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epa10266523 Pope Francis leads the weekly general audience in St Peter's Square at the Vatican, 26 October 2022.  EPA/FABIO FRUSTACI
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O Papa Francisco tomou a decisão de afastar todos os elementos da cúpula hierárquica da Cáritas Internacional

FABIO FRUSTACI/EPA

O Papa Francisco tomou a decisão de afastar todos os elementos da cúpula hierárquica da Cáritas Internacional

FABIO FRUSTACI/EPA

Bullying e incompetência, mas não dinheiro ou sexo. A polémica que levou o Papa a despedir a liderança da Cáritas Internacional

Através de um decreto assinado pelo Papa, a cúpula hierárquica da Cáritas Internacional foi demitida. A polémica envolve mau ambiente no local de trabalho — mas a Cáritas Portuguesa não foi afetada.

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O momento era de reencontros. Pela primeira vez desde que a pandemia de Covid-19 tinha obrigado a deslocar o trabalho para o mundo das videoconferências, mais de uma centena de representantes da rede da Cáritas Internacional, oriundos de múltiplos pontos do globo, iam reunir-se presencialmente em Roma. O tema da conferência de dois dias, agendada para 21 e 22 de novembro, era a “cooperação fraterna” — um tópico especialmente relevante para a organização no momento atual.

Com sede em Roma, a Cáritas Internacional, a principal rede de solidariedade da Igreja Católica a nível global, é composta por 162 organizações nacionais (como a Cáritas Portuguesa), que operam em cerca de 200 países e territórios — na prática, a quase totalidade do planeta. Os últimos dois anos foram especialmente desafiantes para a instituição: por um lado, a pandemia e os isolamentos aumentaram as necessidades sociais (para se ter uma ideia, atualmente a Cáritas Portuguesa dá apoio social diário a 120 mil pessoas); por outro lado, a guerra na Ucrânia abriu as portas a um esforço de solidariedade global em que a Cáritas teve um papel relevante (com o envio de 100 milhões de euros e o apoio a mais de 3,5 milhões de pessoas em 50 centros de ajuda em todo o país).

A reunião era aguardada com expectativa, como se lia no anúncio publicado pela Cáritas Internacional: “A conferência vai acontecer num momento em que as organizações que são membros da Cáritas são confrontadas com o impacto devastador da pandemia, agravado pelos efeitos negativos da guerra e da violência nos mais vulneráveis, e com a necessidade de uma cooperação criativa e coordenada. (…) Os resultados desta conferência também vão fornecer à Cáritas Internacional a base de trabalho para conduzir a confederação até 2030 e para a Assembleia Geral que vai ocorrer em maio de 2023.”

A reunião decorreu nos dias 21 e 22 de novembro num centro de conferências em Roma

Página de Facebook da Cáritas Internacional

Em suma, tudo parecia absolutamente normal na instituição. Na manhã do segundo dia, vários dos delegados presentes na reunião estiveram presentes numa conferência de imprensa para falar sobre o andamento dos trabalhos. Também nessa ocasião, tudo normal: entre a maioria dos trabalhadores da organização a nível mundial, ninguém suspeitava do que estava, contudo, a ser preparado nos bastidores ao mais alto nível, no gabinete do Papa Francisco.

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A surpresa cairia à hora habitual das notícias no Vaticano: o meio-dia, momento em que o gabinete de imprensa da Santa Sé publica o habitual boletim diário. Das nomeações dos bispos às viagens do Papa, é habitualmente a essa hora que as grandes novidades da Igreja Católica se sabem. Na terça-feira, quando estavam reunidos em Roma, foi precisamente a essa hora que os trabalhadores da Cáritas Internacional souberam que o Papa Francisco tinha decidido demitir toda a cúpula hierárquica da instituição e nomear pessoalmente um administrador temporário.

A notícia apanhou praticamente toda a rede internacional da Cáritas de surpresa.

O pequeno decreto, pessoalmente assinado pelo Papa Francisco, era parco em explicações: “A Cáritas Internacional assiste o Santo Padre e os bispos no exercício do seu ministério junto dos mais pobres e mais necessitados, participando na gestão de emergências humanitárias e colaborando na difusão da caridade e justiça no mundo, à luz do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja Católica. De modo a melhorar o desempenho desta missão, afigura-se necessário rever os estatutos e regulamentos, tornando o quadro regulatório atual mais adequado às funções estatutárias da organização, bem como para prepará-la para as eleições que vão acontecer na próxima Assembleia Geral.”

“Com o desejo de encorajar a reforma proposta da organização”, o Papa Francisco nomeou Pier Francesco Pinelli como “administrador temporário da Cáritas Internacional, pelo que, a partir de 22 de novembro de 2022, ele a administrar temporariamente ad nutum [em dependência direta] da Sé Apostólica, com todos os poderes de governo, de acordo com a lei, os estatutos e os regulamentos da organização”. Nestas funções temporárias, Pinelli será apoiado por Maria Amparo Alonso Escobar (que já pertencia aos quadros da Cáritas) e pelo padre português Manuel Morujão, antigo porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa.

Pope Francis Attends An On-line Council Of Cardinals

A decisão de afastar a cúpula da Cáritas Internacional foi tomada pessoalmente pelo Papa Francisco

Getty Images

“Com a entrada em vigor deste decreto, os membros do Conselho de Representantes e da Administração, o presidente e os vice-presidentes, o secretário-geral, o tesoureiro e o assistente eclesiástico deixam de ter os seus cargos”, determinou o Papa. Estava assim demitida toda a cúpula da Cáritas Internacional, que ficou temporariamente nas mãos de uma equipa pessoalmente nomeada pelo Papa.

Ao mesmo tempo que o comunicado era publicado no boletim oficial do Vaticano, a notícia chegava aos trabalhadores da Cáritas reunidos em Roma pela voz do cardeal filipino Luis Antonio Tagle, que até àquele momento era o presidente da Cáritas — e que também perdia o seu cargo naquele momento. A Cáritas Portuguesa não esteve representada na reunião, mas a surpresa chegou a Portugal em poucos minutos. “Soubemos da notícia todos da mesma maneira. Estava a acontecer uma reunião a nível internacional e, fora dos trabalhos da agenda, foi feito este anúncio pelo próprio cardeal Tagle. Depois, a informação foi circulando e foi comunicada aos presidentes das Cáritas dos vários países”, explicou ao Observador a responsável de comunicação da Cáritas Portuguesa, Márcia Carvalho. Mas, afinal, o que tinha acontecido que justificasse uma demissão em massa decidida pessoalmente pelo próprio Papa?

Fechado em copas, Vaticano garante: não foi dinheiro nem sexo

O decreto de Francisco não incluiu qualquer explicação sobre os motivos da decisão, mas a partir de outros organismos no interior do Vaticano foi possível descortinar alguns — mas poucos — detalhes do que está e, sobretudo, do que não está em causa.

Pope Francis Leads Extraordinary Consistory

O cardeal Luis Antonio Tagle era até aqui o presidente da Cáritas Internacional

Getty Images

O primeiro sinal surgiu numa declaração publicada no site da Cáritas Internacional, com informações prestadas pelo Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral (DPDHI) — o “ministério” do governo da Igreja Católica que é responsável pela supervisão da Cáritas. Nesse texto, o Vaticano explicou que a decisão tomada pelo Papa Francisco surgiu na sequência de uma auditoria interna realizada durante este ano.

“No início deste ano, o DPDHI encomendou uma auditoria ao ambiente de trabalho do secretariado-geral da Cáritas Internacional e ao seu alinhamento com os valores católicos da dignidade humana e do respeito por cada pessoa. A auditoria foi levada a cabo por um painel de especialistas independentes que incluíram, além de [Pier Francesco] Pinelli, os psicólogos Enrico Parolari e Francesca Busnelli. Atuais e antigos funcionários da Cáritas Internacional foram convidados a participar. Não surgiu qualquer prova de má gestão financeira ou de condutas sexuais impróprias, mas, do trabalho do painel, surgiram outros temas importantes e áreas que necessitam de atenção urgente. Foram notadas reais deficiências na gestão e nos procedimentos, que prejudicaram gravemente o espírito de equipa e o moral dos funcionários”, lê-se na comunicação do Vaticano.

Embora o texto da Santa Sé não inclua pormenores sobre as tais “deficiências” que foram encontradas, o Vaticano foi expedito a reiterar que não houve questões relacionadas com abusos sexuais ou escândalos financeiros. No momento da reunião magna em que o decreto do Papa Francisco foi lido aos funcionários da Cáritas Internacional, com a presença do cardeal Tagle e também do cardeal checo Michael Czerny, prefeito do DPDHI, o prelado filipino garantiu, sublinhando três vezes: “Gostaria de vos assegurar que isto não é, não é, não é sobre assédio sexual ou abuso sexual. Isto não é, novamente, sobre má gestão de dinheiro. O decreto é claro nesta intenção.”

De facto, no comunicado do DPDHI, lê-se que a Cáritas Internacional “foi colocada sob administração com o objetivo de melhorar as suas normas e procedimentos de gestão, apesar de as questões financeiras terem sido bem geridas e os objetivos de angariação de fundos terem sido regularmente alcançados”.

Numa análise ao caso recentemente publicada no jornal especializado Crux, o jornalista norte-americano John Allen, veterano e reputado analista dos assuntos do Vaticano, sublinhou a relevância desta comunicação para perceber o momento que a Igreja enfrenta atualmente. “Não foi dada nenhuma explicação real para a abrupta interferência papal além de uma espécie de via negativa, ou seja, sabemos quais não foram as razões, já que o comunicado do Vaticano disse que não havia provas de incorreções financeiras ou sexuais”, escreveu Allen, acrescentando: “É revelador do que é a Igreja Católica em 2022 o facto de, quando alguém é despedido, ser preciso dizer bem alto que não foi por causa de dinheiro ou de sexo — porque se não for dito, toda a gente irá assumir que uma dessas duas coisas foi o motivo.”

"É revelador do que é a Igreja Católica em 2022 o facto de, quando alguém é despedido, ser preciso dizer bem alto que não foi por causa de dinheiro ou de sexo — porque se não for dito, toda a gente irá assumir que uma dessas duas coisas foi o motivo."
John Allen, vaticanista norte-americano

Um outro detalhe que consta do comunicado do DPDHI pode dar pistas para compreender — embora também pela chamada via negativa — o que terá estado na origem do afastamento repentino de toda a liderança da Cáritas Internacional. Ao explicar que a administração temporária da organização caberá a Pier Francesco Pinelli e Maria Amparo Alonso Escobar, o comunicado afirma: “Pinelli e Alonso vão gerir as operações da Cáritas Internacional e garantir estabilidade e uma liderança empática.” A formulação parece confirmar um conjunto de relatos, entretanto surgidos do interior da organização, que apontam para acusações de bullying e incompetência do até aqui secretário-geral da Cáritas, Aloyisus John.

Bullying e incompetência”

Como presidente da Cáritas Internacional, o cardeal Luis Antonio Tagle representa o poder do Papa sobre a organização, mas a gestão executiva cabe a um secretariado-geral, que até agora era liderado por Aloysius John, natural da Índia, e com dupla nacionalidade francesa. John, que já fazia parte da hierarquia da Cáritas Internacional como responsável pelo desenvolvimento institucional, foi eleito em 2019, após uma assembleia geral de quatro dias — e a sua prestação como líder da organização já foi alvo de controvérsia.

Aloysius John tinha chegado à estrutura central da Cáritas Internacional em 2013, quando o antigo secretário-geral da organização, o francês Michel Roy (eleito para o cargo em 2011), o levou para Roma como responsável pelo desenvolvimento institucional. Em 2019, depois de Roy cumprir dois mandatos de quatro anos à frente da Cáritas, Aloysius John candidatou-se ao cargo. O jornal Crux e a Associated Press contam que John só foi eleito depois de vários outros candidatos terem desistido — e, numa primeira fase, não foi capaz de reunir uma maioria de votos. O mandato começava, assim, com o pé esquerdo.

Aloysius John era o secretário geral da Cáritas Internacional desde 2019

Página de Facebook da Cáritas Internacional

Porém, nos meses seguintes, veio a público um escândalo que lançou sérias dúvidas sobre a atuação da hierarquia da Cáritas Internacional sob a liderança de Roy. A polémica foi espoletada por uma investigação publicada em novembro de 2019 pela CNN: um padre belga que já havia sido condenado por abusos sexuais de menores na Europa tinha sido enviado para a República Centro-Africana, para trabalhar numa missão gerida pela Cáritas e para dirigir o ramo centro-africano da Cáritas, onde voltaria a abusar de pelo menos mais duas vítimas, o que o levou a ser afastado do sacerdócio. A Cáritas, à época já liderada por Aloysius John, publicou um comunicado a garantir que iria assegurar que o padre em questão não voltaria a trabalhar com crianças. Todavia, alguns dias depois de o escândalo ter vindo a público, o antigo secretário-geral da Cáritas Internacional, Michel Roy, assumiu publicamente que já tinha sido informado, em 2017, por um psicólogo de que o padre em questão não podia estar em contacto com crianças, devido ao seu passado (embora tenha garantido que não sabia da condenação judicial anterior). Roy assumiu, porém, que se limitou a informar a Cáritas da República Centro-Africana daquela carta e a pedir à organização regional que tratasse do assunto. O assunto foi dado como resolvido — mas o padre belga manteve-se em funções e em contacto com crianças, tendo voltado a abusar.

O escândalo lançou sombras sobre a idoneidade da Cáritas Internacional sob a liderança de Michel Roy — e de Aloysius John, que tinha chegado à organização pela mão de Roy, que tinha pertencido à cúpula da Cáritas com ele e que agora era o seu sucessor.

O modo como a Cáritas Internacional lidou com o desenrolar daquele caso de abusos foi um dos temas agora apontados como exemplo da incompetência de Aloysius John à frente da organização, revelou a Associated Press, citando “um antigo funcionário da Cáritas que cooperou com a auditoria externa”. Segundo a agência, aquele funcionário relatou aos especialistas “situações de bullying e incompetência sob [a liderança de] John, especialmente no modo como lidou com o desenrolar de um escândalo de abusos sexuais nas operações da Cáritas na República Centro-Africana”.

“O antigo funcionário falou sob anonimato, alegando medo de represálias”, explicou ainda a Associated Press.

Adicionalmente, o jornal Crux assinalou também a existência de “rumores” que apontam para uma “liderança de mão pesada” e “gestão suspeita” durante o mandato de Aloysius John. Esses rumores poderão explicar o que aconteceu na reunião que decorreu esta semana em Roma: naquilo que foi entendido como um sinal de descontentamento dos funcionários da Cáritas Internacional relativamente a John, o portal de notícias do Vaticano revelou, na sua edição em italiano, que parte dos participantes aplaudiram “algumas passagens” do decreto do Papa Francisco, no momento em que foi lido pelo cardeal Tagle. “Também aplaudiram quando o cardeal pediu ao novo comissário Pier Francesco Pinelli, que já era consultor em vários setores de gestão e financeiros da Cáritas, que se levantasse e se apresentasse à assembleia.”

Aloysius John durante um discurso na reunião que decorreu esta semana em Roma

Página de Facebook da Cáritas Internacional

Falando aos participantes na reunião, o cardeal Tagle reconheceu a perplexidade com que a notícia foi recebida pela organização: “Sim, esta novidade poderá, talvez, provocar alguma preocupação ou confusão a alguns de vós. Mas podem estar certos de que esta decisão do Santo Padre surge depois de um estudo cuidadoso e independente sobre o ambiente de trabalho do secretariado e sobre o governo exercido pelas pessoas e órgãos responsáveis.” No mesmo discurso, Tagle disse que a decisão do Papa Francisco é um “apelo a uma caminhada humilde com Deus e a um processo de discernimento” sobre o funcionamento da Cáritas Internacional.

As intervenções do cardeal Michael Czerny, prefeito do DPDHI, e do novo administrador temporário da Cáritas Internacional, Pier Francesco Pinelli, ajudam a compreender um pouco melhor os problemas que terão estado na origem da destituição em massa da liderança da instituição. “A decisão do Santo Padre tem o objetivo de melhorar o governo e de tornar os processos de gestão da Cáritas Internacional mais eficazes”, disse Czerny na reunião de Roma. “Houve uma atenção insuficiente ao cuidado das pessoas que é necessário para acompanhar os processos de mudança.”

“A Cáritas Internacional é o ponto de ligação na Santa Sé para todas as Cáritas, que levam a caridade do Papa a todos os lugares onde é necessária. Por isso, a sua gestão tem de estar à altura da sua missão: a difusão da caridade e da justiça no mundo à luz do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja Católica”, acrescentou o cardeal checo responsável pela supervisão da instituição.

Em Portugal, os colaboradores da Cáritas Portuguesa também foram apanhados de surpresa. Segundo explicou Márcia Carvalho ao Observador, a própria realização da auditoria interna não era do conhecimento da maioria dos funcionários da Cáritas Portuguesa, uma vez que essa investigação se centrou no secretariado-geral da Cáritas Internacional — o organismo central da confederação das Cáritas, que, porém, têm autonomia, funcionando em rede. A responsável disse ainda que os elementos da Cáritas Portuguesa conheciam Aloysius John apenas de reuniões, maioritariamente à distância, nas quais “não transparecia” qualquer sinal que apontasse para o baixo moral das equipas em Roma, como concluiu a auditoria.

“Sabemos que a partir de 2019 houve efetivamente muitas mudanças”, assumiu Márcia Carvalho. Porém, “tudo o que fizemos em matéria de trabalho, por exemplo a ajuda à Ucrânia, que foi coordenada pela Cáritas Internacional, correu bem, as coisas fluíram”. No geral, havia uma “relação de trabalho tranquila e positiva” entre a Cáritas Internacional e a Cáritas Portuguesa. Aparentemente, a situação não era bem assim: o descontentamento dos trabalhadores do secretariado geral, em Roma, era suficientemente grande para levar o Papa Francisco a intervir pessoalmente.

Uma afirmação da autoridade papal

A intervenção direta do Papa Francisco na hierarquia da Cáritas Internacional parece indicar uma situação de enorme gravidade. Basta pensar que cerca de 16% da população mundial é católica e que, além de ser o líder espiritual de cerca de 1,3 mil milhões de pessoas, o Papa é também o responsável máximo de centenas de instituições em todo o planeta: uma intervenção direta do pontífice na organização interna de uma instituição terá inevitavelmente de ser um último recurso, motivado por causas graves.

epa10288174 A handout picture provided by the Vatican Media shows Pope Francis during the meeting with young people at the school of the Sacred Heart, Bahrain, 05 November 2022.  EPA/VATICAN MEDIA HANDOUT  HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

O Papa Francisco determinou o afastamento de toda a liderança da Cáritas Internacional e nomeou um administrador temporário

VATICAN MEDIA HANDOUT/EPA

Todavia, uma intervenção desta natureza não é, propriamente, inédita. Algo comparável aconteceu recentemente na Ordem de Malta, uma das mais poderosas instituições católicas do mundo.

Apesar de complexo, o episódio conta-se em poucas linhas.

Inicialmente criada como ordem soberana militar, a Ordem de Malta é uma das mais antigas instituições da Igreja. Foi fundada como ordem religiosa no século XI para prestar assistência a quem peregrinava até Jerusalém, mas transformou-se numa ordem de cavaleiros com a missão de proteger a Terra Santa. Hoje, com mais de 13 mil membros a nível global, ainda preserva títulos e práticas militares, mas é essencialmente uma ordem religiosa que se dedica ao trabalho social — embora continue bastante ligada aos setores mais conservadores e até aristocráticos da Igreja Católica. O seu patrono era, aliás, o cardeal ultraconservador Raymond Burke, considerado o principal opositor do Papa Francisco. Sendo uma ordem soberana, é uma entidade reconhecida como tal à luz do direito internacional e tem relações diplomáticas com vários países (Portugal incluído), mas o Vaticano tem uma palavra a dizer sobre o que se passa lá dentro.

O Papa Francisco e a Ordem de Malta. O que se está a passar no Vaticano?

A recente crise da milenar Ordem de Malta teve início em 2014, com a eleição do alemão Albrecht von Boeselager para o cargo de Grande-Chanceler. Nessas funções, Von Boeselager terá permitido a manutenção de projetos sociais de apoio aos mais pobres na Birmânia, ligados à Ordem de Malta, onde eram distribuídos preservativos — algo que vai contra a doutrina católica, que rejeita os métodos contracetivos. A ideia não agradou ao então Grão-Mestre da Ordem de Malta, Matthew Festing, que exigiu a demissão de Von Boeselager, alegando que tinha sido o Papa a pedi-lo.

Não conformado, Von Boeselager e os cavaleiros que o apoiavam apresentaram um recurso ao Papa, que decidiu nomear uma comissão de inquérito para clarificar a situação. Na sequência desse inquérito, Festing seria afastado e o Vaticano determinou que se iniciasse um processo de reforma da Ordem de Malta. O processo de reforma culminou já este ano, com a aprovação de uma nova constituição para a instituição, com alterações radicais, subordinadas a uma ideia central: a organização é, antes de mais nada, uma ordem religiosa, pelo que está sob a autoridade do Papa.

A mensagem do Papa Francisco era clara: não admitiria, entre as organizações católicas, desvios em relação à unidade da Igreja simbolizada pelo bispo de Roma.

Por outro lado, também não é a primeira vez que o Vaticano intervém diretamente na cúpula hierárquica da Cáritas Internacional. Em 2011, a Santa Sé proibiu a então secretária-geral da organização, a britânica Lesley-Anne Knight, de se voltar a candidatar ao cargo, devido a um conjunto de declarações da responsável que caíram mal no Vaticano. Na altura, Knight fez duras críticas à supervisão do Vaticano em relação à Cáritas Internacional, acusando a Santa Sé de não ter noção do que é o trabalho humanitário no terreno. Uma das principais razões para a proibição da recandidatura de Knight terá sido o facto de a britânica não estar alinhada com as reservas que o Vaticano tinha em relação à colaboração da Cáritas com organizações no terreno que promoviam, por exemplo, a distribuição de contracetivos às populações desfavorecidas.

A Cáritas Internacional vai ser liderada por Pier Francesco Pinelli, um consultor organizacional italiano que também fez parte do painel de auditores que realizaram a investigação interna.

O cardeal hondurenho Oscar Rodriguez Maradiaga ainda tentou interceder em favor de Knight, mas sem sucesso — e hoje Maradiaga é o coordenador do Conselho de Cardeais, o restrito conselho consultivo do Papa Francisco.

Para o vaticanista John Allen, esta nova intervenção papal é apenas mais um exemplo de como os papas encontram, “a bem ou a mal”, uma maneira de afirmar a sua autoridade sobre as instituições da Igreja. “Aquilo que as sacudidelas sob Bento XVI e Francisco têm em comum é que ambos são lembretes de que, embora os trabalhadores da Cáritas se movimentem em círculos muito diferentes dos oficiais do Vaticano e o fluxo de trabalho diário na Cáritas promova uma sensação de autonomia, a organização continua sob a autoridade papal.”

O empresário “humanista” das energias renováveis que vai administrar a Cáritas

Pelo menos até maio do próximo ano, a Cáritas Internacional vai ser liderada por Pier Francesco Pinelli, um consultor organizacional italiano que também fez parte do painel de auditores que realizaram a investigação interna. “Pinelli é um consultor organizacional e administrador bastante conhecido”, descreve o comunicado da Santa Sé.

Segundo o Vaticano, Pier Francesco Pinelli soma a um longo percurso profissional na administração de empresas uma formação católica de inspiração jesuíta e décadas de trabalho voluntário. O portal de notícias da Santa Sé destaca o “contexto de espiritualidade inaciana” e um trabalho voluntário que inclui “a reinserção de toxicodependentes, a cooperação para o desenvolvimento, o apoio a trabalhos missionários e catequeses”. Este contexto dá a Pinelli “um modo de proceder mais humanista do que técnico”, salienta o Vaticano.

Formado em engenharia civil pela Universidade de Roma La Sapienza, Pier Francesco Pinelli entrou no mundo empresarial no final da década de 1980, tendo passado por várias empresas de energia — com especial ligação ao desenvolvimento de energias renováveis, tendo sido CEO e presidente de grandes empresas italianas. Pelo meio, esteve ligado aos meios culturais, tendo supervisionado um programa do governo italiano para a requalificação das óperas do país. Desde 2012, era sócio de uma consultora empresarial italiana.

Agora, Pinelli vai ter como missão a gestão quotidiana da Cáritas Internacional até maio do próximo ano e, sobretudo, a revisão das normas e procedimentos da organização, como modo de preparação da assembleia geral agendada para essa altura — ocasião em que vão ser eleitos os novos responsáveis máximos.

Nessa tarefa, Pinelli vai ser auxiliado pela espanhola Maria Amparo Alonso Escobar, que atualmente já trabalhava nos quadros da Cáritas Internacional, como responsável pela defesa dos direitos humanos na atuação da instituição, e pelo padre jesuíta português Manuel Morujão, antigo porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa.

Além disso, o cardeal Luis Antonio Tagle, apesar de ter perdido o seu cargo de presidente da Cáritas, vai continuar a acompanhar a instituição, servindo de elo de ligação entre o administrador temporário e o resto dos responsáveis da cúpula hierárquica. Ainda assim, a sua reputação já não escapa a uma mancha criada por todo este caso — sobretudo tendo em conta que Tagle tem sido um dos principais nomes apontados como possíveis sucessores do Papa Francisco na liderança da Igreja Católica, situação em que se tornaria o primeiro Papa asiático da história.

Pope Francis and Luis Antonio Tagle

O cardeal filipino Luis Antonio Tagle é um dos principais aliados do Papa Francisco e tem sido apontado como possível sucessor

Mondadori Portfolio via Getty Im

Citando novamente o vaticanista John Allen, não só os alegados problemas na gestão de Aloysius John ocorreram durante o mandato de Tagle como presidente da Cáritas, como o cardeal filipino é um dos mais poderosos e leais aliados do atual Papa, o que mostra “o quanto Francisco acredita que está em jogo”.

Crise na liderança mundial não ameaça apoio a 120 mil portugueses vulneráveis

No comunicado divulgado pelo Vaticano, lê-se que a nomeação de um administrador temporário “não tem qualquer impacto no funcionamento das organizações membro e dos serviços de caridade e solidariedade que asseguram em todo o mundo; pelo contrário, serve para reforçar esse serviço”.

Ao Observador, a responsável de comunicação da Cáritas Portuguesa confirmou que a situação de crise na cúpula internacional da Cáritas não afeta os trabalhos em Portugal. “A indicação que tivemos foi que isto não traz consequências para a rede nacional”, disse Márcia Carvalho. Aliás, o Conselho Geral da Cáritas Portuguesa está reunido este fim-de-semana, num encontro de três dias que decorre no Funchal, com representantes das Cáritas Diocesanas de todo o país e cuja programação não sofreu alterações.

O encontro terá como “principal foco a análise e planeamento da ação da Cáritas em Portugal”. É nesta reunião que vão ser apresentados e aprovados o plano de atividades e o orçamento para o ano de 2023 e que vão ser discutidos temas “de análise social transversais a todas as realidades da rede Cáritas, como, por exemplo, o apoio a estrangeiros (migrantes e refugiados)”.

Segundo explicou Márcia Carvalho, a Cáritas Portuguesa — a organização representativa de Portugal na rede internacional da Cáritas — está por seu turno dividida em 20 Cáritas Diocesanas (nas 20 dioceses católicas portuguesas), que também têm desdobramentos paroquiais. É através dessa rede capilar que a Cáritas presta assistência a centenas de milhares de portugueses que passam por situações de especial vulnerabilidade ou pobreza.

Cáritas Portuguesa garante que o trabalho social em Portugal não está em causa devido à crise na liderança da Cáritas Internacional

Artur Machado/Global Imagens

A nível nacional, a Cáritas acompanha atualmente 120 mil pessoas por ano em atendimento social. Trata-se, de acordo com Márcia Carvalho, de pessoas que abordam a Cáritas com um conjunto de necessidades sociais, que incluem pedidos de apoio na alimentação, vestuário e até suporte financeiro para pagamento de despesas pontuais como faturas de energia ou rendas. Além disso, as Cáritas Diocesanas têm diferentes projetos sociais por todo o território nacional, incluindo casas de tratamento da toxicodependência, serviços de apoio domiciliário ou ainda projetos de ajuda na busca de emprego.

Nenhuma destas atividades é posta em causa pela atual crise na liderança da Cáritas Internacional, vincou Márcia Carvalho.

Ainda assim, a Cáritas Portuguesa tem alertado nos últimos meses para as crescentes dificuldades em dar resposta a todas as necessidades sociais, que aumentaram em consequência da pandemia, dos impactos da guerra e da inflação. No início deste mês, a organização revelou que “luta para dar resposta ao aumento das solicitações, à sua diversidade e, por outro lado, ao aumento dos custos de gestão”, para garantir que quem procura ali apoio “encontra sempre uma porta aberta e a resposta de emergência de que necessita”.

Segundo a Cáritas, nos últimos meses registou-se um “aumento generalizado em todo o país dos pedidos de ajuda”, oriundos, principalmente, de “famílias de classe média e média-baixa”. Além disso, a organização destaca que “há uma tendência comum para um aumento da procura por parte de famílias em situação de empregabilidade” — ou seja, pessoas que têm o seu emprego estável e que já não conseguem fazer face a todas as suas despesas crescentes.

“O acesso à habitação constitui uma das principais dificuldades para a integração de pessoas vulneráveis, nomeadamente jovens estudantes, famílias com baixo rendimento e pessoas sem abrigo. Não há medidas políticas nem estratégias que permitam vislumbrar soluções no curto prazo, o que compromete o futuro de muitos”, diz ainda a Cáritas, salientando que existe também um “aumento generalizado de famílias de outros países que procuram ajuda de emergência”.

Em contrapartida, regista-se um “decréscimo de disponibilidade por parte dos doadores e as medidas com vista à sustentabilidade das respostas sociais tardam em chegar”, o que leva a Cáritas a antever, em Portugal, “um final de ano de 2022 e um início de ano de 2023 muito preocupante”.

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