O Banco Central Europeu comprou, neste ano de 2020, mais dívida portuguesa do que o valor total das novas obrigações do Tesouro que o Estado português emitiu neste ano. Ao abrigo do programa Asset Purchase Programme, lançado ainda no tempo de Mario Draghi, o BCE comprou este ano cerca de 4,2 mil milhões de euros em dívida portuguesa detida por investidores – a um ritmo médio mensal de 381 milhões por mês – mas, a esses, acrescentou 14,8 mil milhões de euros já comprados ao abrigo do programa de compras de emergência pandémica lançado por Christine Lagarde em março e cujo “poder de fogo” foi reforçado esta quinta-feira.
A soma entre os dois programas ascende a 19 mil milhões de euros que foram “drenados” do mercado de dívida portuguesa, segundo dados recentes do BCE, foram criados pelo banco central – é isso o quantitative easing – e aplicados na compra de obrigações que o Estado português tinha, anteriormente, vendido a investidores privados (o BCE nunca compra diretamente ao Estado emitente mas apenas por interposta entidade, isto é, os investidores que participam nas emissões e, depois, têm oportunidade de vender os títulos que compraram ao banco central).
Por outro lado, desde que 2020 começou a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) emitiu 10,4 mil milhões de euros em leilões, mas fez também duas emissões sindicadas no valor de 4 mil milhões cada uma, em janeiro e em julho. Contas feitas, Portugal emitiu 18,4 mil milhões de euros em nova dívida de longo prazo desde o início do ano nos mercados financeiros (sem contar com instrumentos de aforro) e, no mesmo período, o BCE realizou compras líquidas de 19 mil milhões de euros.
Não é só com Portugal que isto acontece: em Espanha – só ao abrigo da “bazuca pandémica” – foram mais de 77 mil milhões de euros comprados entre março e novembro – um país que esta quinta-feira emitiu pela primeira vez dívida a 10 anos com taxa negativa. Portugal também já tem juros de mercado abaixo de zero na sua dívida a 10 anos, mas apenas nas transações entre investidores, isto é, o Estado ainda não “concretizou” esses juros negativos numa emissão de nova dívida com esse prazo de referência.
Há longos meses que países como Portugal e Espanha estão a emitir dívida nos mercados financeiros a juros abaixo de zero, mas apenas em prazos menores do que a referência de 10 anos. Ainda no mês passado, em meados de outubro, o Estado português financiou-se no prazo a oito anos com uma taxa de -0,085% – o que, na prática, significa que os investidores irão no final desse financiamento retirar dele uma remuneração que é negativa.
“É impressionante, mas é isso que custa colocar dinheiro num ativo sem risco, hoje em dia”, comentou há dias Carlos Almeida, diretor de investimento do Banco Best, que lembra ao Observador que recentemente se atingiu um novo recorde a nível mundial: o equivalente a 17,05 biliões de dólares em ativos de dívida que têm rendibilidade negativa, em todo o mundo. Embora isto comporte preocupações óbvias sobre a sustentabilidade do sistema financeiro, a prazo, para as empresas e para os Estados esta é uma ótima notícia porque “estão a aproveitar para renovar dívida antiga a custos mais baixos e, também, a prazos cada vez mais longos”, afirma o especialista.
Irá Christine Lagarde pôr o Estado a financiar-se de graça (a 10 anos)?
“Riscos continuam a pender para o lado negativo, mas tornaram-se menos acentuados”
Esta quinta-feira, o BCE anunciou um reforço de mais 500 mil milhões de euros no programa de compras pandémicas, conhecido pela sigla PEPP (o tal que já comprou 14,8 mil milhões em dívida portuguesa), elevando o “poder de fogo” total deste programa para 1,85 biliões de euros, distribuídos ao longo de um período de dois anos – entre março de 2020 e “pelo menos” março de 2022.
“Em todo o caso, o Conselho do BCE vai realizar compras de ativos até que considere que terminou a fase de crise provocada pelo coronavírus”, pode ler-se no comunicado de imprensa divulgado pelo banco central. Estas compras de emergência acrescem ao programa regular de compra de ativos – lançado ainda no tempo de Draghi – que vai continuar a intervir a um ritmo mensal de 20 mil milhões de euros, até informação em contrário.
“As medidas de política monetária tomadas hoje [esta quinta-feira] vão contribuir para garantir condições financeiras favoráveis ao longo do período pandémico, suportando o fluxo do crédito para todos os setores da economia, impulsionando a atividade económica e salvaguardando a estabilidade dos preços no médio prazo”, afirma o BCE, acrescentando que “a incerteza continua elevada, designadamente em torno da dinâmica da pandemia e do tempo que irá demorar a distribuição das vacinas”.
Na habitual conferência de imprensa de Christine Lagarde, que começou às 13h30, hora de Lisboa, a presidente do BCE comentou, no entanto, que o novo total (de 1,85 biliões de euros) poderá não ser utilizado na totalidade, se não se considerar necessário. E deixou uma mensagem de otimismo: é certo que “os riscos em torno das perspetivas de crescimento económico na zona euro continuam a pender para o lado negativo. Porém, [esses riscos] tornaram-se menos acentuados“.
Essa foi uma mensagem de confiança acompanhada pela divulgação de novas projeções económicas para os próximos anos onde se melhorou a projeção de crescimento (negativo) para 7,3%, face aos -8% que se previam anteriormente. O crescimento da economia da zona euro em 2021 será de 3,9%, prevê, também, o BCE.
Mesmo que se confirme, não será uma “recuperação em V” mas a preocupação, neste momento, é “comprar tempo até que a vacina irá fazer o seu trabalho” na promoção de uma efetiva imunidade de grupo perante o vírus Sars-Cov-2, diz Carsten Brzeski, economista do ING em nota de reação à intervenção de Christine Lagarde. A francesa sublinhou o impacto muito forte que esta segunda vaga está a ter nas principais economias mas voltou a salientar a recuperação rápida que parecia estar a gerar-se nos meses de verão, que pareceram ser marcados por uma propagação muito menor do novo coronavírus.
É por isso, indicou Lagarde, que a preocupação das autoridades – incluindo a autoridade monetária, o banco central que lidera – deve ser assegurar uma “ponte” até que as notícias “encorajadoras” sobre as vacinas se transformem numa inoculação eficaz, de larga escala, ao ponto de ser possível retirar as medidas restritivas que têm penalizado as economias desde fevereiro/março.
BCE reforça “bazuca” em 500 mil milhões mas vê riscos negativos “menos acentuados” na zona euro
Nesse contexto, o consenso no Conselho do BCE foi para um prolongamento das compras de dívida “pelo menos” até março de 2022, mais nove meses do que o término anteriormente indicado (junho de 2021) e coincidindo com o momento em que a pandemia de Covid-19 cumprir dois anos.
“De acordo com o consenso entre os virologistas e especialistas em vacinação, será nessa altura – início de 2022 – que se irá atingir uma efetiva imunidade de grupo na zona euro e, assim, a recuperação económica poderá descolar finalmente”, diz Carsten Brzeski, economista do ING. Até lá, sem grandes anúncios ou surpresas, “o BCE vai continuar a trabalhar para cumprir dois objetivos: manter as condições financeiras o mais favoráveis possível e evitar que surja uma eventual nova crise da dívida que poderia surgir se as taxas de juro se voltassem a dilatar”, assinala o analista, rematando que “para já, o BCE vai deixar novos anúncios de grandes bazucas para os governos“.