Índice
Índice
“A situação na Ucrânia é, neste momento, melhor do que a do Partido Popular, porque ali não há armamento nuclear.” Poucas frases resumirão tão bem o que se passa dentro do maior partido político da direita em Espanha do que as palavras de José MaríaAznar, que liderou o PP e o Governo espanhol no final dos anos 1990 e até 2006. No rescaldo de um dia de intrigas e guerra interna, resta saber quem vai sofrer mais: Pablo Casado, líder do partido, Isabel Díaz Ayuso, presidente do governo de Madrid, ou o próprio PP que, em breve, enfrentará eleições antecipadas na Andaluzia.
A quinta-feira foi um dia de queda de morteiros, 24 horas depois de as primeiras notícias terem começado a ser divulgadas: a direção nacional do PP de Espanha está a investigar, desde outubro, o governo regional de Madrid, liderado por Ayuso. Motivo: um contrato público de um milhão e meio de euros, para compra de máscaras no início da pandemia, onde o irmão da política espanhola terá sido beneficiado por facilitar o negócio. Justificação: manter a transparência dentro dos governos regionais liderados pelo partido.
O problema é que as notícias terão causado mais mal do que bem e é o próprio partido, que estava em ascensão desde a vitória histórica de Ayuso em Madrid, que poderá acabar prejudicado.
Na sua análise aos acontecimentos de quinta-feira, o jornalista espanhol Carlos Alsina, várias vezes premiado, ironiza no seu programa de rádio: “O relatório dos bombeiros, ou dos canalizadores, não sei, revela que após o incêndio de morteiro ocorrido ontem há danos estruturais que comprometem seriamente o edifício. Ou seja, o PP entra em colapso. Em vez de vender o Genóva 13 [sede do partido], explodem-no.”
No fim só poderá sobreviver um. Será Ayuso ou Casado?
“Como não recordar esta manhã ‘Os Imortais’? O filme. Eles pensavam que eram imortais, mas só podia sobrar um. Ou uma. Vamos ver quem sai”, diz Carlos Alsina, numa referência à popular série televisiva dos anos 1980 em que um grupo de humanos imortais tinha de ir matando todos os outros (que tal como zombies, só morriam se lhes fosse cortada a cabeça) até restar apenas um.
Para o politólogo português Diogo Noivo, depois das explicações de Ayuso desta sexta-feira, feitas pouco depois das declarações de Casado — que assumiu ter tido acesso a informação fiscal que nunca lhe deveria ter passado pelas mãos —, é o líder do PP que corre maior risco de se afundar em areias movediças.
“Se Casado não conseguir responder ao comunicado de Ayuso, cai. É o seu fim político”, vaticina Diogo Noivo.
Nesse comunicado, Isabel Díaz Ayuso reconhece que o seu irmão recebeu dinheiro na sequência de um negócio de venda de máscaras ao seu governo, mas desmente algumas das alegações de Casado. O valor é muito inferior àquele que foi apontado: terão sido 55.850 euros e não perto de 300 mil e não se tratou de uma comissão, mas antes de honorários recebidos por ter gerido negociações relacionadas com a vinda de material do mercado asiático. “Do resto das faturas [mais três], não tenho de dar conta porque não têm relação com o Governo de Madrid e o meu irmão tem direito à sua privacidade”, escreve.
Ayuso faz ainda questão de salientar que as máscaras em causa foram vendidas a 5 euros, numa altura que chegavam a atingir os 10,5 euros. Um detalhe que não é de somenos importância. “O que ela diz com aquela nota é que numa altura em que faltavam máscaras em todo o lado, o seu governo conseguiu negociar e arranjar material a um preço melhor do que o Governo de Pedro Sánchez”, argumenta Diogo Noivo.
Contratos fraudulentos e acusações de espionagem: o PP espanhol está a implodir. O que aconteceu?
A resposta de Casado torna-se importante, na opinião do politólogo, porque com esta nota a presidente madrilena explica uma série de acusações que agora parecem ser infundadas.
Se Casado não contra-atacar com provas, poderá ter auto-infligido um golpe fatal. “Pablo Casado, ao longo da presidência, tem dado vários tiros no pé, mas este é monumental e pode acabar por ser fatal. Se depois das explicações de Ayuso ficar assim, se Casado não der uma resposta muito certinha, politicamente acabou”, argumenta o politólogo, que acredita que, nesse caso, o líder do PP ficará com o carimbo de fazer uma acusação mal intencionada e de tentar abater uma adversária a qualquer custo. “A tensão é tremenda.”
Casado assume ter visto informação fiscal que não devia
Numa entrevista radiofónica à Cope, o líder do PP assume que pelas suas mãos passaram informações fiscais e bancárias relacionadas com o negócio das máscaras. “Deduzo que tiveram origem numa entidade pública, mas não disse a Ayuso que vinham do Governo”, referiu Casado, recusando a ideia de que terá sido o Palácio da Moncloa a entregar-lhas, como a presidente de Madrid afirmou.
Pedro Sánchez, líder do Governo espanhol, já se demarcou deste assunto, afirmando que estas acusações “não têm pés nem cabeça”. O executivo espanhol pediu ao PP que não o envolva “nas suas confusões” internas e que todos os indícios de corrupção e ilegalidades sejam remetidos às entidades competentes para serem clarificados.
“Na rádio, Casado disse explicitamente que teve acesso a informação fiscal do irmão de Ayuso — e isto é ilegal. Assume que a informação é do Estado, que é fidedigna e, portanto, teve acesso a algo que não poderia ter tido”, sublinha Diogo Noivo.
Na mesma entrevista, Casado também nega que tenha contratado um detetive particular para investigar a família da sua colega de partido que há muito se posiciona para o suceder na liderança do PP. “É falso que tenha sido contratado um detetive. E se alguém o tivesse feito, seria demitido.”
E se a vítima mortal for o PP?
Politicamente (e naquilo que mais importa quando se quer ser governo, a contagem de votos), a guerra interna pode ter custos elevados para um partido que ambicionava mudar o ciclo político em Espanha. Foi com a vitória de Ayuso em Madrid que o sonho começou a ganhar forma — numa altura em que também o Vox, de extrema-direita, ganhava expressão. Depois de dissolvido o Governo de Madrid e de Ayuso ter ficado perto da maioria absoluta, a ideia de lhe seguir o exemplo, livrando-se de coligações governamentais com o Ciudadanos foi ganhando forma noutras comunidades autonómicas.
Domingo passado, a manobra não correu tão bem em Castela e Leão, onde o partido se livrou do Ciudadanos, mas precisa ou da abstenção do PSOE ou dos votos do Vox para garantir a investidura.
“Isto pode dar cabo do partido e é difícil perceber o que levou a trazer a informação cá para fora”, diz Diogo Noivo. Para o politólogo, estará relacionado com o facto de que “quem ganhou as eleições, perdeu” em Castela e Leão, já que o PP fica dependente de um parceiro muito mais complicado.
“Foi mais um mau resultado de Casado, não é o primeiro, e cada derrota de Casado é uma vitória de Ayuso e dos seus apoiantes”, defende, acreditando que os mais recentes resultados de eleições regionais podem aumentar o apoio de Ayuso dentro do partido.
“O PP está num momento de extraordinária fragilidade, dado o grau de acrimónia entre os dois e os seus apoiantes, e com as acusações a subirem de tom. Quem apoia Ayuso só apoia Ayuso e quem apoia Casado só apoia Casado”, defende Diogo Noivo. Esse sabor acre dentro do partido só tende a crescer, já que há um enorme fosso entre os dois blocos do partido. “Só pode ficar um dos dois, não há condições para se manterem ambos e não será fácil unir o partido.”
Sobre Ayuso, que há muito ambiciona ser líder do PP em Madrid, algo que a direção do partido não tem facilitado, o politólogo acredita que, se houver a convocação de um congresso nacional, a espanhola poderá pôr de lado o desejo de reinar na capital e sonhar a sério com ser líder do partido, disputando a presidência.
O problema? “Ayuso é um produto madrileno”, defende Diogo Noivo, uma política de Madrid, uma mulher de Madrid, que compreende muito bem a realidade do seu eleitorado, mas poderá não conseguir uma “relação tão umbilical com toda a Espanha”.
E os vencedores são…
No meio da batalha do PP, o contrário de “danos colaterais” tem um nome que não vem nas gramáticas. PSOE e Vox serão os vencedores inocentes, não intencionais, desta guerra. “Se Pedro Sánchez fosse hábil, e na quinta-feira já havia muitos rumores nesse sentido, marcava eleições antecipadas num momento em que o PP está em contra pé”, argumenta o politólogo. A ideia é que o Partido Socialista espanhol poderia aproveitar o momento para ir buscar votos ao centro, desembaraçando-se dos partidos de extrema-esquerda com quem tem tido de fazer coligações e acordos parlamentares.
“Já o Vox poderia ficar a falar sozinho, em nome da direita, no espaço público”, o que, para Diogo Noivo, também poderia significar um acréscimo de votos.
A única coisa que parece certa, para já, é que as feridas de guerra foram infligidas em todos os cantos do Partido Popular. E dificilmente seria esse o plano original.