Discurso de Ana Gomes no anúncio da candidatura
“Durante meses e meses esperei que o meu partido, o Partido Socialista, apresentasse um candidato próprio, saído das suas fileiras ou da sua área política.”
Ana Gomes tinha esta entalada, e foi logo a primeira mensagem que quis passar no seu discurso oficial de candidatura à Presidência da República: esperou, deu sinais de que estaria interessada, esperou, voltou a esperar e a única coisa que viu, em maio, foi o secretário-geral do PS (e primeiro-ministro) a estender o tapete à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa (ex-líder do PSD, para todos os efeitos), e a adiar o congresso socialista para o primeiro trimestre de janeiro, ou seja, para depois das presidenciais (por causa da pandemia, é certo). Vê-se e não se acredita, diz Ana Gomes, que não tem dúvidas de que, com ela ou sem ela, o PS não podia arredar-se deste debate e não pode vir a abdicar de ter um candidato próprio.
“Não compreendo nem aceito a desvalorização de um ato tão significante como a eleição para a Presidência da República. (…) Como pode o socialismo democrático não participar nesta eleição?”
É a mesma ideia, mas com uma tónica acrescida: o tom de António Costa sobre o tema das presidenciais. Isto viu-se no discurso político da rentrée socialista, em Coimbra, quando Costa deliberadamente desvalorizou as presidenciais na tríade de eleições que vão decorrer no ano que vem. Na altura, Costa disse com todas as letras que “o ano político vai ser muito exigente porque teremos três eleições, duas das quais decisivas para o PS”, as regionais nos Açores e as autárquicas do final do ano. Presidenciais, nem vê-las. O secretário-geral socialista já tinha feito o mesmo numa reunião da comissão política nacional do PS, em maio, logo a seguir ao famoso momento “Autoeuropa”, em que lançou Marcelo para um segundo mandato, dizendo que o PS devia focar-se no essencial e ignorar o acessório. O essencial era a resposta à crise, o acessório eram as presidenciais. Passaram-se quatro meses e a estratégia é a mesma. Para Ana Gomes é claro: sem descurar a governação e a resposta à crise pandémica, o espaço político do socialismo democrático não pode ficar vazio numa eleição como esta, e numa altura como esta, de crise tão grave e com ameaças à espreita.
“Espero, naturalmente, que o meu partido faça um debate democrático sobre uma questão essencial como é a eleição para a Presidência da República, e também confio que os militantes do meu partido saibam pensar pela sua própria cabeça.”
Começou logo a pés juntos, mas, na fase das perguntas dos jornalistas, foi ainda mais a fundo na crítica ao PS (ou melhor, a António Costa). Questionada sobre o silêncio do PS em relação à sua candidatura, Ana Gomes deu a entender que é o líder do PS quem está a limitar o debate interno sobre quem o partido deve, ou se deve, apoiar na corrida a Belém. Com ironia, disse que naturalmente espera que esse debate ainda venha a acontecer no seio do partido, que é um partido democrático (haverá uma reunião da comissão nacional até ao fim do ano), e naturalmente também espera — e confia — que os militantes do seu partido pensem pela sua própria cabeça, e não sejam meros “apparatchicks”, como chegou uma vez a apelidar Carlos César. A crítica estava feita. Se acha que o PS devia escolher o candidato que apoiará através de primárias internas, não o disse, mas talvez na sua cabeça estivesse a certeza de que, se assim fosse, os militantes iriam certamente preferi-la a ela do que ao candidato do PSD.
“Tenho recebido muitas e muitas mensagens de apoio e de encorajamento de militantes do PS para apresentar a minha candidatura e para me candidatar. De militantes e de dirigentes atuais do PS.”
Prova disso é esta frase-chave. Pode ser bluff, mas também pode ser a ideia de que os socialistas até a apoiam, em privado, e só não o dizem abertamente para não melindrar o ‘chefe’, que se tem mantido em silêncio. Ana Gomes diz que não só tem recebidos muitas mensagens de apoio por parte de militantes socialistas como também por parte de atuais dirigentes do partido — lá está, os que não querem furar a norma, já que o debate interno ainda não se fez dentro dos órgãos próprios do partido.
“Sabemos que forças anti-democráticas espreitam oportunisticamente, com desígnios autoritários que só podem trazer repressão e violência (…) Não podemos continuar a deixar empurrar cidadãos para as margens, enredados na conversa de falsos profetas ou na letargia da abstenção.”
Não disse uma única vez o nome de André Ventura (nem no discurso nem nas respostas aos jornalistas), numa aparente estratégia alinhada com a de Marisa Matias que ontem, na apresentação da sua candidatura, fez o mesmo. A socialista nem sequer respondeu a Ventura, que disse que se demitiria do Chega se Ana Gomes ficasse à sua frente na corrida. Ignorar para não valorizar. Mas, mesmo sem o referir, fez questão de dizer que pretende combater os falsos profetas, as forças anti-democráticas e com desígnios autoritários, que andam por aí à espreita, e a fazer uso da franja da população que se sente desiludida, marginalizada e excluída para se catapultarem. Ana Gomes diz reconhecer que o sistema está corroído, mas é por dentro que o quer mudar, envolvendo os cidadãos na democracia. Aprofundar a democracia, com transparência, é a sua palavra de ordem.
“Portugal precisa de uma Presidente que dê garantias de independência, que sirva o interesse nacional e não tenha medo de ir contra interesses instalados. (…) Uma Presidente que colabore com os governos sem se deixar condicionar ou ser refém de agendas partidárias.”
Ana Gomes também não disse o nome de Marcelo Rebelo de Sousa na fase inicial do discurso, que estava escrito, mas disse-o várias vezes quando respondeu aos jornalistas. Ana Gomes não tem problemas em elogiar Marcelo, de cujo mandato faz “um balanço positivo”, mas deixa aqui a entender que Marcelo é o político do sistema. O político do regime, que até já foi líder partidário. Também Marisa Matias é a candidata do BE, assim como o candidato do PCP será o candidato do PCP. Pelo contrário, a sua candidatura vai ser “verdadeiramente independente”. Segundo a candidata, o seu percurso pessoal e político fala por si: Ana Gomes quer fazer-se valer da ideia de que sempre disse o que pensava, para o bem ou para o mal, muitas vezes indo contra a corrente do seu próprio partido. Nunca teve medo de incomodar. Ou seja, não tem amarras partidárias — ao contrário de outros.
“Uma Presidente livre de compadrios e de comprometimentos, que se empenhe para que as instituições da República funcionem com meios adequados, com mais eficácia e transparência.”
Seria de esperar que o tema do combate à corrupção fosse a pedra de toque do seu discurso de lançamento da candidatura. É o velho cavalo de batalha de Ana Gomes, que se viu recentemente no caso do hacker Rui Pinto, mas é curioso verificar que Ana Gomes optou por não usar uma única vez a palavra “corrupção” no seu discurso. A ideia, contudo, está lá, quando diz que não é possível ignorarmos que uma parte do sistema “se deixou corroer, capturado por interesses financeiros, económicos e outros” e que será uma candidata livre de compadrios e de comprometimentos. Ana Gomes foi ao tema, mas não foi com espada e escudo em riste. Mais transparência, mais independência, mais integridade, mais democracia — a mensagem era esta.
“[Marisa Matias] é uma excelente candidata, é minha amiga e tenho a certeza que faremos ambas campanhas com elevação e norteadas por ideias e projetos.”
Vai ser um dos temas da corrida presidencial: Ana Gomes e Marisa Matias disputam um espaço político que se pode cruzar e vai ser curioso ver como as duas se vão posicionar. Marisa Matias, de resto, assumiu-se esta quarta-feira como “republicana, laica e socialista” numa referência às palavras que Mário Soares usava para se descrever a si próprio. Mas se já tinha elogiado Marcelo — e sublinhado que não se candidata “contra” ninguém, mas apenas a favor do país — Ana Gomes não teve qualquer problema em elogiar a eurodeputada bloquista, de quem é amiga. Mais à frente, questionada sobre se a dispersão dos votos à esquerda não iria beneficiar o extremo, neste caso André Ventura, Ana Gomes diria ainda que não se candidata para criar divisão, antes pelo contrário, candidata-se para “unir e federar”. Sendo certo que as funções do Presidente da República não são executivas — não governa nem lhe cabe a ela a tarefa de federar as esquerdas em torno de um projeto político —, pode estar na cabeça de Ana Gomes (e de Marisa Matias) a ideia de dividir para reinar. Ou seja, a soma dos votos à esquerda pode ser suficiente para obrigar Marcelo a ir a uma segunda volta e, nesse caso, a mais votada poderia apoiar a outra. Mas isso são outros quinhentos.