados que são socializados. O resto no caso português corresponde a importação. Mas os modelos matemáticos usados para calcular ganhos assentam em pressupostos sobre comportamentos e previsões sobre condições de mercado e até climatéricas cuja evolução pode desviar-se do que foi considerado.

Uma das variáveis que está a reduzir os benefícios esperados deste teto é a seca. Quanto menos renovável entrar na oferta elétrica, mais térmica é necessária, o que faz subir a quantidade de energia com direito a subsídio que é preciso produzir. E isto eleva o ajustamento a passar para os clientes. Outra é a aceleração dos preços de gás na Europa que é uma consequência de mais cortes de abastecimento por parte da Gazprom.

Como Portugal e Espanha propõem baixar o preço da eletricidade “desligando” a França

Há mais um aspeto do mecanismo que, por imposição da Comissão Europeia, limita os ganhos inicialmente estimados com o teto ibérico: a exportação para França que na proposta inicial seria condicionada ao preço original sem teto, mas que Bruxelas recusou por comprometer a integração dos mercados elétricos europeus. Apesar do mecanismo prever que as receitas de congestionamento da interligação entrem no saldo para compensar Espanha, esse valor é insuficiente para anular os efeitos da exportação de energia elétrica para França. O primeiro efeito é fazer subir o preço ibérico. Quem importa ganha mais do quem exporta porque consegue baixar o preço. A segunda consequência é uma subsidiação dos preços franceses pelos consumidores ibéricos que são chamados a pagar o ajustamento. O problema só não é maior porque a interligação entre os dois países é muito limitada.

Outro fator de incerteza é o comportamento dos agentes de mercado que muda com a criação do teto. A partir do momento em que os centros produtores ajustam a sua estratégia de ofertas às novas condições de mercado, queimando mais gás para aproveitar a subsidiação, os pressupostos usados para calcular ganhos podem não se confirmar. Outro efeito é a desvalorização do mercado a prazo onde os operadores podem proteger-se do risco do preço. Enquanto existir o teto, esse risco fica limitado e reduz o interesse nas operações de cobertura de risco que são transacionadas no polo português do mercado ibérico.

Quando se chega à pergunta dos milhões, parece evidente que os benefícios podem ser menores que os esperados inicialmente. Aliás, a poupança referida esta semana por António Costa, no Twitter, fala num valor médio de 15,2% desde o início do mecanismo e até início de agosto, percentagem que já está abaixo dos 18% referidos por Duarte Cordeiro em julho.

E os ganhos que as contas continuam a apresentar existem apenas no papel porque simulam condições. São virtuais, enquanto os custos que chegam à fatura dos clientes são reais. E, na medida em que sejam identificados na fatura, podem conduzir a uma perceção contrária à expectativa criada pelos políticos.