Há exatamente 24 anos, o Bloco de Esquerda tinha a sua primeira grande vitória política. O partido, fundado em 1999, tinha conseguido eleger dois deputados — Francisco Louçã e Luís Fazenda — nas legislativas de outubro desse ano. Em maio de 2000, entraria em vigor a primeira lei desenhada e apresentada pelo Bloco no Parlamento: o projeto que transformou o crime de violência doméstica em crime público. A investigação e punição da violência doméstica, um crime em que a esmagadora maioria das vítimas são mulheres, passava a não estar dependente da apresentação de uma queixa por parte da vítima, uma exigência que tornava inviável a maioria dos casos.
A campanha para as eleições europeias de 9 de junho arrancou oficialmente esta segunda-feira, o exato dia em que se assinalou esse aniversário — 27 de maio —, e o Bloco de Esquerda aproveitou a data para fazer valer a histórica vitória legislativa e apontar aquela que considera ser a grande prioridade para estas eleições: os direitos das mulheres. No primeiro jantar-comício da campanha eleitoral, na escola secundária da Portela (concelho de Loures), Catarina Martins descreveu mesmo a exigência de avanços nos direitos das mulheres como “o grande debate destas eleições“.
Vinte e quatro anos depois da aprovação daquele projeto legislativo sobre a violência doméstica, e 17 anos depois do referendo que abriu caminho à despenalização do aborto em Portugal, a discussão em torno dos direitos das mulheres voltou a intensificar-se no espaço europeu nos últimos meses. Em abril, o Parlamento Europeu aprovou, com uma ampla maioria, a decisão de incluir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, incluindo o direito ao aborto, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Não é nada certo que isso venha a acontecer efetivamente, já que a concretização da recomendação implica a unanimidade entre os 27 governos nacionais da UE. Se há países que são favoráveis a essa decisão — como França, que em março consagrou formalmente na sua Constituição o direito ao aborto —, há vários outros governados por executivos que se opõem a essa possibilidade, onde há leis muito mais restritivas do direito ao aborto do que, por exemplo, o caso português. O Partido Popular Europeu (PPE), a que estão filiados o PSD e o CDS, já manifestou resistência à possibilidade de incluir o direito ao aborto na Carta.
O tema entrou em força na campanha nacional quando o candidato da Aliança Democrática, Sebastião Bugalho, foi duramente atacado no último debate televisivo a quatro e não conseguiu evitar algum embaraço em torno do assunto. Confrontado com a resistência do PPE, Bugalho procurou justificar a hesitação com o argumento jurídico da ponderação entre dois direitos — o direito à vida e o direito da mulher sobre o seu corpo. A tentativa de explicação valeu-lhe um duro ataque de Catarina Martins, que o acusou de usar uma “desculpa jurídica” — e o candidato da AD acabaria por dar a “palavra de honra” de que não haverá qualquer recuo nos direitos das mulheres. “A delegação portuguesa do PPE também se vai levantar para defender os direitos das mulheres”, afirmou.
Com a polémica instalada, a cabeça-de-lista do Bloco às europeias assumiu nos primeiros dois dias de campanha eleitoral que a luta por avanços nos direitos da mulher é “o grande debate destas eleições”. No comício inaugural da campanha, na noite de segunda-feira, Catarina Martins atirou diretamente a Sebastião Bugalho e à Aliança Democrática, lembrando que as “ameaças” não vêm apenas da extrema-direita, mas também da “direita tradicional” — e acusando Bugalho de “cinismo”. Para Catarina Martins, só o cinismo explica que o candidato da AD diga que se “levantará para defender os direitos das mulheres” ao mesmo tempo que o PPE resiste à inclusão do direito ao aborto na Carta e que a direita europeia está a abrir a porta à extrema-direita em negociações para a formação de maiorias.
“Quem se senta ao lado da extrema direita, não está do lado dos direitos das mulheres, está a atacar direitos das mulheres”, afirmou Catarina Martins, visando mais uma vez Bugalho: “Quem se engasga sobre o direito das mulheres sobre o seu corpo, quem se atrapalha, quem faz confusão, não merece a nossa confiança.” A ex-coordenadora bloquista continuou: “Aqui estamos para dizer a Sebastião Bugalho que o direito à Interrupção Voluntária da Gravidez não é uma questão difícil: é uma questão fácil. Ou as mulheres são respeitadas ou não são respeitadas.” No discurso, que fez perante mais de uma centena de pessoas no primeiro comício da campanha, Catarina Martins recorreu mesmo a um grito de ordem em rima: “Sebastião é só confusão!”
A ex-coordenadora do Bloco de Esquerda recordou ainda o que PSD e CDS fizeram “no Governo passado, quando em 2015 introduziram na lei da IVG normas humilhantes contra as mulheres”. A exigência de Catarina Martins nestas eleições é de “clareza” — e a candidata do Bloco pede a todos os partidos que sejam claros sobre o que pretendem dizer “sobre os direitos das mulheres“. Ainda numa referência às palavras de Sebastião Bugalho, Catarina Martins reiterou que o grande objetivo não é evitar “recuos” nos direitos das mulheres, mas exigir “avanços”.
No comício, a primeira intervenção tinha pertencido a Paula Cosme Pinto, ex-jornalista e ativista feminista que surge em quarto lugar na lista do Bloco de Esquerda às europeias. A candidata alertou para as “trevas” que se “adivinham nos próximos anos” e enumerou várias estatísticas sobre a violência sobre mulheres e sobre a desigualdade de género para concluir: as mulheres “não são uma minoria“, mas sim “metade da humanidade“. Por isso, a igualdade de género “não é opcional”, mas é para ser cumprida “agora”.
Também Fabian Figueiredo, o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, interveio no comício para vincar a “defesa dos direitos humanos” como bandeira central do partido e para colocar o aborto no centro do debate, lembrando que “o aborto não se proíbe, a única coisa que se proíbe é o aborto seguro“. Figueiredo assinalou também que o Bloco não hesitará no combate àqueles que “queriam mandar mulheres para a prisão” por fazerem abortos.
Pela Palestina e pela Ucrânia, mulheres devem ser “a voz da paz” no Parlamento Europeu
Nos primeiros dois dias de campanha eleitoral, Catarina Martins tocou em dois dos temas fortes do Bloco de Esquerda para este período eleitoral: além dos direitos das mulheres, a denúncia do “cinismo” da Europa no que toca aos conflitos armados atualmente em curso na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Depois de na segunda-feira ter exigido o reconhecimento do estado da Palestina por parte de Portugal e dos restantes países europeus e de ter pedido sanções contra Israel, Catarina Martins dedicou a manhã de terça-feira a uma ação de campanha (a única em dia de debate na RTP) em que cruzou os dois temas.
Na livraria “Menina e Moça”, no Cais do Sodré, em Lisboa, Catarina Martins juntou-se a Pilar del Rio, a Teresa Coutinho e à autora palestiniana Shahd Wadi para uma conversa sob o tema “Na Europa, Mulheres pela Paz“. O mote foi a resistência palestiniana contemporânea, com a sessão (que Catarina Martins disse não ser “bem uma ação de campanha”) a arrancar com a leitura de textos de uma antologia poética sobre a resistência palestiniana do século XXI.
Com figuras como Mariana Mortágua ou Marisa Matias na plateia, Catarina Martins dirigiu-se a uma sala cheia para voltar a atacar o “eurocinismo” de países como a Alemanha, que envia armas a Israel. “Há armas alemãs a fazer este genocídio”, afirmou. “Não podemos ter armas europeias a fazer este genocídio.”
A cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda elogiou a mobilização popular, sobretudo entre jovens e estudantes, em defesa da Palestina — e sublinhou mesmo que “a única superpotência que tem coragem de se opor a Israel é a da opinião pública”. Catarina Martins colocou lado a lado o Presidente russo, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, para destacar que o Bloco de Esquerda está, nos dois conflitos, do lado dos invadidos e contra os invasores, exigindo sanções e punições onde “mais dói” aos agressores, que é “na riqueza”.
Reconhecendo que nem Netanyahu nem Putin se vão “comover” com palavras sobre o sofrimento das populações da Palestina e da Ucrânia, Catarina Martins foi chamada pelos jornalistas a explicar como se pode conciliar os dois pilares da posição do Bloco de Esquerda, por exemplo, sobre a Ucrânia: por um lado, a defesa do direito à autodeterminação da Ucrânia; por outro lado, o apelo à paz negociada. “Uma paz negociada com uma Ucrânia que não se consiga defender é uma paz em que a Rússia tem o seu objetivo de invadir“, afirmou Catarina Martins, sublinhando que o Bloco defende que se ajude a Ucrânia a ter meios para se defender da Rússia.
Porém, Catarina Martins lembrou que “o Presidente Zelensky disse em 2022, logo no princípio da guerra, que estaria disposto a negociar a neutralidade da Ucrânia para manter a integralidade do seu território e ter paz“. Para a bloquista, esse deve ser um caminho a seguir — o que lhe tem valido duras críticas, especialmente por parte da Iniciativa Liberal, com quem se envolveu esta terça-feira numa troca de acusações.
Ainda assim, o principal foco de Catarina Martins tem estado no conflito na Faixa de Gaza. Durante a conversa desta terça-feira, depois da leitura de alguns poemas com forte carga emocional sobre a resistência dos palestinianos em Gaza, Catarina Martins convidou Marisa Matias, antiga eurodeputada bloquista que chegou a visitar Gaza, a partilhar a sua experiência no enclave “bloqueado” por Israel. Na sessão, Catarina Martins elogiou também o testemunho de Shahd Wadi, autora palestiniana que falou sobre o conflito em Gaza, e salientou a importância de manter vivas “a poesia e a arte” mesmo na “desolação” que se vive em Gaza.
Pilar del Rio, outra das convidadas da sessão, leu um discurso em que sintetizou os dois temas fortes do arranque da campanha bloquista, pedindo “muitas mulheres no Parlamento Europeu” que possam ser “a voz da paz”. Postulando que “a humanidade não é uma abstração retórica“, mas “carne sofredora”, Pilar del Rio argumentou em defesa da “autoridade” das mulheres, que é “a maior autoridade imaginável: a autoridade de criadoras da vida“. “Os nossos filhos não nasceram para ser número de mortos”, apontou.
Com as guerras, argumentou a autora espanhola que preside à Fundação José Saramago (de quem é viúva), não se “combatem os litígios”, apenas se “fortalece a indústria das armas”. A exigência é outra — a paz “em Gaza, na Ucrânia e em todos os lugares onde impera o negócio da destruição”. Dirigindo-se a Catarina Martins, apelou ao voto no Bloco afirmando: “Catarina, confiamos em ti. És a mulher moderna, valente e decidida que as nossas antepassadas sonharam.” Pilar del Rio pediu ainda um voto por “uma Europa construtora de paz” e lembrou que a paz só é possível “se nos mobilizarmos por ela, nas consciências e nas ruas“.
Depois de esta terça-feira ter tido um dia de campanha relativamente calmo — apenas uma ação de manhã, seguindo-se uma tarde de preparação para o debate da RTP —, a comitiva do Bloco de Esquerda prepara-se para passar o dia de quarta-feira no distrito de Setúbal, com uma visita a uma escola, outra a uma companhia de teatro e ainda um jantar-comício na Moita. Depois, a partir de quinta-feira, a caravana bloquista vai começar a percorrer a metade norte do território português.