“Anda cá e dá-me um abraço apertado.” Só aos quatro anos de idade, Elizabeth Flores percebeu que a frase do avô era “um sinal do que estava para vir”: “Anda cá e dá-me um abraço apertado” era o primeiro passo para os abusos sexuais. Para a irmã dela — que, por ser mais velha, já tinha sido abusada várias vezes — a frase já não era nova. Terá sido ela, aliás, a impedir, muitas vezes, que Elizabeth fosse abusada. Quando o avô chamava, Louise Turpin, “de lágrimas nos olhos”, dizia: “Eu vou”.
O relato é feito pela própria Elizabeth Flores, num livro editado no início de 2018. Uma semana depois, a irmã de quem falava era detida com o marido, David Turpin. O caso abriu noticiários em todo o mundo, na manhã de 15 de janeiro de 2018: durante anos, o casal tinha mantido os 13 filhos em cativeiro, na própria casa, no estado norte-americano da Califórnia. Jennifer, Joshua, Jessica, Jonathan, Joy, Jullianne, Jeanetta, Jordan, James, Joanna, Jolinda, Julissa e Janna (os 13 sobrinhos de Elizabeth) foram encontrados com sinais de subnutrição grave, acorrentados às suas camas, em escuridão total e num ambiente irrespirável, por causa do cheiro nauseabundo.
A tia tinha começado a escrever o livro muito antes, em 2016. Nele, relata os anos de abuso de que ela e as irmãs (Louise Turpin, a mais velha, e Teresa Robinette, a mais nova) terão sido alvo em crianças por parte do avô. Com a descoberta do caso, “Sisters of Secrets” (sem edição em português) teve de voltar para trás, para ser alterado. Elizabeth teve, então, de escrever um novo capítulo da história da família e o livro só veio para as bancas em maio — quatro meses depois de a autora descobrir que “esta crueldade tinha acontecido” e que a “irmã como a conhecia tinha afinal um coração tão destruidor“.
O passado de abusos foi, em parte, a razão pela qual Elizabeth ficou tão “chocada” quando o caso foi revelado: parecia que se tinham invertido os papéis. “Aquela que cuidava de mim, que brincava comigo e assumia o meu lugar nos abusos sexuais que aconteciam nos lugares mais escuros”, como descreve Elizabeth, era agora a mãe que aparecia nos noticiários e capas de jornais por ter mal tratado, deixado passar fome e acorrentado os 13 filhos às camas. “Ela punha-se à minha frente quando o meu avô, que abusava de mim sexualmente, vinha à minha procura“, reforça, mais uma vez, no livro.
Também Teresa, a irmã mais nova das três, não percebe como é que Louise e o marido foram capazes de privar os filhos de uma infância da qual também ela fora privada. “As pessoas dizem que, às vezes, o abusado pode tornar-se o abusador, mas estou tão chateada com ela. É difícil para mim dar-lhe alguma desculpa”, desabafou a irmã em declarações ao programa “60 Minutes”, transmitido pela Nine Network, um canal de televisão australiana.
Nem Louise conseguiu apresentar, em tribunal, uma razão para os crimes pelos quais foi acusada. Embora o casal tenha defendido sempre a sua inocência e a mulher tenha chegado mesmo a alegar que tinha sido diagnosticada com transtorno de personalidade, ambos acabaram por confessar o que tinham feito, mudando o rumo ao caso. Na sessão em que assumiram os crimes, no final de fevereiro, Louise começou a chorar assim que o juiz mencionou a possibilidade de passarem o resto das suas vidas na prisão. David manteve-se aparentemente sereno. Louise ia limpando as lágrimas enquanto dizia: “Culpada”. A palavra foi ouvida 28 meses no tribunal. Cada um repetiu-a 14 vezes — uma vez por cada crime que consta da acusação.
Dentro da casa dos horrores. As explicações psicológicas para o caso dos 13 filhos acorrentados
O cenário mudou assim que se assumiram como culpados: o julgamento que estava marcado para dia 3 de setembro, e no qual alguns dos seus filhos iam prestar declarações, foi cancelado — algo previsto na justiça norte-americana, que dá a possibilidade aos arguidos de confessarem os crimes para evitar o julgamento. Assim, já considerados culpados, os Turpin voltam a tribunal esta sexta-feira, 19 de abril, para conhecer a sentença que lhes vai ser aplicada — sendo quase certo que o tribunal opte por uma pena indefinida de 25 anos a prisão perpétua. Na prática, este tipo de pena significa que ambos terão de cumprir, no mínimo, 25 anos de prisão e só nessa altura poderão pedir liberdade condicional — um pedido que poderá sempre ser negado até ao final das suas vidas, cumprindo-se a prisão perpétua.
Será o fim de um caso que se descobriu no dia 14 de janeiro de 2018, com a fuga de Jordan, a filha que tinha 17 anos na altura. Para as irmãs da arguida, a história parecia repetir-se, agora de forma invertida: também Louise tinha fugido de casa por volta dessa idade. A casa onde cresceu, em Princeton, no estado de West Virginia, parecia “um lar feliz”, nas palavras da irmã Teresa, mas “lá dentro era tudo simplesmente miserável”. Algo que também os 13 filhos podem dizer agora em relação à casa com o número 160 da Rua Muir Woods, em Perris, no estado da Califórnia, onde foram mantidos em cativeiro.
Do lado de fora, a casa dos Turpin parecia a de mais uma família normal, num bairro normal. Mas lá dentro estava um dos mais escandalosos casos de abuso dos Estados Unidos e que levou a comunicação social a apelidar aquela vivenda de “casa dos horrores”. Para Teresa, porém, o horror começou muito antes — na casa em Princeton, onde ela e as duas irmãs cresceram e viveram e a que chama “a verdadeira casa dos horrores”.
“Ela prostituía as suas próprias filhas para o meu avô”. Louise fugiu de casa aos 15 anos
Não se sabe ao certo quando é que Louise terá começado a ser abusada pelo avô. A memória mais antiga de Elizabeth é de quando tinha quatro anos e, por isso, Louise teria 14. “A minha mãe levava-nos até ele [o avô] diariamente. Ela praticamente vendia-nos para ter dinheiro para viver“, contou Teresa, a irmã mais nova das três, ao programa “60 Minutes”. No livro, Elizabeth explica que, quando a mãe se divorciou, “as coisas ficaram piores”. “Quando ela ficava desesperada por dinheiro — é difícil dizê-lo —, prostituía as suas próprias filhas para o meu avô”, lê-se em “Sisters of Secrets”.
Aquando do divórcio, já Louise tinha fugido de casa. “Por volta dos 15 anos, começou a namorar um rapaz da nossa igreja e, em pouco tempo, as coisas ficaram sérias”, escreve Elizabeth, acrescentando: “Ela estava maluca por ele e ele parecia gostar dela”. Pouco depois, já falava em casar e mostrava à irmã o desejo de ter filhos. “Sabes… se eu casar, vou ter uma casa muito boa e tu podes vir visitar-me a toda a hora e sair comigo. Também podes ficar a viver lá. E quando eu tiver um bebé, um dia, tu podes vir e brincar com ele e pegar nele ao colo”, dizia.
Na mesma noite em que teve essa conversa com a irmã, Louise delineou um plano para fugir: pegou numa mochila e “começou a atirar coisas lá para dentro”. Pediu a Elizabeth para não contar aos pais. Na manhã seguinte, como em qualquer outra, as duas irmãs foram para a escola. Ao final do dia, Elizabeth regressou, mas Louise não.
Inicialmente, a mãe pensou que a filha talvez tivesse perdido o autocarro e, por isso, foi até à escola. Lá disseram-lhe que o pai a tinha vindo buscar. A mãe ligou, então, ao pai e percebeu que algo estava errado: o pai negou que a tivesse vindo buscar. “Foi aí que as coisas ficaram complicadas”. A escola explicou à mãe que “um homem alto, com um chapéu e barba” a tinha vindo buscar, dizendo que era o pai. A barba, veio mais tarde a descobrir-se, era falsa. O homem era David Turpin. Os pais “ficaram desesperados e foram à polícia”, mas rapidamente perceberam que se tratava de David e, uma vez que o conheciam da igreja, acabaram por não apresentar queixa. Ligaram-lhe para o obrigar a trazer a filha de volta e os dois regressaram. “Depois da discussão, disseram que iam casar. Tiveram um pequeno casamento na igreja e foram para Forth Worth, no estado do Texas”, onde ficaram a viver até 2010.
Pouco depois da fuga de Louise, os pais divorciaram-se, depois de se ter descoberto que a mãe mantinha uma relação extraconjugal. “Os meus pais divorciaram-se. A minha mãe entrava e saía de relações abusivas e outras coisas horríveis. O meu avô violava-me. Fui abusada física, mental e emocionalmente por outras duas pessoas”, escreve Elizabeth, sem revelar quem. Com o divórcio, o pai acabou também por sair de casa: “Os únicos dois adultos que restavam na casa eram a minha mãe e o meu avô”.
Elizabeth acredita que a mãe sempre soube que estes abusos aconteciam. “Um dia, a mãe disse-nos que ia levar-nos à casa do avô porque assim ele daria-nos-ia algum dinheiro”, escreve a autora, descrevendo de seguida cenas chocantes dos abusos, dela e da irmã. Já a avó sabia e insistiu varias vezes com ela para desabafar. “O vosso avô não é um bom homem. Eu sei que ele tem sido mau para outra meninas”, terá dito a avó, revelando que, um dia, ela “apanhou o avô a violar Louise”. E, por isso, divorciou-se dele. Elizabeth descobriu mais tarde que o avô também abusava de uma prima.
As idas ao casino. “Louise não pára. Eu sei quando parar, mas isto é um problema com ela”
Quatro anos depois da fuga, Louise teve o primeiro filho, uma menina: Jennifer. Tinha 19 anos, na altura. Com a mudança para o estado do Texas, o casal foi se afastando da família. Falavam por telemóvel, trocavam correspondência e pouco mais. Elizabeth, adolescente na altura, chegou a ir visitá-la algumas vezes, nas férias da escola. Em 1996, já o casal tinha quatro filhos. No verão desse ano, Louise e David vieram do Texas até Princeton para visitar a família, com as crianças. Elizabeth, que tinha acabado o ensino secundário e preparava-se para entrar na universidade, pediu à irmã se podia passar o verão com eles. Louise concordou.
Assim foi. Mas antes, na viagem de regresso, um episódio estranho aconteceu e ficou na memoria de Elizabeth: “Louise e David pararam em Louisiana, num casino, para jogar”. Elizabeth recorda o quanto ficou chocada: “Nós fomos todos criados no seio de uma família cristã e eu pensava que apostar no jogo era um pecado. Fiquei em choque. Eles explicaram-me como eles adoravam jogar, especialmente Louise, e pediram-me para não contar a ninguém, na família”.
Assim que pararam, David terá pedido a Elizabeth que ficasse dentro do carro, com as crianças, que tinham adormecido. Mais tarde, David regressou e disse: “Estou a ficar chateado. Louise não pára. Eu sei quando parar, mas isto é um problema com ela e não consigo fazer com que ela saia. Se ela aposta o dinheiro todo, não sei como é que vamos chegar a casa”. Mais tarde, ambos regressaram e discutiram sobre o assunto.
Episódios como este repetiram-se ao longo de anos. Há, aliás, uma história que Louise foi recordando e repetindo com orgulho. Aconteceu na primeira vez que o casal foi renovar os votos, na famosa capela do Elvis, em Las Vegas. Os Turpin ficaram a jogar a noite toda e “Louise ficou tão bêbeda que mal conseguia ficar em pé”. “David não conseguia tirá-la de lá. Ela apostou praticamente quase todo o dinheiro deles. Estiveram lá, literalmente a noite toda, até serem expulsos por um segurança”, escreve no livro.
Da fuga desesperada às provas sinistras. A saga da casa dos horrores
O verão na casa dos Turpin. “Eles estavam sempre nos quartos e a bebé estava sempre no berço”
Elizabeth tem boas memórias dos primeiros dias de férias daquele verão com a irmã: “Jogámos jogos de tabuleiro, vimos filmes e fizemos todas as coisas divertidas, como nos velhos tempos”. Mas o tempo foi passando e “coisas estranhas” começaram a acontecer. “David dizia coisas que me faziam sentir desconfortável. Ele comentava o quão bonito o meu corpo era e como eu era sedutora para ele, mesmo quando Louise estava presente”. Elizabeth recorda vários comentários que o cunhado fazia em relação ao seu corpo, mas também um episódio em que ele pediu e a viu a tomar banho — com a garantia de Louise de que o marido estava apenas a brincar.
Só agora, recuando no tempo, é que Elizabeth reconhece que algumas coisas que acontecerem no seio da família Turpin — e que, na altura, lhe pareceram normais — eram, na verdade, abusivas. “Na altura era jovem e eu própria tinha sido abusada. Eu não vi o que vejo agora. Louise era muito rígida com as crianças. Ela punha a mesa e chamava um a um para a refeição. Eles esperavam pela permissão para se sentarem”, recorda, no livro. Depois de se sentarem, não podiam tocar na comida até que a mãe desse ordem. E ficavam sentados até que nova ordem viesse da mãe para poderem voltar para os quartos. “Eles estavam sempre nos quartos e a bebé estava sempre no berço”, denuncia ainda Elizabeth.
Ao longo do verão, a tia foi sempre pedindo para brincar com os sobrinhos. Louise sempre negou. “Ela disse que não queria que eu os contagiasse com as minhas maneiras porque eu não acreditava nas mesmas coisas que eles”, explicou. Também a Elizabeth eram impostas as mesmas regras: não podia ter amigos, dar a morada ou o número de telemóvel a ninguém. “Disseram-me que, se eu quebrasse as regras, seria mandada embora”, escreve no livro onde admite: “Agora, também eu precisava de fugir daquele sítio”.
A dada altura, Elizabeth fez um amigo, Jonathan, no trabalho de verão que tinha arranjado numa loja. “Ela [Louise] ficou tão chateada que me expulsou de casa, como eu temia. Levou-me para o trabalho e, quando chegou a altura de me vir buscar, não apareceu”. Ficou a dormir durante três dias, num banco ao lado da loja onde trabalhava. Até que um dia, Jonathan, o tal amigo e, atualmente, seu marido, a encontrou e levou-a até à casa de Louise para ir buscar as suas coisas. “Ela não mas deu e ameaçou chamar a polícia”, relata.
Os encontros sexuais. “Conhecemos um homem e ele quer fazer sexo comigo”
Os anos foram passando e o contacto com a irmã foi sendo cada vez menor, resumindo-se a chamadas telefónicas. Em 2005, Elizabeth teve um aborto e Louise ligou-lhe, admitindo que também ela já tinha tido alguns: “Sei como te sentes. É como perder uma parte de ti”. Nessa altura, falaram vários dias seguidos, mas depois, “de repente, ela parava de ligar” e de “devolver as chamadas” — às vezes, durante seis meses ou até um ano.
Em 2010, os Turpin mudaram-se para a Califórnia. Embora Elizabeth não falasse muito com eles, parecia-lhe uma família feliz. Nas redes sociais, iam publicando fotografias dos filhos em viagens à Disneyland ou nas tais renovações de votos em Las Vegas. Diz que sempre estranhou — sabendo que eles tinham problemas com dinheiro — que eles conseguissem fazer essa viagens todas, para “beber e ir a festas”.
Elizabeth recorda um episódio que aconteceu “perto do aniversário dos 40 anos” da irmã. Tinha falado ao telefone com Louise, que lhe disse que “estava a caminho de um bar com David”. “Louise costumava dizer-me que os filhos já eram adultos o suficiente para ficar em casa e tomar conta dos mais novos”, lê-se no livro. Mais tarde, a irmã voltou a ligar a Elizabeth e contou-lhe que tinham conhecido um homem que queria ter relações sexuais com ela e que tinha todo o consentimento do marido para o fazer. O encontro seria, aliás, gravado para que, depois, David — que estava no exterior do quarto de hotel que alugaram para o efeito — o pudesse ver.
Mais tarde nessa noite, uma nova chamada de Louise: explicou à irmã os detalhes desse encontro e disse-lhe que David queria repetir a experiência, mas que ela negou. “O mais estranho veio depois. Exatamente um ano depois disto, David queria ir a esse hotel e alugar esse mesmo quarto para poder fazer sexo com Louise na mesma cama. Louise disse-me que o fizeram”, escreve Elizabeth.
As bruxarias e as cobras. “Já perguntei ao tabuleiro [ouija] se ia ter outro bebé e ele disse-me que sim”
Numa dessas conversas ao telefone com a irmã, Louise pareceu levantar o pano sobre aquilo que se passava dentro da casa dos horrores. Desabafou com a irmã sobre o quanto era “difícil manter a casa limpa com tantas crianças” e queixou-se que “as crianças eram desarrumadas e não sabia o que fazer em relação a isso“. “Parecia que as coisas começaram a demoronar-se”, escreve Elizabeth. Não foi, porém, suficiente para que a irmã percebe o que se passava para lá da porta com o número 160 da Rua Muir Woods.
As conversas entre as duas eram, por vezes, normais. Mas, noutras vezes, nem tanto. Certo dia, Louise contou a Elizabeth que jogava ao tabuleiro ouija — uma superfície plana com letras, números ou outros símbolos, criado para ser usado como método de comunicação com espíritos. “Já perguntei ao tabuleiro se eu ia ter outro bebé e ele disse-me que sim”, terá dito à irmã. Louise contou que tinha alguns livros sobre bruxaria e leitura nas cartas. “Até andei a pesquisar sobre satanismo e esses rituais”, disse, garantindo-lhe que era só curiosidade.
O livro tem ainda o relato de uma das poucas visitas que Louise fez à irmã, na qual a convidou para ir ao festival Rattlesnake. E explicou-lhe o que era: “É uma coisa na baixa de Arlington, onde as pessoas se juntam. Eles tiram-lhes a pele e cozinham-nas [às cobras]. As mulheres até andam de um lado para outro com as cobras em cima delas. E sabem tão bem”. Aquele fascínio tinha uma explicação: Louise dizia que gostava de cobras porque “dão poder”. Depois de o casal ter sido detido, Elizabeth foi até à casa da família “para ver onde as crianças eram mantidas em cativeiro”. “Uma das primeiras coisas em que reparei foi que ela tinha uma estátua de uma cobra à entrada da casa”, escreve.