João Leão está à espera que a CGD contribua com quase 160 milhões de euros para o difícil equilíbrio das contas públicas no próximo ano. Mas há uma grande probabilidade de a Caixa não poder fazer essa distribuição de dividendo ao seu único acionista, o Estado. Os bancos europeus estão proibidos pelo supervisor, o BCE, de pagar dividendos até ao final deste ano e em dezembro será tomada uma decisão sobre se essa proibição é (uma vez mais) prolongada – uma decisão que terá em conta a evolução da pandemia e da crise económica. Se, como acreditam as fontes do setor financeiro ouvidas pelo Observador, a decisão for no sentido de um prolongamento da proibição, o ministro das Finanças fica com um “buraco” de 160 milhões de euros no orçamento.
Em termos comparativos, 160 milhões de euros é mais do que os 99 milhões que o Estado reservou para pagar o aumento extraordinário das pensões (que começa em agosto). “Não é um valor que ameace fundamentalmente a execução orçamental – ainda mais num ano como 2021 em que há elementos de incerteza ainda maiores em outras áreas – mas não deixa de ser uma inscrição muito questionável tendo em conta que um Orçamento do Estado deve procurar ser um exercício conservador, com previsões cautelosas“, diz uma fonte do setor financeiro ao Observador. Essa fonte, tal como várias outras com quem o Observador falou sobre esta matéria, concorda que, com a pandemia a abalar novamente quase todos os países europeus, é muito provável que a proibição de dividendos seja prolongada por parte do supervisor europeu.
Nesta fase, ao prever-se a entrega de um dividendo em 2021 (sobre os lucros de 2020) não existe uma infração das regras do BCE, porque a proibição anunciada em março foi prolongada, em julho, até ao final de 2020. Mas se houver um prolongamento, isso poderá impedir a Caixa de entregar o valor ao Estado, o que acontece habitualmente em maio/junho de cada ano.
Contudo, esta não é apenas uma questão de o poder fazer mas, também, uma questão de o dever fazer.
A Caixa Geral de Depósitos ficou com rácios de capital muito confortáveis depois da recapitalização de 2016/2017 – eram de 16,6% no final do primeiro semestre, um rácio de capital que beneficiou do facto de se ter cancelado, devido à pandemia, a entrega do dividendo de 300 milhões de euros que estava previsto para maio último (relativo aos lucros do exercício de 2019).
Uma das fontes ouvidas pelo Observador lembra que, ainda mais num contexto em que devido à pandemia as taxas de juro deverão estar em mínimos históricos por mais tempo, a prioridade da gestão da Caixa não devia ser pagar dividendos ao Estado mas, sim, proteger ao máximo a margem financeira, isto é, o indicador-chave na banca que, em termos simples, diz respeito à diferença entre aquilo que a Caixa recebe dos créditos que concede e, por outro lado, aquilo que a Caixa paga pelo financiamento que obtém (depósitos de clientes, BCE, etc.).
A pressionar de forma significativa essa margem financeira estão os títulos de dívida perpétua que o banco público teve de emitir, em 2017, junto de investidores internacionais, para demonstrar no âmbito da recapitalização pública que não era um banco sem acesso aos mercados privados (e que, por essa razão, o auxílio estatal não era uma ajuda pública ilegal). Foi uma demonstração de acesso ao mercado que foi essencial para as autoridades europeias deixarem o dinheiro dos contribuintes entrar no banco, mas saiu – e continua a sair – muito caro ao banco pagar os juros desses títulos.
São 500 milhões de euros em obrigações que têm um cupão pago trimestralmente de cerca de 10,75%, ou seja, prejudicam o resultado líquido da Caixa em 53,75 milhões de euros por cada ano. Num ambiente de taxas de juro baixíssimas – em que o Estado se financia a custos próximos de zero – este é um passivo financeiro muito oneroso para as contas da Caixa. A boa notícia é que em março de 2022 existe uma call, ou seja, uma possibilidade de amortizar antecipadamente os investidores, pondo fim ao custo anual que essas obrigações comportam.
Para que esse pagamento possa ser feito, porém, é preciso folga de capital. “E toda a gestão devia estar concentrada nesse objetivo, de garantir que no final do próximo ano há folga de capital para acabar com esses títulos de dívida perpétua – não é estar a pagar dividendos ao Estado”, diz uma das fontes do setor financeiro ouvidas pelo Observador.
Contactada pelo Observador, fonte oficial da Caixa Geral de Depósitos indicou que “não vai, nesta fase, responder a questões sobre o Orçamento de Estado”. Já fonte oficial do Ministério das Finanças, afinal o responsável pela inscrição da estimativa de dividendo na proposta de OE2021, confirmou que “o valor inscrito na proposta de Orçamento do Estado para 2021 corresponde à atual estimativa de distribuição de dividendos para o próximo ano”.
Finanças reconhecem que BCE e economia são riscos para o dividendo
Sem explicar exatamente como se chegou àquele número, o gabinete de João Leão diz que “esta estimativa tem em conta a robustez da CGD em termos de requisitos de capital e de outros indicadores relevantes por comparação com o setor bancário nacional“, afirma o Ministério das Finanças, acrescentando que “a CGD conclui no final deste ano o seu plano estratégico iniciado em 2017, encontrando-se hoje mais preparada para absorção de choques e para enfrentar os desafios colocados pela atual situação económica e financeira global, contribuindo para a estabilidade do sistema financeiro”.
O Ministério das Finanças acautela, porém, que as decisões que vierem a ser tomadas nesta matéria “durante o ano de 2021 terão em consideração as recomendações das autoridades de regulação e supervisão e a evolução da atividade económica“. Ou seja, as Finanças reconhecem que o ritmo da recuperação económica pode obrigar a riscar o dividendo da Caixa, desde logo porque é da recuperação económica que depende, em grande medida, o que vai acontecer com as moratórias de crédito que em junho já equivaliam a 22% da carteira dos bancos portugueses. Quanto mais moratórias acabarem por ser reconhecidas como crédito em incumprimento, mais destruição de capital os bancos vão sofrer.
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As Finanças garantem, também, que naturalmente irão respeitar as decisões do regulador sobre este tema, neste caso o BCE, que supervisiona a Caixa Geral de Depósitos. Em finais de julho, quando o BCE prolongou a proibição pan-europeia de pagamento de dividendos aos acionistas (sejam eles estatais ou privados), o supervisor indicou que “no quarto trimestre o BCE vai reanalisar se esta medida continua a ser necessária, levando em consideração o clima económico, a estabilidade do sistema financeiro e a solidez dos planos de capital” dos diferentes bancos”. Com a incerteza causada pelo que alguns cientistas já consideram ser uma “segunda onda” de contágio do coronavírus, um pouco por toda a Europa, parece provável que o BCE prolongue a proibição pelo menos mais alguns meses.
Contactada, fonte oficial do BCE recusou fazer comentários sobre a situação individual de bancos específicos. Já sobre a proibição de pagar dividendos, a nível europeu, sabe-se que será em dezembro que o BCE voltará a refletir sobre esta matéria. O italiano Andrea Enria, presidente do Mecanismo Europeu de Supervisão (organismo do BCE), reconheceu num encontro com jornalistas no final de julho que, embora tenha consciência que os investidores não gostam de proibições de dividendos, esta é uma altura em que é necessário ser “prudente”.
“Vamos rever esta decisão em dezembro. Se, nessa altura, conseguirmos prever com maior certeza o impacto das perspetivas macroeconómicas na qualidade dos ativos da banca, e se os nossos supervisores estiverem convencidos de que as projeções de capital dos bancos são suficientemente credíveis, estão iremos retirar a nossa recomendação e regressar a uma avaliação individualizada sobre a capacidade de cada banco poder pagar dividendos aos acionistas”, afirmou Andrea Enria. Contudo, “preferimos ser prudentes hoje para não correr o risco de nos arrependermos amanhã, caso as condições económicas continuem a deteriorar-se”.
Estas foram declarações feitas em final de julho, muito antes de quase todos os países europeus voltarem a registar um agravamento da crise sanitária, ao ponto de serem relançadas medidas restritivas que, mesmo que se evitem novos confinamentos generalizados, não deixarão de ter um impacto negativo na atividade económica.