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A auditoria encomendada pela delegação dos eurodeputados socialistas aos alegados desvios do funcionário José Alberto Alves Pereira confirmou todos os dados noticiados em primeira mão pelo Observador. Mais: com base no acesso ao arquivo da delegação do PS no Parlamento Europeu (PE), descobriu um desvio total de fundos públicos claramente superior — cerca de 369 mil euros entre 2014 e 2016, revela o relatório ao qual o nosso jornal teve acesso.
Os auditores não só revelam no seu relatório o estado de total desorganização da contabilidade da delegação portuguesa da Aliança Progressista Socialistas & Democratas, como constatam a prática de fazer circular quantias em dinheiro vivo que ultrapassaram os 100 mil euros e descobriram que a agência de viagens com que os socialistas portugueses trabalhavam não emitiu faturas pelos seus serviços. Está em causa um valor de cerca de 914 mil euros em quase três anos e um possível esquema de alegada fraude fiscal que deverá ser investigado pelas autoridades belgas.
No mesmo período, mais concretamente em março de 2015, a direção nacional do PS solicitou aos seus eurodeputados e à delegação chefiada por Carlos Zorrinho ajudas financeiras para financiar campanhas eleitorais e, mais importante, para pagar despesas correntes do partido — nomeadamente a contratação de assessorias de comunicação, a realização de sondagens e até o pagamento de salários de funcionários a trabalhar no Largo do Rato. Tudo “num quadro de enormes limitações financeiras à atividade corrente do partido, bem como à preparação do próximo ato eleitoral”, lê-se num email enviado por Luís Patrão, secretário nacional para a Administração do PS, para os eurodeputados. E com conhecimento para o secretário-geral, António Costa.
Desvio de fundos em dinheiro vivo na delegação do PS no Parlamento Europeu investigado pelo DIAP
Questionado pelo Observador, Luís Patrão contrariou o que escreveu no email que dirigiu aos eurodeputados do PS e garantiu que nenhuma contratação foi feita. Certo é que a legislação europeia proíbe expressamente o financiamento de partidos nacionais por via de fundos públicos europeus. Há mesmo um caso paradigmático, relacionado com a Frente Nacional de Marine Le Pen, que em 2017 foi acusada de desvio de fundos públicos europeus pela OLAF — Agência Europeia Anti-Fraude por a delegação da FN no PE pagar os salários de funcionários daquele partido de extrema-direita que trabalhavam na sede em Paris.
Em declarações ao Observador, e depois de ser colocado a par da informação documental acima citada, João Paulo Batalha, presidente da ONG Transparência e Integridade, considera que o “uso de fundos do PE para financiar o funcionamento de um partido político nacional é uma clara violação da lei que rege os subsídios de apoio aos eurodeputados – e, nesse sentido, viola não só a lei europeia mas configurará um financiamento ilegal ao PS também à luz da legislação nacional”, afirma o presidente da Transparência e Integridade.
Uma auditoria para escrutinar o trabalho do Observador
A auditoria encomendada pela delegação socialista foi anunciada por Carlos Zorrinho ao Observador, logo após ter sido confrontado com as alegadas irregularidades protagonizadas por José Alberto Alves Pereira. Contudo, e após ter prometido que divulgaria publicamente o seu conteúdo, o relatório foi mantido em segredo por Zorrinho.
Por outro lado, a missão dos auditores da empresa belga RSM Audit teve contornos especiais:
- Os socialistas contrataram uma empresa de auditoria para fiscalizar o trabalho do Observador. “O foco da nossa missão está limitado às acusações que apareceram na imprensa portuguesa. O líder do grupo, responsável pela organização e pelo acompanhamento financeiro e administrativo dos grupos de visitantes é acusado neste artigo de falsificação de documentos, falsificação das assinaturas dos deputados e desvio de fundos”, lê-se no relatório da auditoria;
- Apesar de o Observador ter noticiado que existiam indícios de que os alegados desvios de fundos europeus estavam a ser praticados desde o final da década de 2000, os socialistas apenas pediram o escrutínio do período que vai “de setembro de 2014 a 31 de dezembro de 2016”;
- Finalmente, os auditores assumem à partida que a “verificação da acusação de falsificação de assinaturas está fora do escopo da nossa missão.” Isto é: como é próprio do trabalho de uma empresa de auditoria, foram cruzados os documentos do PE, da delegação portuguesa e da agência de viagens que foi contratada por Alves Pereira com os extratos bancários da delegação do PS;
- Os auditores, contudo, fazem questão de realçar que apenas trabalharam com “informações financeiras que nos foram fornecidas” e não “tiveram acesso aos documentos disponíveis no PE” (pois este órgão legislativo apenas permitiu a consulta dos documentos originais por parte dos eurodeputados), nem confirmaram “as transações por terceiros”, nomeadamente da agência de viagens.
Desvio de fundos no PS. Ana Gomes confirma que a sua assinatura foi falsificada
Os auditores descobriram três tipos diferentes daquilo a que chamam de “discrepâncias”. Isto é, fundos públicos atribuídos pelo PE mas que não entraram na conta da delegação do PS ou documentos falsificados para justificar a saída de fundos da delegação que não se sabe para onde foram. O total desse alegado desvio é significativo: 369.030, 72 euros.
De acordo com o relatório da RSM Audit, o primeiro grupo de irregularidades está concentrado nas viagens dos eleitores ao Parlamento Europeu por convite dos eurodeputados socialistas.
Beneficiando quer da ausência de fiscalização do PE, quer da delegação portuguesa e do próprio partido europeu onde o PS está integrado (a Aliança Progressista Socialistas & Democratas, também conhecido como S&D), Alves Pereira terá executado o seguinte processo de falsificação:
- Terá preenchido com os valores verdadeiros o respetivo formulário do PE que atesta o custo total do subsídio atribuído (o “Regie D’Avances Visiteurs”, que também costuma ser designado de ‘folha amarela’);
- E, numa segunda fase, terá falsificado a cópia que tinha de depositar na delegação portuguesa e enviar para o S&D.
Como?
- Na fotocópia da ‘folha amarela’ do PE que depositava na delegação portuguesa e enviava para o S&D, Alves Pereira falsificaria o valor da quilometragem, reduzindo o valor global do subsídio que foi efetivamente pago;
- A delegação do PS e o S&D ficavam, assim, com a informação errada de que, por exemplo, tinha sido pago 100, quando foram pagos 200;
- Resultado: alegadamente, Alves Pereira apropriar-se-ia da diferença recebida.
Assim, os auditores da RSM Audit descobriram que as “discrepâncias” entre os documentos apresentados no PE (a “Régie d’avances”) e as cópias depositadas na delegação atingiram o montante de 25.484, 32 euros. Isto é, esse montante foi recebido por Alves Pereira mas não foi declarado nos documentos depositados na delegação portuguesa.
Ou seja, a delegação do PS recebeu um total de 583. 140, 84 euros de fundos públicos do PE para as visitas dos eurodeputados mas Alves Pereira apenas declarou 557. 656, 52 euros na contabilidade da Delegação Portuguesa.
Um pormenor muito relevante: estes são valores que correspondem apenas a uma parte das viagens realizadas e pagas pelo PE. Isto porque a auditora apenas verificou uma amostra correspondente a 54% das viagens realizadas. Ou seja, não foram escrutinadas todas as viagens realizadas.
Recorde-se que o Observador tinha revelado que em apenas 12 das 48 viagens que foram realizadas entre 2014 e 2015, Alves Pereira teria alegadamente desviado cerca de 20 mil euros — mais concretamente, 18.148, 27 euros.
Delegação do PS informada em 2015 e 2016 do alegado desvio de fundos no Parlamento Europeu
O modus operandi do corta e cola
Eis um caso concreto relacionado com uma viagem de 26 eleitores convidados pela eurodeputada Ana Gomes. Alves Pereira preencheu uma “Declaração de Pagamento” nos serviços do PE onde registou querer receber o valor total do subsídio em numerário e não por transferência bancária: um total de 12.161, 24 euros. Depois de o grupo regressar a Lisboa, Alves Pereira preencheu um “Relatório de Viagem dos Visitantes ao PE” para a Delegação Socialista e para o Grupo S&D, apresentou uma cópia alegadamente falsificada da ‘folha amarela’ na qual terá recortado e colado diferentes números relativamente aos quilómetros das viagens e aos valores do subsídio concedido pelo PE por cada visitante. Assim, foram alterados os seguintes valores:
- A quilometragem total a partir de Lisboa, que antes era de “2043 km”, passou a “1964 km”;
- O valor por pessoa passou de “367,74 euros” para “353, 60 euros”;
- E o montante total do subsídio passou de “9.561, 24 euros” para “9.193, 50 euros”;
- Ou seja, há uma diferença do total dos dois documentos de 467, 74 euros.
A forma primária como este alegado processo de falsificação foi realizada evidencia, por outro lado, a ausência de controlo e de fiscalização que existia não só no próprio PE, como também na delegação portuguesa.
A agência de viagens que não passava faturas
Uma novidade importante da auditoria da RSM Audit prende-se com um segundo grupo de irregularidades relacionado com os orçamentos da agência de viagens belga Voyage Plus, com quem a delegação do PS trabalhava por escolha de José Alberto Alves Pereira — que está em Bruxelas desde 1999. De acordo com os documentos internos da delegação socialista na posse do Observador, e tal como já tínhamos noticiado, o funcionário socialista que também era o responsável financeiro da delegação aumentou artificialmente o orçamento da agência de viagens para justificar as transferências bancárias que realizaria para a Voyages Plus — mas, na realidade, o valor que transferia era inferior ao orçamentado. Os auditores não conseguiram perceber o que aconteceu à diferença.
Além de confirmarem esses dados, os auditores da RSM Audit afirmam textualmente no seu relatório que, após terem contactado os responsáveis da Voyage Plus, confirmaram que os pagamentos à agência de viagens eram “feitos com base num e-mail genérico com menção do valor a ser pago”. Mais: “De acordo com a agência de viagens, nenhuma fatura foi emitida, nem foram conhecidos documentos justificativos”, já que José Alberto Alves Pereira “não os pediu”.
Isto é, e tal como o Observador constatou nos documentos a que teve acesso em novembro de 2018, os emails enviados e recebidos da agência de viagens têm como “subject” (assunto em inglês) o termo “fatura” mas, obviamente, não representam formalmente uma faturação.
A delegação do PS terá, assim, pago um total de cerca de 914 mil euros entre setembro de 2014 e 31 de dezembro de 2016 à Voyage Plus sem que esta alegadamente tivesse emitido qualquer fatura. Ao que o Observador apurou, os auditores da RSM Audit informaram Carlos Zorrinho, chefe de delegação, e outros eurodeputados do PS, numa reunião expressamente convocada para o efeito, que a delegação portuguesa estava exposta a um eventual processo por fraude fiscal por parte das autoridades belgas devido a esses factos.
Questionado sobre se enviou o relatório da auditoria para a Administração Fiscal e para a Justiça do Reino da Bélgica, tendo em conta que a alegada evasão fiscal terá ocorrido em Bruxelas e com uma empresa belga, Carlos Zorrinho limitou-se a responder: “tratando-se de fundos do Parlamento Europeu, a auditoria foi remetida para o Presidente do Parlamento Europeu e ao DIAP [de Lisboa].” Isto é, Zorrinho não comunicou a situação nem ao fisco nem à justiça belga.
No que diz respeito à agência de viagens, contudo, a história não acaba aqui. Os auditores concluíram ainda que as “discrepâncias” provocadas por Alves Pereira para o mesmo período foram as seguintes:
- As cópias dos orçamentos da agência alegadamente falsificadas pelo funcionário da delegação atingiram um valor total 1.088.611, 86 euros, quando o orçamento verdadeiro era menor;
- O valor que a delegação transferiu realmente para agência foi de apenas 914.960, 37 euros;
- Ou seja, há uma diferença de 173.651,49 euros — que terá servido para justificar saídas de dinheiro da delegação do PS. Para onde? A auditoria da RSM Audit não clarifica.
De acordo com o relatório, os responsáveis da Voyage Plus terão garantido que Alves Pereira terá ainda feito “ocasionalmente” pagamentos totais em dinheiro vivo de 125.893, 07 euros — o que, a ser verdade, faria com que as “discrepâncias”, mesmo assim, atingissem os 47.758, 42 euros.
Contudo, os auditores da RSM Audit escrevem no relatório que, “devido à falta de comprovativos, não (…) levamos em consideração” os referidos pagamentos em dinheiro, daí que a diferença de 173.651,49 euros seja a que é considerada mais credível. Aliás, no quadro inscrito no relatório da auditoria relativo aos movimentos entre a delegação e a agência de viagens, os “payment en cash” (pagamentos em dinheiro) têm um sintomático ponto de interrogação.
A circulação de dinheiro vivo e a confusão patrimonial entre a delegação e Alves Pereira
Finalmente, o terceiro grupo de alegadas irregularidades prende-se com a circulação em dinheiro vivo que existia na delegação dos socialistas portugueses por via de José Alberto Alves Pereira. Tal como o Observador já tinha informado no primeiro trabalho publicado em novembro de 2018, as regras do PE permitiram até 31 de dezembro de 2016 aos chefes de grupo [os responsáveis de cada delegação ou representante de eurodeputado por cada viagem dos eleitores] levantar em dinheiro vivo o subsídio atribuído pelo órgão legislativo da União Europeia. Depois daquela data, passou a ser obrigatório o pagamento via transferência bancária — um procedimento que deveria ser obrigatório há (muito) mais tempo, tendo em conta a legislação europeia imposta às instituições financeiras contra o branqueamento de capitais.
Para receber o subsídio em notas, bastava a Alves Pereira repetir (como repetiu) os passos iguais aos que tomou no dia 6 de novembro de 2014:
- Apresentou-se no PE com um grupo de 26 visitantes convidados pela eurodeputadoa Ana Gomes;
- Foi recebido por um funcionário do PE que confirmou o número e a identidade dos visitantes;
- Antes da sessão de esclarecimento organizada por Ana Gomes, Alves Pereira dirigiu-se aos serviços financeiros do PE, assinou a a “régie d’avance” (a folha amarela) onde constam todos os valores que a União Europeia subsidia e preencheu uma “Declaração de Pagamento” onde registou querer receber o valor total do subsídio em numerário — e não por transferência bancária. E declarou ainda que o “montante do subsídio pago pelo PE não excede o custo real da visita”;
- Com todos os documentos devidamente autorizados, deslocou-se à agência bancária que trabalhava com o PE e levantou o respetivo subsídio em “cash”.
Foi devido a este método, repetido dezenas de vezes, que os auditores da RSM asseguram que “um montante de 125.893,07 parece ter sido pago em dinheiro [vivo]” a Alves Pereira no período entre o segundo semestre de 2014 e o final de 2016.
Segundo o relatório, a delegação do PS recebeu naquele período cerca de 1.110.523, 50 de euros mas, constataram os auditores, nas contas bancárias da representação dos eurodeputados socialistas portugueses apenas entrou o valor de 940.628, 89 euros. Isto é, há uma diferença de 169.984.61 euros para os quais a RSM Audit não encontra explicação. Apenas diz que, desse valor, cerca de 125 mil euros foi pago em dinheiro vivo pelo PE a Alves Pereira.
Mas acrescentam que “não há contabilidade detalhada de todos os movimentos” e alertam: “Muitas transações em dinheiro tornam a monitorização e as conclusões difíceis ou impossíveis.”
Tendo em conta a circulação destes montantes em dinheiro vivo, os auditores afirmam “que a confusão patrimonial” entre as contas de José Alberto Alves Pereira e as da delegação do PS “era possível”. Sem quererem constatar qualquer desvio de fundos públicos europeus por parte do funcionário da delegação, porque tal matéria não fazia parte da sua missão, esta é a forma escolhida pelos auditores para abordarem esse tema.
O pedido de ajuda de “emergência” da direção nacional do PS
Durante o período que esteve sob escrutínio da RSM Audit — setembro de 2014 a 31 de dezembro de 2016 –, o PS viveu tempos de “emergência” financeira. As palavras são de Luís Patrão e estão escritas num email que o secretário nacional da Administração do PS enviou no dia 11 de março de 2015, às 15h29m, para a caixa de correio de Carlos Zorrinho, com conhecimento para o “Secretário Geral” [António Costa] e para os eurodeputados “Francisco Assis, Maria João Rodrigues, Elisa Ferreira, Ricardo Serrão Santos, Ana Gomes, Pedro Silva Pereira e Liliana Rodrigues”.
Era uma altura em que o PS tinha um passivo de 10 milhões de euros — uma herança que em boa parte se devia ao consulado de José Sócrates, que tinha deixado um passivo de 7 milhões para o seu sucessor, António José Seguro.
O envio desse email, ao qual ao Observador teve acesso, teve como pressuposto “informação transmitida pelo secretário-geral [António Costa] sobre o resultado de uma reunião com os deputados socialistas ao PE” e tinha como principal objetivo “recolocar a questão do apoio material e financeiro ao partido por parte dos parlamentares eleitos pelo PS, num quadro de enormes limitações financeiras à atividade corrente do partido, bem como à preparação do próximo ato eleitoral.”
Entre os vários temas de ajuda que Patrão faz questão de abordar está uma “Verba para Assessorias e Contratações”. Isto porque o PS tinha a expetativa de “poder contar com a disponibilidade de um valor que ronde os 10% da verba disponibilizada a cada deputado [do PE], à razão de 2.100 euros por deputado e por mês”. Ou seja, um total de 168 mil euros mensais.
O homem que já foi chefe de gabinete de António Guterres e de José Sócrates (de quem é amigo próximo), informa os eurodeputados a quem enviou o email que tais fundos serviriam para contratar para o PS os seguintes serviços:
- “Assessoria Estratégica de Comunicação (4.500 euros/mês, mais IVA)”;
- “Estudos de Inquérito de Opinião” (média mensal de 3.500 euros + IVA) “que tanto poderão servir aos deputados europeus como ao partido em si”.
Como outras questões, Luís Patrão mencionou o despedimento de Paulo Afonso, “colaborador da Delegação Portuguesa do PE mas a prestar serviço no PS junto do secretário nacional para as Relações Internacionais”. De acordo com Luís Patrão, o secretário nacional para as Relações Internacionais “colocou a questão da continuidade em funções do referido técnico na sede do PS, tendo decidido pela sua dispensa.” Assim, Patrão informou Carlos Zorrinho e os restantes eurodeputados que o PS tinha a “intenção de proceder à contratação, em moldes idênticos aos vigentes, de uma outra colaboradora para o Departamento de Relações Internacionais do PS, cujos elementos de identificação serão transmitidos à Delegação dos Socialistas Portugueses ao PS logo que aceite esta substituição”.
Ou seja, a direção nacional liderada por António Costa, de acordo com o que Luís Patrão escreveu no seu email, não só pretendia adquirir serviços para a atividade corrente do PS com fundos públicos europeus, como afirmou que um colaborador pago pela delegação do PS no PE encontrava-se “a prestar serviço no PS no junto do secretário nacional para as Relações Internacionais.”
Na mesma missiva de correio eletrónico, Luís Patrão insistiu igualmente com uma alegada contribuição de 100 mil euros que a direção nacional de António José Seguro teria acordado com os deputados para a campanha eleitoral de 2014. Na realidade, apenas Francisco Assis (o cabeça-de-lista em 2014) contribuiu com 10 mil euros, conforme Luís Patrão confirmou ao Observador. Tal quantia acabou por ser “registada em Agosto de 2015 “como Contribuição de Eleito ao Partido, nos termos legais”, esclareceu Patrão.
Lei da UE proíbe financiamento a partidos nacionais com fundos públicos europeus
A legislação europeia proíbe expressa e claramente qualquer tipo de utilização de fundos europeus para financiar partidos nacionais. De acordo com o artigo 22.º do Regulamento n.º 1141/2014 do PE e do Conselho Europeu, intitulado precisamente “Proibição de Financiamento”, o “financiamento dos partidos políticos europeus a partir do orçamento geral da União Europeia ou de qualquer outra fonte não pode ser utilizado para financiar direta ou indiretamente outros partidos políticos, nomeadamente os partidos nacionais ou os respetivos candidatos.”
O mesmo diz o ponto 9 do Regulamento n.º 1142/2014 do PE e do Conselho Europeu, onde se repete que o “financiamento da União concedido para financiar os custos de funcionamento dos partidos políticos europeus não deverão ser utilizados para outros fins (…), em especial para financiar, direta ou indiretamente, outras entidades como os partidos políticos nacionais.”
Recorde-se que a delegação do PS é financiada pela Aliança Progressista Socialistas & Democratas — grupo parlamentar do qual o PS faz parte e que está ligado ao Partido Socialista Europeu. As verbas que são disponibilizadas aos eurodeputados para a contratação de assessores, por seu lado, são disponibilizados pelos próprio PE. Quer no caso da delegação, quer no caso dos eurodeputados, o financiamento é sempre feito com recurso a fundos públicos europeus.
Confrontado por escrito pelo Observador com o teor deste email, Luís Patrão afirmou que “não houve nenhuma verba especificamente destinada a assessorias e contratações (…) que tenha sido concedida na sequência do pedido feito em 2015“, rejeitando igualmente que alguma “colaboradora” tenha sido “contratada para o Departamento de Relações Internacionais, na sequência da correspondência interna ora divulgada ao Observador”. Carlos Zorrinho corrobora as declarações de Patrão: “Não ocorreu nenhuma contratação.”
Patrão tenta contradizer igualmente o que escreveu sobre Paulo Afonso “estar a prestar serviço no PS junto do secretário nacional para as Relações Internacionais” e afirma ao Observador que “o técnico Paulo Afonso (que é simultaneamente militante e dirigente local do partido) desempenha em Lisboa, desde há muitos anos, funções de apoio aos deputados socialistas europeus, funções essas que nunca foram interrompidas ao longo da legislatura que ora termina”.
Questionado sobre se esse pedido respeita a legislação europeia no que diz respeito à utilização de fundos públicos europeus no financiamento de partidos nacionais, o secretário nacional para a Administração diz que continua “a reconhecer nessa proposta a maior racionalidade política e económica, bem como adequada cobertura legal.”
Carlos Zorrinho nega utilização de fundos públicos europeus. “Apenas donativos pessoais”
Carlos Zorrinho rejeita que o PS tenha sido financiado com fundos públicos europeu. Questionado pelo Observador sobre se a intenção manifestada por Luís Patrão de contar com um apoio mensal de 2.100 euros por mês e por eurodeputado respeitava a lei da União Europeia — que proíbe expressamente o financiamento de partidos nacionais com fundos da União Europeia –, o chefe da delegação do PS diz que “não foram canalizados fundos públicos europeus. Apenas donativos pessoais.”
Quanto à contribuição de 100 mil euros para para a campanha eleitoral das europeias de 2014 solicitado por Luis Patrão aos eurodeputados socialistas, Zorrinho diz que “face a um apelo normal de apoio num momento de dificuldade financeira do partido, cada eurodeputado decidiu individualmente sobre se entendia contribuir e como. As decisões foram diferentes e pessoais”, explicou. No seu caso, Zorrinho diz que cumpriu “uma vontade prévia de fazer um donativo mensal para o Partido respeitando os termos legais”.
O chefe da delegação omite o valor da sua contribuição. Na documentação interna do PS a que o Observador teve acesso, é claro que a tesoureira da Delegação do PS no Parlamento Europeu, a eurodeputada Liliana Rodrigues, comunicou a Luís Patrão em 2015 que alguns eurodeputados, como Francisco Assis e Carlos Zorrinho, iriam contribuir mensalmente com um valor de 500 euros para o PS — um aumento de 250 euros face ao que anteriormente davam ao partido.
Já Francisco Assis dá uma explicação substancialmente diferente sobre esta situação. Sobre pedido de contribuição de 100 mil euros, Assis diz que “depois de ocorridas as eleições europeias de 2015, em data que não consigo precisar”, tal questão foi colocada aos oito deputados eleitos pela direção de António José Seguro. “Dado que entretanto se entrou num processo eleitoral interno o assunto não teve seguimento”, explica Assis.
Mais tarde, Luís Patrão, confirma Francisco Assis, insistiu com a situação — como demonstra o email acima citado. “Na verdade esse compromisso nunca foi firmado e a anterior direção terá alicerçado a convicção genuinamente formada acerca da sua existência num mal entendido. Os deputados apenas se haviam comprometido a dar uma determinada contribuição financeira mensal, coisa que todos efetuaram desde a primeira hora“, diz. Isto é, e ao contrário do que diz Zorrinho, o donativo mensal de 500 euros não partiu da vontade individual do chefe da delegação, mas sim de um compromisso coletivo.
Já quanto à contribuição de 100 mil euros para financiar despesas de campanha, Francisco Assis entendeu fazer “um outro donativo de natureza excecional no valor de 10 mil euros.” Tudo porque entendeu que tinha “responsabilidades políticas e morais acrescidas pela circunstância de ter encabeçado a lista” e “por um imperativo de consciência num momento em que o partido atravessava uma grave crise financeira. Esse donativo foi feito com absoluta transparência e em integral respeito pela legislação em vigor”, assegura.
ONG denuncia violação das regras de financiamento partidário
O Observador contactou a Transparência e Integridade, uma ONG que está ligada à Transparência Internacional, com sede em Bruxelas, para perceber se os factos acima revelados constituem violação das regras europeias. João Paulo Batalha, presidente da ONG portuguesa, não tem dúvidas de que “0 uso de fundos do PE para financiar o funcionamento de um partido político nacional é uma clara violação da lei que rege os subsídios de apoio aos deputados do PE – e, nesse sentido, viola não só a lei europeia mas configurará um financiamento ilegal ao PS também à luz da legislação nacional”.
Confrontado com os factos acima referidos, nomeadamente com as intenções manifestadas por escrito por Luís Patrão, e após consulta aos seus colegas da Transparência Internacional sediados em Bruxelas que acompanham o PE, João Paulo Batalha explica ao Observador que os fundos do órgão legislativo da União Europeia “não podem ser usados para fornecer trabalhadores a custo zero para funções partidárias nacionais, sem ligação ao mandato europeu”, acrescentando que, além de ser uma violação da lei, este alegado “desvio de fundos, ou a mera tentativa de desviá-los, é uma violação da própria dignidade do PE e mostra uma cultura que coloca o partido acima das instituições democráticas para as quais esse partido foi eleito. Os deputados eleitos pelo PS existem para servir o PE e os cidadãos da UE, não é o PE (pago pelos cidadãos da UE) que existe para servir o PS através de alegados financiamentos ilegais”, afirma.
Chamando a atenção de que também em Portugal é prática habitual a “promiscuidade absoluta” entre os fundos disponibilizados pela Assembleia da República e o seu desvio para financiar os partidos políticos, João Paulo Batalha constata igualmente que “continuam a faltar controlos eficazes por parte do PE sobre a forma como são usados muitos destes fundos.” Do ponto de vista prático, tais subsídios representam uma “forma de engordar monstruosamente o salário pessoal dos eurodeputados, ou permitir o desvio destas verbas para financiamento ilegal dos partidos. O PE devia garantir que estes subsídios de apoio aos gabinetes são pagos para uma conta à parte, e não postos no bolso do eurodeputado, e só são gastos contra faturas”. Se não, o órgão legislativo da União Europeia “cria um quase incentivo ao seu mau uso por parte dos deputados.”
É por isso que a rede da Transparência Internacional, da qual a Transparência e Integridade faz parte, está a pedir “aos candidatos às eleições europeias que se comprometam com um conjunto de obrigações de transparência, começando por publicar o destino que dão aos subsídios de apoio ao gabinete e à contratação de pessoal”. “Não podemos continuar a viver na total opacidade, que só alimenta a ideia tóxica de que o PE é uma central de enriquecimento indevido dos deputados e dos partidos políticos”, conclui.
A evolução na reação de Alves Pereira: do mea culpa para o todos sabiam
Uma coisa é certa: José Alberto Alves Pereira garantiu aos auditores, numa declaração escrita que constitui um dos anexos da auditoria, que todos os eurodeputados socialistas sabiam o que se passava. A sua “linha de conduta”, diz, “foi reiterada e confirmada sucessivamente pelos sucessivos chefes de delegação e aceite sem objeção pela generalidade dos senhores deputados, sempre que o assunto foi debatido nas reuniões da delegação.”
Alves Pereira justificou a “receção dos pagamentos em dinheiro [vivo]” com os “critérios flexíveis aplicados” e “ajuda mútua geralmente conhecida.”
PS envia auditoria sobre alegado desvio de fundos no Parlamento Europeu para o DIAP de Lisboa
Além disso, diz o funcionário da delegação do PS, foram obtidos “resultados muito positivos (que nunca foram contestados nem pelo chefe da delegação nem pelos deputados)”, enfatiza.
Alves Pereira, contudo, diz que é “tecnicamente responsável pelas ‘irregularidades’ que essa filosofia de gestão pode ter gerado” e não deseja “compartilhar com ninguém (por motivos pessoais e políticos) esse tipo de responsabilidade.”
Trata-se de uma posição diferente daquela que tinha manifestado ao Observador em novembro de 2018, onde tinha sido omisso em relação aos conhecimento e aprovação dos eurodeputados socialistas mas onde fez uma espécie de mea culpa: “Admito que nos registos internos da Delegação relativos aos referidos grupos de visitantes (…) não tivesse cumprido com os princípios gerais da contribuição financeira, tal como definido nos regulamentos financeiros.”
Aos auditores da RSM Audit, Alves Pereira justificou que o regime existente era um regime fortefário e, como se observou, “a lei aplicável continha falhas que dificultavam o cumprimento das suas regras tendo em vista a diversidade das viagens e as soluções propostas pelos honoráveis deputados”. Por isso mesmo, o funcionário da delegação do PS encontrou “soluções administrativas” que “permitissem ter em conta de forma satisfatória a diversidade das viagens”. Daí ter criado “um sistema flexível, que permitiu a circulação de fundos do PE (que foram estritamente respeitados) entre diferentes viagens. Quando havia saldos, esses valores foram canalizados além do tempo para as despesas inevitáveis da delegações e dos seus membros.”
MP extrai certidão para investigação continuar na Bélgica
Entretanto, o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, que estava a investigar os alegados desvios de fundos na delegação do PS no PE, declarou-se incompetente em termos jurisdicionais e decidiu enviar certidão dos autos relacionados com a alegada apropriação de fundos públicos europeus por parte de Alves Pereira para a Bélgica. A procuradora adjunta Andreia Marques alega que os supostos crimes terão sido praticados em Bruxelas.
Na prática, e durante quase um ano, nenhuma diligência de investigação foi concretizada — até porque a Polícia Judiciária (PJ) alegou, por várias vezes e de forma fundamentada, falta de recursos humanos. Nem as notícias do Observador foram juntas aos autos — uma prática comum seguida pelo Ministério Público e pela PJ quando estão em causa factos relevantes que podem ser considerados auto de notícia.
O inquérito foi aberto no dia 6 de março de 2018 na 9.ª Secção do DIAP de Lisboa, após ter sido rececionada em fevereiro uma denúncia anónima via plataforma de denúncias da Procuradoria-Geral da República. Na mesma, Carlos Zorrinho e dois assessores da delegação do PS no PE (Ricardo Pires e João Cruz) eram indicados como testemunhas privilegiadas no processo do alegado desvio financeiro e das falsificações de assinaturas dos eurodeputados Ana Gomes e Liliana Rodrigues alegadamente protagonizados Alves Pereira. Pires e Cruz partilhavam a mesma sala com Alves Pereira.
Nos autos consultados pelo Observador no DIAP de Lisboa, é claro que, além de não terem sido feitas diligências, apenas uma testemunha foi chamada a depor: Carlos Zorrinho, o chefe da delegação do PS. Nem João Cruz, nem Ricardo Pires foram ouvidos pela procuradora adjunta Andreia Marques.
Recorde-se que Ricardo Pires, ex-assessor de imprensa na delegação do PS, tinha afirmado ao Observador que reportou as alegadas práticas ilícitas de Alves Pereira “internamente por duas vezes, entre 2015 e 2016, a um responsável da delegação do PS no Parlamento Europeu” (PE). A denúncia entregue na PGR em fevereiro de 2018 refere igualmente que as irregularidades atribuídas a Alves Pereira eram do “conhecimento de várias pessoas na delegação dos eurodeputados socialistas”.
Certo é que, durante a inquirição realizada a Carlos Zorrinho a 11 de janeiro de 2019, este responsável não foi confrontado com essa matéria. As perguntas colocadas pela procuradora Andreia Marques seguiram sempre um rumo relacionado com a possível extração de certidão de uma parte da investigação para a Bélgica.
Zorrinho, por seu lado, fez questão de afirmar que a “Delegação Portuguesa [do PS] não sofreu qualquer prejuízo patrimonial”, chegando mesmo a atacar a credibilidade de Ricardo Pires, que tinha denunciado o caso a um responsável da delegação, porque “pretendia auferir um montante superior” ao salário de Alves Pereira, “não tendo a delegação acolhido tal pretensão.”
Assim, depois da inquirição de Carlos Zorrinho, e sem que a auditoria ordenada à RSM Audit estivesse concluída, a procuradora adjunta Andreia Rodrigues ordenou extração dos autos que dizem respeito aos crimes de peculato e burla por os “factos criminalmente relevantes” terem ocorrido “em território belga” e por não se verificar nenhuma das “cláusulas de extensão da jurisdição portuguesa” permitidas pelo Código Penal. Nomeadamente, o facto de Alves Pereira não residir em Portugal nem poder ser localizado em território nacional.
Artigo atualizado às 16h38 e às 17h03 de 17 de maio com declarações dos eurodeputados Carlos Zorrinho, chefe da delegação do PS no Parlamento Europeu, e de Francisco Assis.