A reunião deste domingo, que se prolongou pela madrugada dentro, resultou numa aproximação de posições entre o Ministério da Saúde e os sindicatos médicos. Numa reunião com vários momentos de tensão, o governo cedeu, ainda que exigindo uma aplicação faseada, em duas das três medidas exigidas pelos sindicatos — na diminuição da carga horária semanal das 40 para as 35 horas e na redução do número de horas semanais no serviço de urgência (de 18 para 12). No entanto, há um ponto que continua a bloquear um possível acordo: a revisão da grelha salarial dos médicos.
Numa reunião descrita ao Observador por um elemento que esteve presente como “tensa e difícil”, e que terminou já depois das duas da manhã, o governo não foi ao encontro das pretensões dos sindicatos no que diz respeito à atualização das grelhas salariais. Tanto a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) como o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) exigem um aumento salarial transversal de 30% para todos os médicos, que compense, argumentam os sindicatos, o poder de compra perdido ao longo da última década. O aumento, que os sindicatos admitem poder ser faseado ao longo dos próximos três anos (o período que resta da legislatura), implicaria um aumento salarial anual de pelo menos 10% por ano para todos os médicos, a começar já em 2024.
No entanto, como o Observador avançou na sexta-feira, o Ministério da Saúde não irá “muito mais além” do que propôs, ou seja, um aumento transversal de 5,6% para todos os médicos, praticamente metade daquilo que é exigido pelos sindicatos. “Neste momento, é o principal aspeto que impede o acordo. O governo continua a colocar em cima da mesa um aumento de cerca de 5% do salário-base. A proposta dos sindicatos não é maximalista, permitimos que seja um aumento faseado”, diz ao Observador o secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha, ressalvando que, “se os sindicatos assinarem um acordo no qual os médicos não se revejam, não adianta colocar lá nem dez assinaturas”.
O responsável pede ao ministro das Finanças, Fernando Medina, e ao primeiro-ministro, António Costa, que tenham “sensibilidade para perceber que sem médicos não é possível ter um SNS que responda às necessidades dos portugueses”. “Há uma grande insensibilidade do ministro das Finanças, que está mais interessado nas palmadinhas nas costas de Bruxelas do que numa solução para os médicos”, realça Roque da Cunha.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” com o relato do que é hoje ser médico.
https://observador.pt/programas/a-hist-ria-do-dia/ser-medico-ja-nao-e-uma-profissao-de-sonho/
Sem aumento salarial que “reponha poder de compra”, “dificilmente haverá acordo”
Ao Observador, a presidente da FNAM, que descreve um “debate aceso” na reunião deste domingo, confirma também que a divergência entre as partes na questão da revisão da grelha salarial é o principal ponto que está a impedir um acordo. “Temos este ponto a bloquear o acordo. Não nos foi apresentada qualquer proposta, o governo continua a propor o mesmo [um aumento transversal de 5,6%]”, lamenta diz Joana Bordalo e Sá, lembrando que os sindicatos “pedem uma atualização do salário-base em 30%, que é apenas uma reposição do poder de compra que os médicos perderam na última década, desde o período da troika”.
A responsável admite que, se o governo não se aproximar do aumento salarial exigido, “dificilmente haverá acordo”. “Os médicos portugueses são dos mais mal pagos da Europa e têm de ser recompensados pelo seu grau de responsabilidade”, afirma.
Neste momento, este é ponto que está a bloquear um acordo entre as duas parte, embora, nos outros dois pontos sobre os quais se debruçaram as negociações (a questão das 35 horas semanais e a diminuição do serviço na urgência), persistam diferenças que “têm de ser limadas”, como admitiu o próprio ministro da Saúde, à saída da reunião de nove horas. O mesmo confirmou a presidente da Federação Nacional dos Médicos.
Ministério deixou cair contrapartidas para redução do horário semanal: 38 horas já em 2024
Na reunião deste domingo, o Ministério da Saúde deixou cair as contrapartidas que estavam plasmadas na contraproposta enviada aos sindicatos no sábado. Assim, no que diz respeito à diminuição da carga horária semanal dos médicos das 40 para as 35 horas, o Ministério da Saúde deixou de exigir (em troca da redução da carga horária semanal) o fim do descanso compensatório depois de um período de trabalho noturno. Outra exigência, da qual o Ministério da Saúde desistiu, foi a aplicação da redução horária primeiro aos médicos do serviço de urgência e depois aos restantes. “Houve uma abertura para que todos os médicos vejam o seu horário reposto, ao mesmo tempo, nas 35 horas”, confirma Joana Bordalo e Sá.
Assim, mantêm-se o descanso compensatório depois do trabalho noturno (“para bem dos médicos e dos utentes”, sublinha Jorge Roque da Cunha) e a redução da carga horária semanal vai ser aplicada a todos os médicos, ainda que de forma faseada. Segundo Jorge Roque da Cunha, em cima da mesa está uma diminuição para as 38 horas semanais já em 2024, sendo que, em 2025, os médicos terão um horário-base de 35 horas semanais.
No que diz respeito ao tempo de trabalho semanal no serviço de urgência, a tutela concordou em diminuir, de forma faseada, o tempo que cada médico tem de dedicar a este trabalho — de 18 para 12 horas.
“A reposição das 12 horas de urgência vai fazer com que os médicos tenham mais tempo para fazerem cirurgias e consultas, reduzindo o recurso dos utentes aos serviços de urgência”, diz Joana Bordalo e Sá.
Horas na urgência diminuem mas sindicatos garantem que serviços não ficam “desguarnecidos”
Num primeiro momento, em 2024, haverá uma redução para as 16 horas semanais. Para ir ao encontro da preocupação do Ministério da Saúde, que quer salvaguardar o funcionamento dos serviços de urgência, os sindicatos aceitaram manter os turnos de 24 horas na urgência. “Damos a garantia de que os médicos hospitalares continuarão a fazer turnos de 24 horas de urgência. Neste momento, fazem 18 horas obrigatórias e seis extraordinárias. No próximo ano, terão 16 horas do horário e oito extraordinárias”, diz o secretário-geral do SIM, acrescentando que, desta forma, os serviços de urgência não ficarão “desguarnecidos”.
Neste ponto, o da redução do trabalho na urgência, o Ministério da Saúde quer garantir que a medida não implicará um aumento “da dependência do SNS da realização de trabalho em horas extraordinárias e em regime de prestação de serviço”. Para a presidente da FNAM, essa questão não se coloca, uma vez que a diminuição da carga horária na urgência vai atrair e reter médicos para o SNS, aumentando os recursos humanos disponíveis. “Só conseguimos atrair esses médicos com um horário de trabalho digno e um salário justo”, reforça.
A presidente da FNAM mostra-se, no entanto, cautelosa e sublinha que “todas estas propostas terão de ser vertidas num documento escrito e sem artimanhas”. Segundo Joana Bordalo e Sá, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, comprometeu-se a enviar a contraproposta, que será discutida na reunião de terça-feira, ainda esta segunda-feira.
Para as 14h30 de amanhã está marcada nova ronda negocial, numa altura em que quase quatro mil médicos já entregaram as minutas de escusa ao trabalho extra para além das 150 horas anuais. “Novembro está à porta e temos encerramento de serviços de urgência em todo o país”, recorda Joana Bordalo e Sá, acrescentando que “o governo é responsável por tudo o que de mau venha a acontecer”.