A intensidade e fúria de um furacão é suficiente para levar muitos animais a evitar o seu caminho. Ainda assim, nem todos o fazem. Uma equipa de investigadores descobriu que uma espécie rara de aves que é característica da Ilha Bugio, que pertence ao arquipélago da Madeira, tem um comportamento “único” face a estes fenómenos: ao invés de evitar os furacões, segue no seu encalço, muito perto das zonas onde os ventos sopram com maior intensidade.
Chamam-se freiras-do bugio e, até agora, são a única espécie de aves no mundo em que este comportamento foi observado, explica ao Observador Francesco Ventura, o autor principal de um estudo recentemente publicado na revista científica Current Biology e que passou pela monitorização dos movimentos destas aves. Em alguns casos, chegaram a perseguir o rasto de furacões durante mais de cinco dias e ao longo de mais de 2.400 quilómetros, uma descoberta que quase fez os investigadores “caírem da cadeira”, diz o biólogo do Woods Hole Oceanographic Institution (no estado norte-americano de Massachusetts).
Os resultados provam não só que as freiras-do-bugio não se incomodam com estes fenómenos extremos, como também os usam como oportunidade para se alimentar. O mais próximo que uma das aves que os investigadores monitorizaram esteve de um furacão foi a cerca de 80 quilómetros. “Isto é significativo porque é dentro do raio de velocidade máxima do vento. E estamos a falar de mais de 80 km/h, em média, porque não temos dados in situ“, acrescenta o biólogo.
Um momento “Eureka”
Francesco Ventura era um mero estudante de doutoramento na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa quando começou o fascínio pelas freiras-do-bugio. Foi graças a um projeto de investigação da faculdade, em parceria com o Instituto das Florestas e da Conservação da Natureza, a que se juntou em 2018 para estudar estas aves e as vizinhas freiras-da-madeira. Na altura pouco se sabia sobre estas espécies endémicas da Madeira e colocou-se GPS num pequeno grupo para seguir os seus movimentos, incluindo em 33 freiras-do-bugio.
A investigação permaneceu no pensamento de Francesco Ventura mesmo depois do doutoramento até que, no final do ano passado, o investigador, que atualmente está a viver nos Estados Unidos, desenterrou os dados. Queria perceber o que levava as duas espécies a seguirem para destinos diferentes no arquipélago da Madeira, mas chegou a resultados bem mais “surpreendentes”. Quase por acaso, numa espécie de momento “Eureka”, olhou para a interação das aves durante a época de furacões do Atlântico e percebeu que estas seguiam o seu rasto.
Através de dados da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos da América (NOAA, na sigla em inglês) o biólogo olhou para seis grandes tempestades que ocorreram no Atlântico Norte entre 2015 e 2019: Gaston, Ophelia, Lee, Gabrielle, Maria e Lorenzo. Comparando a localização das aves com o percurso dos furacões, notou que estas nunca estavam muito atrás do percurso que os furacões faziam pelo Atlântico. “No nosso estudo provamos que estas aves seguem o rasto dos furacões durante dias e por milhares de quilómetros. Isto é algo bastante novo e emocionante”, sublinha.
Na maior parte dos casos foi possível encontrar as aves entre 160 a 400 km do centro do furacão, disse ao Observador Paulo Catry, investigador do Ispa — Instituto Universitário — que também esteve envolvido no estudo. Um comportamento bem diferente do que se conhecia das espécies de aves até agora. Ao sentir o aproximar de uma tempestade, algumas, como é o caso do Chingolito, mudam os padrões migratórios para fugir aos seus efeitos, mas também há registo de outras, como os albatrozes, que se refugiam no olho das tempestades (uma zona de calmaria) e chegam a voar aí durante 12 horas para evitar os ventos fortes.
Os “corredores alados” em busca de uma refeição fácil
De bico curto, peito branco e asas cinzentas, as freiras-do-bugio passam a maior parte da sua vida no oceano, sendo as visitas a terra raras. É nas falésias da ilha do Bugio que se encontra a única colónia de nidificação conhecida destas aves marinhas no mundo. Estima-se que acolha cerca de 200 pares, razão pela qual estão classificadas como “vulneráveis” pela União Internacional para a Conservação da Natureza.
“Estão muito adaptadas a estar no mar alto e a deslocar-se a distâncias surpreendentes, sempre à procura de ventos favoráveis”, destaca Paulo Catry, também do centro de investigação MARE [Marine and Environmental Sciences Centre]. Segundo o biólogo, voam depressa e a baixo custo energético, já que à boleia do vento não precisam de bater as asas para avançar.
Da família dos Pterodroma, que significa “asas em fuga” ou “corredor alado”, herdam um nome apropriado, já que nas viagens em busca de alimento, tarefa que alternam com os parceiros enquanto estão a incubar os ovos, chegam a percorrer em média 8.000 km e por vezes chegam mesmo aos 12.000 km em apenas duas semanas. “É incrível, uma freira que está a nidificar nas ilhas desertas, ao pé da Madeira, pode chegar praticamente ao Canadá enquanto vai às compras”, explica.
Durante as suas viagens pelo Atlântico, a época de furacões proporciona-lhes refeições fáceis. É que estas aves alimentam-se de pequenos peixes, lulas e crustáceos, que tipicamente se encontram em profundidades de 18o a 900 metros. Como não conseguem mergulhar a essas profundidades, esperam até ao cair da noite para que as suas presas ascendam a locais mais próximos da superfície.
Esse esforço deixa de ser necessário com a passagem de furacões, uma vez que os ventos provocam a mistura da águas quentes na superfície do oceano com as águas mais frias de zonas mais profundas. Isso faz com que as presas destas aves subam à superfície, tornando-se mais fáceis de capturar.
Há mais espécies na mira dos investigadores
Questionados sobre a origem do comportamento destas aves, os investigadores admitem que é uma questão “difícil” de estudar. Acreditam que é em parte algo inato, mas também fruto de um processo de aprendizagem. “Na fase juvenil as aves marinhas [grupo em que se inclui as freiras-do-bugio] têm um comportamento exploratório. Podemos deduzir pelos movimentos que seguimos que elas de facto estão a aprender, mas há uma parte que sabemos que é inata”, refere Paulo Catry.
A equipa relata que, “de forma impressionante”, nenhuma das aves que foi monitorizada ficou ferida nas tempestades, apesar de ter estudado um grupo pequeno, mas sublinha que haja riscos. “Se é de facto uma oportunidade, não quer dizer que seja isenta de perigo. Aparentemente aprenderam a lidar com esse perigo de forma eficaz e relativamente segura”, refere o mesmo investigador. Isso mesmo foi observado quando ao chegar próximo de zonas em que os ventos são mais intensos as aves tenderam a pousar no mar, esperando que a zona mais forte passasse por elas para depois continuar seguir o furacão.
A equipa acredita também que poderá haver mais aves a seguir o rasto dos furacões. “Outros predadores podem estar a fazer o mesmo e ainda ninguém ter reparado. E não estou a falar só de aves marítimas”, diz Francesco Ventura. Aponta como possível que animais como tubarões, atuns e mamíferos marinhos saibam também aproveitar o efeito da sua passagem. “Seria interessante ver se outras espécies fazem o mesmo”, admite, acrescentando que já sonha com a expansão da investigação a mais animais.