O Estado “não vai entrar pela casa das pessoas adentro, sem mais“, mas António Costa deixou muito claro, esta quinta-feira, que a solução para a crise de habitação vai passar por um aproveitamento maior das casas vagas que existem no País – 723 mil, segundo o INE, cerca de metade das quais fora do mercado de venda/arrendamento. Esta que é, provavelmente, a medida mais controversa do pacote “Mais Habitação”, “peca por tardia“, na opinião de alguns, causa “urticária“, pode piorar ainda mais o problema e até pode ser inconstitucional, na ótica de outros.
Uma intenção já estava plasmada na recente Lei de Bases da Habitação (DL 89/2021), na qual já se falava num “dever de articulação entre as diversas entidades, do Estado e dos municípios, para que de forma pró-ativa possam resolver as situações das pessoas em situação de efetiva carência habitacional”.
Nesse diploma, chamava-se a atenção para a “função social da habitação” e defendia-se que se promovesse “o seu uso efetivo, dando-se a possibilidade aos municípios de, no âmbito do procedimento de classificação de um imóvel de uso habitacional como devoluto, quando o mesmo se situe em zona de pressão urbanística, apresentar uma proposta de arrendamento do imóvel ao seu proprietário, para posterior subarrendamento“.
Esta é uma possibilidade que já estava prevista na lei de bases (que traça linhas mestras mas que requer, depois, legislação complementar), portanto, para as zonas onde existe maior “pressão urbanística”, que é a forma que o legislador usou para descrever locais com elevada procura que não é satisfeita por escassez de oferta. Não incluía, portanto, zonas com menor procura, mas essa é uma questão que terá de ser definida na legislação que vier a sair deste programa “Mais Habitação” que, como vários especialistas ouvidos pelo Observador sublinharam, “para já não é mais do que uma carta de intenções“.
Luís Mendes, geógrafo e investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG/UL), diz que “estas medidas não são nada de novo, vai é ser regulamentado o que já está na Lei de Bases“.
Lei de Bases prevê “proposta”, não prevê obrigação, alerta advogado
Mas João Pinheiro da Silva, sócio da firma de advogados CMS, alerta que o que está previsto no decreto que regulamenta a Lei de Bases é que o Estado possa fazer uma “proposta”, o que é diferente de dizer que o proprietário seja obrigado a aceitar. Aliás, o próprio primeiro-ministro disse em entrevista à TVI que o dono da casa “tem toda a opção de dizer que não“.
Porém, o primeiro-ministro acrescentou que “o Estado só toma a posse administrativa se, ao fim de ‘x’ anos, as pessoas não colocarem a casa no mercado de arrendamento, e não há nenhuma razão para não o fazer, porque há muitas pessoas à procura de casa, e não é legítimo ter as casa vazias”. Ora, o que são estes ‘x’ anos ao fim dos quais o proprietário deixará, por sinal, de poder dizer não? João Pinheiro da Silva diz presumir que isso é o que deverá ser regulamentado na legislação que vier a ser aprovada.
Tiago Mendonça de Castro, sócio co-coordenador da área de prática de direito imobiliário da Abreu Advogados, aponta também que o que foi anunciado esta quinta-feira foram pretensões, faltando ainda a sua concretização. E há muitas dúvidas por esclarecer.
Começam, no entanto, já a surgir dúvidas da constitucionalidade do arrendamento coercivo. António Costa disse “não crer” haver problemas de inconstitucionalidade, porque “as normas sobre as obras coercivas já estão na lei há dezenas de anos“. “Haveria [inconstitucionalidade] se o Estado ocupasse a sua casa, cobrasse a renda ao inquilino e não lhe pagasse nada. O Estado vai-lhe pagar a casa ao valor do mercado, subarrenda e, se [o Estado] fez obras, desconta na renda, porque, quando lhe entrega a casa, não é uma casa degradada, mas sim uma casa valorizada”, garantiu o primeiro-ministro.
Mas também aqui João Pinheiro da Silva chama a atenção para a diferença entre aquilo que está na legislação existente e aquilo que está implícito nas palavras do chefe do Governo, que apontam para a possibilidade de um arrendamento forçado para além das situações de realização de obras coercivas. No Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), fala-se em ‘Arrendamento Forçado’ como “o arrendamento de edifícios ou frações autónomas, assumido por uma entidade administrativa, pelo prazo estritamente necessário para o efeito, com o objetivo de garantir o ressarcimento das despesas incorridas com a realização de obras coercivas, através do recebimento das rendas relativas a contrato previamente existente à intervenção que se mantenha em vigor ou, quando este não exista ou tenha cessado a sua vigência, pela celebração de novo contrato”.
Por outras palavras, diz o advogado da CMS, quando o poder público identifica uma necessidade de fazer obras por razões de segurança ou salubridade, por exemplo, o Estado pode promover uma execução fiscal contra o proprietário para obter aquilo que lhe é devido. Mas “em alternativa pode fazer um arrendamento forçado, mas o contrato de arrendamento só pode ter uma duração que corresponda ao estritamente necessário para o pagamento da dívida” correspondente ao custo que teve com a obra. Não está aqui qualquer referência, portanto, à prossecução de objetivos de política pública como o fomento da habitação.
Tiago Mendonça de Castro não tem dúvidas de que vai haver um debate sobre o confronto entre o direito constitucional à habitação versos o direito constitucional à propriedade privada, admitindo que o Tribunal Constitucional possa vir a ser chamado a pronunciar-se de forma preventiva ou sucessiva. Mas mais uma vez realça não se conhecer a aplicação prática que se pretende da medida cujo objetivo — disponibilizar mais casas para arrendamento — poderia ser mais fácil de conseguir pela via fiscal, até incentivando-se a construção de casas para arrendamento.
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Regresso ao PREC?
Num tema que gerou tomadas de posição extremadas, o presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), considerou que esta medida do “arrendamento compulsivo, a nosso ver, é claramente inconstitucional porque nós estamos num país onde ainda há liberdade contratual e propriedade privada”.
Luís Menezes Leitão, que é advogado, comparou esta intenção aos “precedentes” que foram lançados pelo Governo de Vasco Gonçalves, em 1975, em pleno período revolucionário (PREC). “Nessa altura, “de facto, decretou-se arrendamentos compulsivos que foram feitos pelas câmaras municipais que meteram os inquilinos nas casas, a pagarem rendas miseráveis e muitos ainda hoje lá estão“, afirmou Menezes Leitão, à Rádio Observador. “Neste caso, vamos assistir a uma reintrodução disso e eu não vou recomendar a nenhum senhorio que aceite uma intervenção destas, vou recomendar que recorra aos tribunais“, rematou o presidente da ALP.
Menezes Leitão diz que a intenção vai contra o que está na Constituição democrática portuguesa, já que na prática é um tipo de expropriação, na medida em que “estamos a limitar o uso da casa por parte do seu proprietário”, que deixa de poder fazer aquilo que quer com ela, como, por exemplo, “estar à espera para arrendar” ou, por exemplo, estar a reservar uma casa à espera que um filho cresça e possa ficar com a casa.
Luís Mendes, investigador na área da habitação, que está do lado dos que consideram que a medida peca por tardia, lembra, contudo, que isto é o tipo de situações que já estão previstas na lei do arrendamento – ou seja, qualquer senhorio já pode usar como motivo para uma interrupção do contrato de arrendamento uma necessidade do imóvel para si ou para um filho. Ou seja, na ótica deste investigador, nada impediria alguém de recuperar o controlo de uma casa devoluta caso demonstrasse necessidade para si ou para um descendente de 1.º grau – mesmo que aqui fosse o Estado que estivesse a arrendar o imóvel (para sub-arrendar a alguém).
“Ninguém está a falar de casas de 2.ª habitação”
Para Tiago Mota Saraiva, este é um debate onde há quem queira alimentar uma confusão sobre de que tipo de imóveis se está a falar. “Ninguém está a falar de casas de segunda habitação, casas de férias ou de emigrantes. Estamos a falar de casas que não têm quaisquer vestígios de habitalidade, não têm contratos de luz e água, são casas que estão literalmente sem ninguém”, afirma o arquiteto e urbanista.
O arquiteto, que há vários anos é também um ativista em matéria de habitação acessível, recorda que a Lei de Bases já fazia referência a esta possibilidade de os municípios detetarem fogos devolutos, fazerem as obras necessárias e colocarem-nos no mercado de arrendamento”. “O que os municípios têm dito é que não têm muito dinheiro para isto, mas agora apresenta-se uma linha de financiamento” sobre a qual ainda não há muitos detalhes – detalhes que podem, no entanto, ser muito relevantes, como a duração do refinanciamento dessas linhas.
“As associações do setor atiram logo com comentários sobre o PREC, mas quem vai fazer isto são os municípios e as juntas de freguesia, e eles sabem muito bem o que é que é devoluto e o que é que não é“, remata Tiago Mota Saraiva, sublinhando que esta legislação tem de ser bem construída, com métricas objetivas sobre o que é que constitui um prédio devoluto e como se deve proceder. “É preciso sempre ter muito cuidado com o que se faz na área da habitação e tem de haver critérios objetivos, embora também não devamos fazer leis-cegas“, diz o arquiteto.
Mas há outras dúvidas. Não apenas na decisão de considerar um prédio devoluto — que serão estes os alvos do arrendamento compulsivo –, mas também não é claro que renda vai o Estado pagar, ainda que, como se pretende colocar estes imóveis em arrendamento acessível se admita que o preço no compulsivo seja o mesmo.
Para efeitos de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) já há uma definição de imóvel devoluto, até porque estes podem ter uma taxa agravada — segundo noticiou a Lusa, em 2022, um total de 24 autarquias penalizavam, em sede deste imposto, as casas devolutas, tendo sido identificados 4.188 imóveis nessas condições.
Duas dezenas e meia de autarquias com IMI a triplicar para casas devolutas
O que são prédios devolutos para efeitos de IMI?
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De acordo com a lei, e para efeitos de agravamento do IMI, consideram-se prédios devolutos (diferentes de imóveis em ruína) que estejam desocupados durante um ano. São indícios de desocupação:
- não terem qualquer contrato com empresas de telecomunicações, água, gás e eletricidade;
- não tenham faturação relativa a consumos de água, eletricidade e telecomunicações;
- tenham consumos baixos de água e eletricidade cumulativamente — que não exceda em cada ano consumos superiores a sete metros cúbicos para a água e 35 kWh para a eletricidade;
- vistoria das autarquias.
“Urticária”. São medidas que não são pela via dos incentivos
Mas há visões diametralmente opostas, de especialistas que admitem que estes planos lhes causam “alguma urticária“. Vera Gouveia Barros, economista ligada ao ISEG e investigadora na área da habitação, diz ao Observador que “se o Estado impõe algo como isto de facto ele torna-se um senhorio público, mesmo sabendo que depois dá a renda aos proprietários, mas do ponto de vista dos agentes económicos isto é uma medida que não é feita pela via dos incentivos, o que faz com que me cause urticária”.
A economista diz que a forma como o Estado pretende lidar com o problema das casas vagas até pode gerar situações de dupla injustiça para os cidadãos: “imagine-se um caso em que há umas partilhas em que os herdeiros estão em tribunal há anos à espera de uma solução e, por isso, a casa continua desocupada. Então o Estado, além de penalizar os cidadãos pela demora da Justiça vai penalizá-los arrendando a casa deles a terceiros contra a sua vontade?”.
Mais problemas, diz a investigadora: “Vamos imaginar um prédio de que alguém é dono, foi o Estado que obrigou o senhorio a congelar as rendas ou foi o Estado que, com as suas regras, tornou impossível que fossem feitas obras profundas que não podem ser feitas quando está pelo menos uma família ou uma pessoa a viver no edifício e, portanto, não está totalmente vazio… Vai-se penalizar o proprietário nesse contexto? Se calhar a norma para as obras coercivas não é muito aplicada também por causa de situações como esta”, diz Vera Gouveia Barros, que admite que as medidas apresentadas podem “assustar” e ter efeitos perniciosos na confiança a médio e longo prazo, como quem investe em promoção e na criação de mais oferta imobiliária.
João Pinheiro da Silva, advogado da CMS, especialista em imobiliário, salienta porém que “neste momento ainda não temos qualquer diploma que possamos avaliar, ainda são apenas medidas que foram anunciadas e vão estar em discussão pública”. “Dito isto, a ideia de lançar para a opinião pública a possibilidade de forçar proprietários a arrendar a terceiros os respetivos imóveis é uma medida que não só carecerá de uma análise prévia da constitucionalidade, como são, no fundo, um reconhecimento por parte do Estado de que não foi capaz de criar políticas eficazes na área da habitação“, diz o advogado.
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“O que me parece é que mais uma vez o Estado está a transferir para privados uma responsabilidade que devia ser satisfeita pelos impostos que são cobrados às pessoas e empresas, e que não são poucos – é outra vez pôr os proprietários a fazer de Segurança Social“, afirma João Pinheiro da Silva, alertando que mais importante seria haver “estabilidade legislativa” como há em Espanha, que propicia que haja mais quem invista em construção para arrendamento (build to rent). “Em Portugal, infelizmente, só parece promover-se o build to sell“, ou seja, promoção para a venda.