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O risco de não ceder perante a pressão de um oficial russo era o assédio e abuso sexual (quase certo) por parte dos soldados do seu próprio exército

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O risco de não ceder perante a pressão de um oficial russo era o assédio e abuso sexual (quase certo) por parte dos soldados do seu próprio exército

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As militares russas obrigadas a ser concubinas de oficiais para evitarem ser violadas por soldados do seu exército

Há livros sobre as mulheres de campanha da II Guerra Mundial, como Sofía. Mas, na Ucrânia, a história repete-se. Os casos de Margarita e Marina provam-no. "Servem" oficiais, para não serem violadas.

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Oito décadas de reflexão sobre o papel da mulher na sociedade não chegaram para terminar com práticas criminosas em clima de guerra. E o papel da mulher em conflitos armados é um exemplo claro de que as atrocidades cometidas na Segunda Grande Guerra podem facilmente ser replicadas em pleno século XXI.

A jornalista e escritora, Nobel da Literatura, Svetlana Aleksievich, escreveu sobre os horrores sofridos pelas mulheres do exército vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. O seu retrato dos conflitos armados e do papel da mulher culminou no livro “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”. Nele, a jornalista deu como exemplo o testemunho de Sofía, uma auxiliar médica na frente de leste, que foi a concubina de dois oficiais do exército russo, tendo inclusive criado uma filha, depois da guerra, nascida dos abusos sexuais do segundo oficial — ele, já com uma família, descartou as suas responsabilidades da relação extraconjugal.

No livro é igualmente explicado como as mulheres russas que estiveram de algum modo envolvidas na guerra e foram vítimas de abusos sexuais se defenderam depois publicamente perante uma sociedade conservadora. Diziam tratar-se de “amor”, de relações românticas e consentidas. Mas a verdade, segundo explicou a jornalista no seu livro, citado pelo El Mundo, é que estas relações não passavam de meios de sobrevivência para que a mulher, aceitando ser concubina de um oficial, não estivesse exposta ao risco (e probabilidade quase certa) de ser vítima de violações em grupo por vários soldados do seu próprio exército.

Poder-se-ia pensar que quase oitenta anos de história e de reflexão assegurariam que atos como aqueles a que Sofía foi sujeita não se repetiriam de forma sistemática. Que não ultrapassavam ações individuais e criminosas de um só militar perante uma mulher inserida no exército. Mas o testemunho de Margarita, uma socorrista militar russa, à Radio Free Europe, contudo, comprova que o dilema das mulheres em 1943 permanece o mesmo em 2023. A história infelizmente repete-se.

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Tortura ou sedução à força: a escolha cruel das militares russas na Ucrânia

No final de março deste ano, Margarita encontrava-se em Belgorod há dois meses, sob baixa médica. A militar tinha passado o último par de meses a receber tratamento psiquiátrico depois da sua experiência na frente de batalha da guerra na Ucrânia. Realizava terapia e tomava antidepressivos para conseguir lidar com as suas experiências. O seu maior medo era ser enviada de novo para a linha da frente. Mas, mais do que os soldados ucranianos, o que a militar temia eram os seus colegas russos.

Atualmente com 42 anos, Margarita abandonou o exército russo em 2017, depois de 11 anos de serviço militar enquanto operadora de rádio. No verão de 2022, enquanto estava num escritório do exército por causa de um documento para confirmar a sua aposentadoria, foi-lhe proposto um novo contrato de trabalho enquanto socorrista no exército. O pesadelo começou quando Margarita chegou a Novosmolinski, na região de Nizhny Novgorod, e um coronel reparou em si quando estava na formação. “Ele era o comandante da 10ª divisão blindada”, explicou. “E disse: ‘Margo, vem comigo’.”

"Durante um mês, vivi basicamente no exterior. Enquanto toda a gente estava aquartelada em edifícios ou quartéis, eu dormia no chão, numa tenda junta da estrada." Por vezes, a socorrista não tinha direito à sua ração alimentar. "Queriam quebrar-me para que eu concordasse em dormir com ele, mas eu aguentei."

O comandante ordenou que fosse dado um uniforme a Margarita e que ela se apresentasse no seu quartel-general. “Depois de conhecer melhor algumas pessoas lá, disseram-me: ‘O coronel tem os seus olhos postos em ti. Provavelmente serás a sua esposa de campo‘”, contou a socorrista. Isto significava, como foi depois explicado a Margarita, cozinhar, limpar e agradar o coronel, uma clara alusão a favores sexuais. Quando a unidade onde Margarita e o oficial estavam integrados foi enviada para a Ucrânia, a socorrista conseguiu resistir aos avanços do coronel durante cerca de um mês. O problema chegou quando ele percebeu que não a ia conseguir seduzir, e que ela teria de ser persuadida de outra maneira.

“Quando chegámos à linha da frente, fui finalmente colocada na unidade médica”, explicou ‘Margo’. “O oficial que aí estava disse-me que o coronel tinha ordenado que eu fosse ‘severamente punida’. Durante um mês, vivi basicamente no exterior. Enquanto toda a gente estava aquartelada em edifícios ou quartéis, eu dormia no chão, numa tenda junta da estrada.” Por vezes, a socorrista não tinha direito à sua ração alimentar. “Queriam quebrar-me para que eu concordasse em dormir com ele, mas eu aguentei.” Quando o coronel percebeu que não conseguiria aliciar Margarita, transferiu a socorrista para uma unidade de artilharia próxima da frente de batalha. “Pensei que fosse morrer aí”, contou.

Mas não acontecia apenas com Margarita. A sua unidade médica era composta por si e por outras sete socorristas, entre os 23 e os 38 anos. Todas elas foram pressionadas para se tornarem esposa de campo — uma delas por um oficial de informação, outra por um comandante de tanques e outra ainda por um oficial de infantaria. “Quando chegámos, ninguém sabia o que se estava a passar, mas quando finalmente percebemos, era demasiado tarde“, afirmou Margarita, que disse ainda ter visto também um oficial balear e ferir gravemente uma militar.

“Se estavam bêbedos ou se foi por motivos de ciúmes não sei”, começou por dizer. “Mas ele tentou fazer com que parecesse que tivessem sido os ucranianos, até magoou o seu próprio braço e disse que a tinha protegido.” A mulher foi aposentada do exército, e sujeita a várias cirurgias para reparar os danos causados pelo oficial — que já tinha agredido a militar em várias ocasiões no passado.

"Elas decidiram que era melhor viver na retaguarda com boa comida e muitos cigarros."

A maior parte das colegas de Margarita acabariam por sucumbir perante a pressão de se tornarem nas concubinas de algum oficial. Num dos casos, segundo relembrou a socorrista, foi dito a uma das suas colegas: “Este homem gosta de ti e tu vais estar com ele“. Essa mulher nunca mais regressaria para a unidade médica a que Margarita pertencia. Mais tarde, um motorista conhecido de Margarita informou-a que a mulher “se tinha ajustado às suas circunstâncias“. Era esta a realidade da maioria das mulheres na frente de batalha, explicou.

Elas decidiram que era melhor viver na retaguarda com boa comida e muitos cigarros.” Se havia quem mencionasse esta prática como um ajuste às circunstâncias, havia igualmente quem não mostrasse pruridos em relação ao que se passava na linha da frente. “Nós vendemos [aquela mulher], e iremos vender-te a ti“, disse um oficial a Margarita. Tal foi a expressão de horror na cara da socorrista que o oficial adotou uma estratégia diferente: “Vá lá, estou a brincar”. Para os oficiais, não era a sua vida que estava em jogo.

Na Segunda Grande Guerra, “amar” significou “sobreviver”

Atualmente, na sociedade ocidental, o conceito de amor romântico implica — sempre que uma relação não sofra de abuso por um dos lados — gostar de uma pessoa, respeitar essa mesma pessoa e a sua livre vontade,. Há algumas décadas, e especialmente em plena Segunda Grande Guerra, com a hipótese de se poder fazer parte de uma das frentes de batalha, o conceito de amor tinha um significado completamente diferente, que pode ser resumido noutra palavra: sobrevivência.

“Pergunta-me sobre o amor?”, explicou Sofía à escritora Svetlana Aleksievich. “Não me mete medo dizer a verdade. Eu fui uma esposa de campanha, uma esposa na guerra. A segunda esposa, a ilegítima. Uma concubina.” Ao contrário de Margarita,  Sofía foi esposa de campanha de dois oficiais em períodos diferentes, enquanto era auxiliar médica na frente de guerra.

"Meti-me na sua tenda uns meses depois de lá estar [na frente de guerra]. Que outra opção é que eu tinha? Ali só havia homens, era melhor viver com um que temê-los a todos."

O primeiro oficial era um comandante de batalhão e alguém por quem Sofía não se apaixonou — porém, como já foi dito, o amor, e portanto a paixão, tinham um significado diferente nesta altura. “Era um bom homem, mas não o queria”, contou. “Meti-me na sua tenda uns meses depois de lá estar [na frente de guerra]. Que outra opção é que eu tinha? Ali só havia homens, era melhor viver com um que temê-los a todos.” A antiga socorrista russa explicou que os piores momentos não eram os combates em si, mas sim a altura em que os soldados retiravam dos conflitos e se reagrupavam. “Na batalha, debaixo de fogo, chamavam-te: ‘Irmã, irmãzinha!’ mas quando acabavam os combates deixavam-te encurralada. De noite não podia sair da tenda.”

Para as mulheres nessa altura, explicou Sofía, este tipo de relação com oficiais era “um abuso encoberto, uma forma de sobreviver“, que depois de aceite pelas vítimas era ocultado do resto das pessoas. A melhor forma de esconder aquilo de que tinham sido vítimas era precisamente chamarem a algo que não passou de mais do que uma relação desigual de poder, amor. “Ali havia de tudo. Ninguém queria morrer. Quando és jovem tens medo de morrer.”

A agravar tudo isto, como esclareceu a socorrista da Segunda Grande Guerra, “era difícil para os homens estar quatro anos sem mulheres”. No exército onde Sofía se encontrava não existiam bordéis, nem circulação de drogas, ao contrário de outras partes do conflito. E mesmo ter uma mulher de campanha, como a própria salientou, não era algo possível para a maior parte dos militares. “Os oficiais superiores podiam ter algumas coisas, mas o soldado raso não”, continuou. “Eu, por exemplo, era a única mulher do meu batalhão, e vivia na tenda comum, junto com os homens. Atribuiram-me o meu próprio espaço , mas imagine-se que espaço era esse se a tenda media seis metros quadrados.”

Para a maioria destas mulheres, a escolha era cruel: aceitar ser a concubina de um oficial contra a sua vontade, ou arriscar ser violada pelos soldados do seu lado da trincheira. “À noite acordava a agitar os braços: distribuía bofetadas, ele [o oficial] tirava as suas mãos de cima de mim”, contou Sofía. “Quando me magoaram, estive no hospital, e aí também agitava os braços.” De noite, era comum Sofía ser acordada pela enfermeira que lhe perguntava o que é que se passava. “Mas claro, a quem é que eu ia contar?

O primeiro oficial com quem a socorrista se envolveu acabou por morrer, vítima de uma mina que explodiu. Seguiu-se outro oficial, também ele comandante do batalhão. O falso romance, o tal “amor” de que Sofía falou, era regularmente interrompido, uma vez que este oficial costuma visitar a sua família. Aquando do final da guerra, a socorrista tinha engravidado. “Eu queria-a [a gravidez], mas criei sozinha a nossa filha, ele não me ajudou, não fez nada. Nem uma carta, nem um presente, nem um postal.” Com o fim da guerra, terminou o amor que garantiu a sobrevivência e a relativa segurança de Sofía. “Ele voltou para a sua família legítima, e eu fiquei com uma fotografia.”

"A sociedade russa considera as mulheres na guerra como meras prostitutas".

Concubinas à força e espalhadas ao longo de oito décadas

O testemunho de Sofía é um de muitos que exemplifica aquele que era o destino das mulheres na guerra. Em 2018, o historiador britânico Alexander Wood Balsom publicou o artigoSister in Arms: Soviet Women in the Great Patriotic War” no The Mirror — “Irmãs de Armas: Mulheres Soviéticas na Grande Guerra Patriótica” em português. Neste texto, o historiador fez igualmente referência ao papel das relações amorosas entre militares russos durante a Segunda Guerra Mundial.

“Em certas alturas, funcionários do governo ou oficiais militares pressionavam as subordinadas femininas porque acreditavam ser seu direito ter ‘mulheres de campo’ (muitas vezes referidas através da abreviatura PPZh, um jargão militar)”, explicou Alexander Balsom. “Nem todas as relações das PPZh foram um produto da coação, uma vez que algumas foram formadas através de um interesse comum genuíno, enquanto outras relações foram iniciadas por mulheres para tirarem partido dos benefícios, do favoritismo.”

Fora do contexto da Segunda Guerra Mundial, e como Margarita testemunhou, este tipo de relações forçadas entre as mulheres do exército russo e os seus oficiais manteve-se uma prática comum. À Radio Free Europe, Marina Zaitseva assumiu ter testemunhado vários casos de abuso no exército. A antiga militar russa, que esteve presente na Chechénia entre 2001 e 2006 e que se aposentou em 2019, explicou que as mulheres de campanha são um segredo mal escondido no exército russo.

“Algumas mulheres são capazes de resistir, mas algumas procuram proteção”, explicou a antiga militar. “Eu resisti.” Com base na sua experiência, Marina Zaitseva desaconselhou as mulheres a enveredarem pelo ramo militar. “A sociedade russa considera as mulheres na guerra como meras prostitutas“, concluiu.

A força de quem defende não só a Ucrânia mas também as mulheres

Este tipo de violência contra as mulheres e de violação dos seus direitos não é exclusiva do exército russo. Do lado ucraniano, contudo, os casos de coação e abuso sexual não são reportados na mesma escala que no exército russo. O menor número de denúncias do lado de Kiev pode ter que ver com um menor número de crimes desta natureza, ou, por outro lado, com uma pressão e um medo ainda maiores que no lado de Moscovo, não permitindo revelar todos os casos.

A legislação ucraniana não permitia a presença de mulheres militares em posições de combate até 2018, explicou à Radio Free Europe a socióloga Anna Kvit, que tem investigado a presença de mulheres no exército ucraniano desde 2015. Como resultado, disse a investigadora, às mulheres alistadas até então eram atribuídas as funções de cozinheira, auxiliar de limpeza ou administrativa — funções estas no papel que, em alguns casos, não condiziam com as verdadeiras funções desempenhadas pelas militares em campo, onde eram franco-atiradoras, batedoras ou operadoras de artilharia. O resultado foi a privação de apoios sociais e benefícios, prémios e carreiras militares para as mulheres que estiveram presentes na guerra na região do Donbass.

Além dos benefícios sociais e as regalias militares, as militares ucranianas depararam-se ainda com outros desafios. De acordo com Anna Kvit, o assédio sexual não está bem definido dentro da lei ucraniana. Além disso, não foram ainda criados os devidos mecanismos para lidar com este tipo de abusos no exército ucraniano, além de os casos serem, segundo a socióloga, subdeclarados, não expressando a dimensão real do problema.

"Não há assédio na linha da frente", afirmou Oksana Hryhoryeva. "As mulheres no exército [ucraniano] revelam o melhor lado dos homens."

A conselheira do comandante das forças terrestres ucranianas para as questões de género, Oksana Hryhoryeva, contou à Radio Free Europe que desde o início da invasão russa à Ucrânia recebeu relatórios de dois casos relacionados com assédio e discriminação de género. Ao contrário de Anna Kvit, a conselheira defendeu que este número representa de forma precisa a realidade das forças armadas da Ucrânia. “Não há assédio na linha da frente”, afirmou Oksana Hryhoryeva. “As mulheres no exército revelam o melhor lado dos homens.”

Para a conselheira das forças terrestres ucranianas, os esforços das autoridades ucranianas estão direcionados para a identificação e resolução de casos de abuso que envolvam elementos das tropas russas em áreas ucranianas ocupadas, assim como soldados com stresse pós-traumático, incluindo aqueles e aquelas que estiveram cativos do exército russo. “A ideia que o exército não é lugar para uma mulher é uma relíquia da mentalidade soviética”, explicou Oksana Hryhoryeva.

Em 2014, segundo o Washington Post, 14 mil mulheres serviam no exército ucraniano, sendo 1582 destas oficiais. Em 2022, o número de militares femininas subiu para entre 20 mil e 50 mil, com cerca de 900 mulheres oficiais. Este número, contudo, é difícil de verificar, como explicou Jessica Trisko Darden, professora na Universidade Commonwealth da Virgínia e responsável pela publicação no jornal de Washington. Para a académica, embora o parlamento em Kiev pondere mudanças legislativas, as leis aprovadas em respeito à melhoria dos direitos das mulheres no exército “não deverão provocar mudanças radicais nas atuais políticas discriminatórias de género“.

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