O dia decisivo para o Orçamento de 2021 começa, para a líder do Bloco de Esquerda, no Observador. Manhã de chuva com Catarina Martins a desejar que abençoe a noite de negociações que se antecipa. Ao fim do dia é recebida pelo primeiro-ministro em São Bento, numa derradeira tentativa de um acordo que permita viabilizar o Orçamento do próximo ano. E tenta esvaziar uma tensão, convergindo com António Costa num ponto: afinal ter o país sem Orçamento e gerido em duodécimos é “irresponsável”. Para contornar um eventual chumbo deste orçamento, Catarina Martins lembra, no entanto, que Costa pode sempre apresentar outro.
No passado recente, estão as declarações de um dirigente do BE em sentido contrário. Mas Catarina Martins sacode esse peso de cima e também a crítica que o primeiro-ministro lhe associou na noite anterior, na TVI. Dá o seu guião para a negociação na saúde, no novo apoio social e no Novo Banco (onde há uma nuance diferente), fala da TAP e revela que não descarregou a aplicação Stayaway Covid”. Mas a conversa tinha de começar pelo que aconteceria ao fim do dia.
[O essencial da entrevista a Catarina Martins:]
“Aceitamos discutir a condição de recursos para o apoio extraordinário”
Hoje tem uma reunião com o primeiro-ministro, é a última oportunidade para chegar a entendimento sobre o OE para 2021?
É bom que hoje haja avanços. Espero que seja possível, estamos a trabalhar para isso.
Estamos a uma semana da votação na generalidade e já sabemos que o Bloco de Esquerda traçou quatro linhas vermelhas e que não tem o acordo total do Governo. Em que é que o BE admite ceder para conseguir chegar a um acordo?
O Orçamento do Estado é um documento global. O BE não definiu quatro linhas vermelhas, definiu quatro áreas prioritárias para a negociação com o Governo. É importante que exista acordo nessas quatro áreas, sobre as quais temos vindo a desenhar propostas e tentativas de aproximação, para que o Bloco possa viabilizar o OE. Essas quatro áreas são muito simples: saúde e capacidade do SNS responder ao Covid e não-Covid; a proteção Social, há muita gente que com a crise pandémica perdeu completamente os rendimentos; que os apoios à economia tenham alguma forma de reverter em emprego e salário. E temos depois uma divergência que tem a ver como é que o Estado age face aos indícios de que há um acionista de um banco, a LoneStar, que está a jogar contra o Estado. Todos os partidos estão de acordo em que é preciso haver uma auditoria que investigue o que se está a passar. O que o BE acrescenta é que se estamos todos preocupados então que sejamos todos conscientes. Não podemos garantir à LoneStar injeções [de capital] antes de haver essa investigação
Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, disse, na semana passada, que o Governo está disponível para estender a duração do apoio social e estabelecer uma calendarização das contratações para o SNS. Estes dois pontos são um bom princípio de conversa?
Na verdade é ficarmos um bocadinho parados onde estávamos. Em relação à proteção social começámos por debater com o Governo uma nova prestação social que não deixasse as pessoas que perderam o rendimento com a crise, independentemente do vínculo laboral. O Governo, em vez de uma prestação social, o que fez no Orçamento do Estado e o que acabou por ficar foi uma espécie de apoios extraordinários, como os que existiram este ano, mas revistos em baixa do ponto de vista do valor e com uma duração muito pequena de seis meses e não um ano. Para muitos setores seis meses é nada.
O que é que é razoável para o Bloco de Esquerda?
Devia ser uma prestação que durasse o ano todo. As pessoas para acederem a esta prestação é porque não têm emprego. É como o subsídio de desemprego.
Mas já há aqui uma possibilidade de isso acontecer, de ser mais longo que os seis meses. Se for para um ano está resolvido ou há um valor também?
O problema não é só o valor. A ideia que o que distingue o Bloco de Esquerda do Governo é sempre o valor não nos ajuda a compreender a questão estrutural. Não podemos dizer às pessoas que em seis meses isto vai ficar resolvido. Não vai. Mas também temos a questão de saber que pessoas têm acesso a este apoio. Da forma como o Governo desenhou este apoio, basta que num casal, se um tiver um salário médio de 850 euros e o outro perder todo o rendimento já não tem direito ao apoio. Isto, do nosso ponto de vista não cumpre o objetivo de permitir aguentar uma família enquanto a sua atividade está parada por causa da pandemia. O nosso problema aqui é a chamada condição de recursos. Quando os apoios foram desenhados este ano não contava o rendimento da família toda, contava a condição de cada trabalhador. O que propusemos ao Governo era criar uma nova prestação, avaliada a meio do ano, que pode ser financiada pelos fundos extraordinários de recuperação da UE.
Portanto, alargar para um ano, acabar com a condição de recursos, é isso?
Nós evoluímos, o Governo é que ainda não. O Governo apresentou esta prestação não como uma condição de cada trabalhador, mas com uma condição do agregado familiar com a mesma condição do subsídio social de desemprego. O BE, que nunca tinha querido a prestação com este tipo de condição de recursos, evoluiu na sua posição e aceitou fazer uma condição de recursos familiar, mas que pense em cada membro do agregado familiar. De outra forma, não vai chegar a ninguém.
Além disso também querem que a prestação seja alargada. São essas as condições do Bloco?
E que a prestação tenha um valor que verdadeiramente segure estas pessoas.
E qual é esse valor para o BE?
Isto é uma prestação diferencial, não é fixa com o mesmo valor para as pessoas. Dá às pessoas um valor entre o rendimento que perderam e o limiar da pobreza. O máximo serão os 502 euros, o limiar da pobreza em Portugal, e o mínimo é o que nós queríamos definir. Os trabalhadores que tiveram acesso aos apoios extraordinários tiveram acesso a um apoio que é pelo menos 1 Indexante dos Apoios Sociais (IAS), 438 euros. Com a proposta do Governo vão ficar com meio IAS, 219 euros. Queremos que o limite mínimo seja mais alto.
Não têm um valor para esse mínimo?
[Defendemos] um IAS. O mínimo dos mínimos é garantir que quem agora tem um apoio extraordinário e continua sem a sua atividade, porque foi paralisada por causa das questões da saúde pública, não fique com metade do que está a receber hoje. Já para não falar no subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego, em que achamos que os períodos deviam ser estendidos. Para muitas pessoas vai acabar no início de janeiro de 2021. Não tem sentido nenhum que num período pandémico que as pessoas, em janeiro, fiquem sem subsídio de desemprego. São este tipo de discussões que temos tido com o Governo.
E que não têm tido avanços até agora?
Não têm tido avanços, tendo o Bloco de Esquerda evoluído na sua posição. Nós aceitamos agora discutir a condição de recursos para o apoio extraordinário. Queremos é que a condição de recursos não exclua toda a gente da prestação. Dizer-se que há 450 milhões de euros para uma prestação social sem se discutir as condições em que as pessoas vão aceder significa zero, porque pode acontecer o mesmo que aos cuidadores informais: estava lá o dinheiro e ninguém teve acesso.
“Numa pandemia não podemos ter privados a fazer o que lhes apetece”
Avançando para o Serviço Nacional de Saúde, em particular sobre as contratações. É suficiente haver um calendário estabelecido? E como?
Não, porque os concursos ficam vazios. Nós temos de compreender que neste momento as pessoas que trabalham no SNS sentem-se muito mal tratadas e os concursos ficam vazios. E ficam vazios concursos e os hospitais têm problemas em contratar pessoas das mais variadas profissões.
Como é que isso se resolve, então?
Com investimento até em equipamentos básicos, porque não houve investimento e não houve renovação de equipamento desde o tempo da crise financeira. É algo que o Bloco tem vindo a fazer pressão ao longo do tempo. Como sabem, não foi executado no último Orçamento mais uma vez. Tem de haver investimento. E há depois o problema das equipas. Houve um hospital em Barcelos, que perdeu os seus assistentes operacionais quando abriu um supermercado. Porquê? Porque ganhar praticamente o salário mínimo num hospital com a pressão que está a ter o hospital agora ou ir para um supermercado, preferiram ir para o supermercado. Precisamos de reconhecer que há uma carreira específica nos hospitais que são os técnicos auxiliares de saúde, que nunca foi criado e que são considerados assistentes operacionais a ganharem menos do que ganham num supermercado.
Mas qual é a solução?
Há coisas que se podem fazer. Não demora muito tempo. É preciso é coragem política. Reconhecer que tem de haver uma carreira nos hospitais — os auxiliares de saúde –, abrir concursos para vincular enfermeiros, e, mais uma vez, os médicos. O Governo faz um recuo neste Orçamento em relação aos médicos que nos parece muito preocupante. A nova lei de bases da saúde, em que o Bloco de Esquerda se envolveu muito, tem uma questão que é a dedicação plena ao SNS. No Orçamento do Estado para 2020, havia um passo muito pequeno e simbólico mas que começava a dedicação plena. Neste Orçamento do Estado a dedicação plena nem sequer aparece. O Governo ter recuado nesse passo fundamental para que houvesse incentivos para os médicos estarem no SNS é um erro. Como é um erro, por exemplo, não conhecermos ainda uma auditoria às decisões da ordem dos médicos sobre a formação de especialistas. A Ordem dos Médicos faz o que lhe apetece e ninguém percebe porquê. Neste momento há em Portugal já quase mil médicos indiferenciados, que deviam ter acesso à especialidade e não têm. Isto pode custar muito dinheiro ao SNS. E, portanto, aqui não se trata de gastar mais dinheiro, trata-se de gastar bem o dinheiro. Trata-se de gerir bem o SNS.
E dava para lhes pagar durante quanto tempo? É que depois eles ficam nos quadros…
E os prestadores de serviço todos os anos? Todos os anos o SNS tem este gasto com prestadores de serviços.
E seria mais barato do que contratualizar ao privado alguns serviços? Isso é uma hipótese de resolver o problema? Contratualizar mais com o privado.
O contratualizar com o privado deve ser visto em duas perspetivas. Quando o SNS não tem resposta deve contratualizar para ter a resposta. Aliás, o Bloco de Esquerda defendeu logo no início da pandemia que houvesse uma requisição dos privados. Houve privados que fecharam. Nós tivemos enfermeiros e médicos em layoff no país, foi uma verdadeira vergonha. Deviam ter sido requisitados com regras. Uma coisa diferente é o que tem sido feito. É o discurso que a OM e outros têm tido de considerar normal que o Estado em vez de ter um serviço de investimento e robustecimento do SNS vá aumentando sempre as contratualizações com o privado diminuindo a capacidade tecnológica e a capacidade instalada de funcionamento normal do SNS em nome de um privado que fica cada vez mais forte com dinheiros públicos. Qual é o problema? É que o privado depois faz o que lhe apetece. Como nós percebemos numa pandemia, não podemos ter privados a fazer o que lhes apetece. Precisamos de ter um SNS muito forte, muito capaz. É este tipo de planeamento estratégico sobre o SNS e também de fixação de critérios claros sobre o comportamento dos privados que tem faltado ao Governo.
O que é que os privados fizeram que lhes apetecesse na pandemia? Teve o SAMS e um hospital na Trofa que fecharam. Todos os outros hospitais privados se mobilizaram e se puseram à disposição do Governo e se quisermos alargar isso, se não fossem os laboratórios privados onde é que estaríamos nos testes, por exemplo?
Se não fossem as universidades e institutos públicos que começaram a fabricar reagentes…
Isto não é uma guerra, só estou a dizer que houve colaboração.
Claro e essa colaboração deve ter regras. O que não tem sentido nenhum é não haver uma estratégia para o SNS ter mais capacidade, achando que se resolve contratualizando aos privados. A saúde é uma condição de democracia, soberania do país, e, portanto, tem que ter um SNS forte. Nos países onde não há um sistema público, gratuito universal vemos os enormes problemas de acesso à saúde. Por outro lado a relação com os privados deve existir e quando existir deve ser contratualizada. Em Portugal mais de 30% do Orçamento para o Ministério da Saúde é para o privado, fazemos imensas coisas com o privado, mas precisamos de ter regras. Não tem sentido que as instituições de saúde possam organizar os hospitais públicos na reposta ao Covid, mas não possam organizar os hospitais privados. Os hospitais privados quando aparecem como muito solidários com o país o que estão a dizer é que querem que o Ministério da Saúde contratualize nos seus termos. O que dizemos é que no meio de uma pandemia o Ministério da Saúde deve saber os meios que o país tem e distribuir as tarefas e os recursos em todos, privado e público de forma a haver a melhor resposta aos utentes e de forma, naturalmente, a preservar um SNS forte no futuro sem prejuízo do respeito pela atividade privada e social.
“Se não existir um orçamento, o Governo pode apresentar outro”
Está a fazer um retrato na saúde e nos apoios sociais. Já aprovou ou viabilizou seis orçamentos, entre eles um suplementar, porque é que a situação do país continua assim? O BE tem sido fraco nestas negociações?
Estou a falar-lhe da resposta à pandemia. Isso é uma situação absolutamente nova com que o país está deparado.
Mas na situação do SNS diz que não é feita essa contratação em linha com o necessário desde o pós-crise. Aí onde é que responde o Bloco de Esquerda que cogovernou nestes últimos cinco anos?
Talvez as pessoas não estejam lembradas que uma das coisas mais importantes que foi feita foi uma nova Lei de Bases da Saúde, que mobilizou muitas pessoas do SNS, da saúde e que foi importantíssima para a primeira fase de resposta à pandemia termos feito esse trabalho.
Onde é que que o Bloco de Esquerda está a falhar para que não haja avanços significativos depois da Lei de Bases da Saúde ter sido aprovada?
A Lei de Bases da saúde foi aprovada no fim da última legislatura. Só houve um Orçamento antes deste para a começar a aplicar. Houve imensa pressão tanto da Ordem dos Médicos e do próprio Presidente da República para que a Lei de Bases não avançasse. Porque a anterior Lei de Bases da Saúde dizia que o Estado tinha obrigação de promover o setor privado da saúde. Em vez do Estado ter a obrigação de promover o acesso dos cidadãos à saúde e ter um serviço público, universal e gratuito. Isso foi mudado na Lei de Bases da Saúde, com enormes resistências, demorou muito tempo. Ainda bem que o fizemos, graças a isso o Orçamento do ano passado teve mais mil milhões de euros para o SNS. Imaginem como estaríamos se não tivéssemos feito este caminho. Dito isto, agora arrepiar caminho no Orçamento de 2021, em vez de se fazer o que ficou por fazer, em vez de se analisar onde é que falhou… Somos capazes de avaliar o que é que foi feito, mas também o que é que falhou, porque é que falhou. Fazer a mesma coisa como se não estivesse a acontecer a pandemia é meter a cabeça na areia. E isso o BE não fará.
E fazer como admitiu José Manuel Pureza, do Bloco, que é chumbar este Orçamento e deixar o país em duodécimos é responsável nesta altura?
Ouvi ontem o primeiro-ministro dizer que o país em duodécimos não seria uma crise política. E é verdade, mas espero bem que o primeiro-ministro não queira duodécimos porque aquilo que o país precisa é de um Orçamento do Estado que responda à crise e é sobre isso que o BE está muito concentrado.
Portanto, o Bloco já se arrependeu de ter falado em Orçamento em duodécimos?
O Bloco de Esquerda nunca defendeu um Orçamento em duodécimos.
José Manuel Pureza disse que esse não seria um problema. Afinal é.
Nós temos estado a defender, desde o início, soluções para o país. Não tenho feito outra coisa se não chegar a estas quatro prioridades que avançámos e criar propostas. Quando o Governo recusa uma proposta o Bloco de Esquerda tem até encontrado contrapropostas para se avançar.
A primeira pessoa a usar a palavra duodécimos foi um dirigente do Bloco.
Pode-se falar de muita coisa sobre Orçamento até porque julgo que o primeiro-ministro ontem [segunda-feira] afastou esse cenário e bem. Durante muito tempo a chantagem era feita.
Portanto, José Manuel Pureza não teve razão em dizer aquilo?
Não foi isso que eu disse. Durante muito tempo o Governo em vez de negociarmos o concreto dos problemas que temos para resolver pela frente, vem a chantagem da crise política. Era preciso desmontá-la, foi desmontada e o próprio primeiro-ministro reconheceu isso ontem. Dito isto, precisamos mesmo de nos concentrar nas soluções concretas para o país.
Mas aqui não era a questão da crise política. Aqui era a questão de haver medidas inscritas nesta proposta do OE que com o Orçamento em duodécimos não iriam para a frente, nomeadamente o apoio social — que o BE diz que é curto — as leis laborais a mesma coisa. Para os seus eleitores isto é melhor que nada?
O Bloco de Esquerda está centrado em trabalhar para um OE. Nunca me ouviram dizer outra coisa nem ouvirão. Estamos muito concentrados em ter um Orçamento do Estado que responda pelo país e que responda aos problemas. Precisa de responder precisamente aos problemas. O que acho inaceitável é o primeiro-ministro dizer uma coisa como se PCP e Bloco se juntarem ganha a direita, mas agora cada vez que o PS não negoceia acha que a esquerda se junta à direita? É este tipo de raciocínio? Que é isto? É inaceitável em democracia. O que é preciso é vermos, em cada um dos pontos o que é que é preciso fazer para haver proteção social, para haver acesso à saúde, para existirem contas certas e rigorosas, para travarmos a vaga de despedimentos, protegermos as pessoas e a economia e falarmos das propostas concretas. Se não falharemos enquanto democracia num momento tão complicado, tão difícil para o país.
Tecnicamente tem razão, a única forma de o Orçamento não passar é o Bloco juntar-se à direita.
Isso é um argumento zero. Não é sério na democracia. O que é sério num momento tão difícil que nós vivemos é dizer às pessoas que o SNS está numa situação muito difícil e que o que vamos fazer para resolver o problema não é mais um anúncio de contratações igual aos 200 que fizemos este ano e redundaram em zero, mas é ter medidas concretas que vão resolver o problema dos concursos ficarem vazios. O que é sério é dizer que se está nestas condições vai ter este apoio. Estamos cá para nos apoiarmos uns aos outros.
Mas é melhor este Orçamento do que um Orçamento em duodécimos?
A proposta tal como está é uma má proposta. Não é uma questão de insuficiência.
Mas a questão é: prefere escolher esta proposta, que, apesar de tudo, tem algumas coisas que o Bloco quer, ou chumbar?
Mas quais tem? Diga-me.
Tem o novo apoio social.
Não tem o novo apoio social. É igual ao apoio extraordinário, mas em baixa, não é.
Então é preferível duodécimos?
Não. É preferível sermos sérios. E continuarmos a trabalhar para termos um Orçamento do Estado que responda ao país essa é a única escolha responsável.
Estamos nas vésperas e não chegaram lá. No limite, o Bloco tem de escolher entre o que existe agora e duodécimos. Pode ter que tomar essa opção.
O Bloco de Esquerda vai reunir a sua Mesa Nacional no dia 25 para tomar uma decisão sobre a votação na generalidade. Já tive oportunidade de o dizer, até depois do enorme debate que temos feito, que, do meu ponto de vista, o Orçamento do Estado como está, não tem condições para ser viabilizado pelo BE. Ou seja: se não houver um acordo para um caminho na especialidade…
Duodécimos, então?
Não. Porquê? O que é isso? Que irresponsabilidade!
Mas foi o Bloco de Esquerda que falou em duodécimos. Está a dizer que, se for assim, este não serve. Se este não serve e o Governo não serve…
Se não existir um orçamento, o Governo pode apresentar outro. Mas que irresponsabilidade é esta? Que deitar a toalha ao chão… Estamos a viver uma das maiores crises que o nosso país já viveu, portanto é bom sermos sérios. Se não houver um Orçamento que garanta o acesso à saúde da população portuguesa e que não garanta a proteção social de quem perdeu tudo com a crise, não serve ao país. Mas o que é preciso fazer é outro. Ninguém está aqui, para deitar a toalha ao chão.
E há tempo para isso?
Eu não estarei para atirar a toalha ao chão e dizer que tanto faz. O que é isso!?
Há tempo para começar outro orçamento e começar outro de novo, se for necessário?
Neste momento, estou a negociar este. E é nisso que estou concentrada, é que o país tenha soluções a sério. Há uma forma terrível de fazer política nos momentos difíceis, que é começarmos todos a arranjar desculpas para falhar. O Bloco não arranjará desculpas para falhar.
Foi isso que fez o primeiro-ministro?
Espero que não seja isso. Espero que queira mesmo o Orçamento do Estado. É o que o Bloco de Esquerda quer.
“A LoneStar está muito provavelmente a assaltar o Estado português”
Neste Orçamento não existe uma transferência direta para o Novo Banco — outra cedência face ao Bloco. Os empréstimos já estiveram previstos em vários outros Orçamentos no passado: 656 milhões de euros em 2018, 850 milhões de euros em 2019 e 850 milhões em 2020. Ao aprovar esses orçamentos o Bloco foi permitindo estas transferências. Porque só agora este ponto se tornou decisivo?
A discussão este ano não é a mesma. O Bloco de Esquerda sempre teve uma posição diferente para o Novo Banco como devem estar lembrados, a entrega do Novo Banco à Lone Star não foi votada no Parlamento, mas foram votadas as propostas alternativas do Bloco de Esquerda, como do PCP também, foram chumbadas pelo PS e pela direita. E, portanto, sempre nos opusemos a este modelo e, nos Orçamentos do Estado, votámos contra a transferência em si, que foi sempre aprovada pelo PS com a direita, embora depois, como havia um acordo e o Orçamento é um documento global, tenhamos viabilizado os orçamentos. Mas este ano não é essa discussão que se trata, em que o BE sempre teve uma postura clara e contra o que aconteceu. Trata-se de outra coisa. Pode-se dizer que o Bloco já dizia que isto ia acontecer. Mas dizer: ‘Nós bem dizíamos, não resolve nada’. Portanto, temos é de olhar para a frente. O que aconteceu é que, neste momento, há indícios muito fortes de que a Lone Star está a vender ativos a preço de saldo e não se sabe muito bem a quem. Negócios que são, pelo menos, estranhos, feitos com muita proximidade.
Tem insistido em acusações de que pode haver gestão danosa no Novo Banco e é aí que está a ir outra vez. O Ministério Público já se pronunciou sobre isso e considerou não existir prova bastante para suportar a acusação de que foram vendidos ativos ao “desbarato”. O Bloco não confia no Ministério Público?
O Ministério Público diz que não sabe o que se passa. E tem razão: tem de saber.
Diz que não há “prova bastante” para abrir investigação.
Pois, não há investigação. Ninguém sabe o que se passa. Todos os partidos no Parlamento neste momento estão de acordo, não é só o Bloco de Esquerda, que é preciso investigar. De tal forma que a auditoria da Deloitte, que é mais formal, mais de passos formais sobre de como foram registadas as imparidades do que para investigação, é uma auditoria que já todos os partidos perceberam que não serve. Até o PS já disse que quer uma auditoria que investigue o que se passa. O que não é normal é estarem todos os partidos de acordo que é preciso investigar e, ao mesmo tempo, o Orçamento do do Estado estar a garantir novos pagamentos.
Mas o Ministério Público que não havia indícios para investigar. Houve um longo parecer do MP, do vice-procurador-geral da República, que entendeu não haver indícios para investigar.
Com que tem. Mas nós sabemos que não é assim e todos os partidos no Parlamento e todos os partidos estão de acordo. E o BE é consequente com o que diz.
Mas sabe? Foram apresentar nova documentação ao Ministério Público? Provas? Têm acesso a alguma prova que tenha escapado ao vice-procurador-geral da República?
Respeito imenso o Ministério Público, mas se entregarmos isto aos tempos do Ministério Público e o Parlamento, entretanto, não fizer nada para saber o que se está a passar vamos ter pago tudo à Lone Star, a Lone Star já vende o Novo Banco, até pode destruir o Novo Banco, ir embora, passaram dez anos e nós não percebemos o que se passou. E, portanto, o Bloco quer proteger o interesse público.
Neste caso, o Ministério Público até foi rápido. Houve declarações de Rui Rio, o primeiro-ministro pediu um parecer e houve um parecer rapidíssimo da procuradoria, de um dos vice-procuradores.
Não é estranho como ficamos com tanta certeza em tão pouco tempo e com tão pouca investigação?
Porque acha estranho? O que acha que há aqui? Acha que o MP não está a olhar para isto de forma independente?
Acho que foi-lhe pedida uma apreciação com os dados que existiam. E, portanto, com os dados que existiam, o Ministério Público fez o seu trabalho e não foi um trabalho de investigação, foi um parecer. Para sermos claros. Porque às vezes até parece que houve uma investigação e alguém concluiu que estava tudo bem.
Mas não havia matéria para investigação, foi o que o Ministério Público decidiu. O BE não confia no Ministério Público?
Vamos ser sérios sobre o que tem acontecido com o sistema financeiro em Portugal. Eu confio no MP, mas ao MP foi perguntado se, face aos mecanismos formais que existem, havia algum problema para investigar. E, face a estes mecanismos não há, porque o sistema financeiro está feito como um clube de amigos porque as quatro grandes empresas que podem fazer auditorias à banca são as mesmas que fazem o negócio com a banca. E, portanto, do ponto de vista formal bate sempre tudo certo. Tanto é assim que vamos de escândalo financeiro em escândalo financeiro, com os contribuintes sempre a pagar e, anos e anos depois, ainda ninguém foi condenado por nada. O que o Bloco de Esquerda propõe uma coisa tão simples, tão razoável. Mantemos, claro, a nossa proposta de sempre sobre o sistema financeiro, mas neste momento não estamos a propor que o Governo concorde em tudo com o BE sobre o sistema financeiro. O que estamos a propor é uma coisa muito simples: se todos os partidos estão de acordo que é preciso investigar e que a Lone Star está muito provavelmente a assaltar o Estado português, então o que nós fazemos é não garantir mais nenhuma injeção sem resultados dessa investigação….
Quer uma auditoria do Tribunal de Contas?
… que o Governo nos está a pedir com o Orçamento do Estado é que o Parlamento se comprometa com uma nova injeção no Novo Banco antes de resultados de auditoria e isto é que não pode acontecer.
Ainda agora se queixou dos tempos da justiça. Sabe quanto tempo é que demoram as auditorias do Tribunal de Contas? Sabe que vamos ficar anos à espera dessa auditoria?
Não é verdade que as auditorias do Tribunal de Contas demorem anos. Como sabe, uma coisa são as auditorias do Tribunal de Contas outra são processos judiciais que correm em tribunais. Não vale a pena misturarmos tudo como se fosse tudo a mesma coisa.
Mas nunca antes de concluído o processo do Orçamento estar concluído.
E depois?
Mas não é fundamental? Para decidir se há ou não transferências?
Não. Não é fundamental. Quando foi preciso, encontraram-se mecanismos pós. Não tem é sentido nenhum o Parlamento comprometer-se com uma solução antes de investigar.
E disse que continua a haver um comprometimento, mas não há nenhuma transferência para o Novo Banco neste Orçamento do Estado, tal como o Bloco tinha exigido.
Existe, existe. Mas já lá vou. O Bloco também apresentou uma alternativa para o dia seguinte a esta auditoria. Mas nós não estamos a pedir ao Governo que se compromete com a nossa solução já no Orçamento. Estamos a pedir ao Governo que, pelo menos, não comprometa mais injeções sem investigar.
E tem confiança neste novo Tribunal de Contas? Apareceram várias referências ao presidente do Tribunal de Contas no processo das PPP, que aliás é um processo que tem sido muito criticado pelo BE ao longo dos anos. Tem confiança no presidente do Tribunal de Contas?
É sabido que o BE considerou um pouco intempestiva e não explicada a substituição do presidente, ainda que não tenhamos…
E não há nada contra ele no processo das PPP…
Julgamos sempre bom que este processo não tivesse sido envolvido em polémica pela própria centralidade que o Tribunal de Contas tem e, na verdade, registamos que, num momento em que vão entrar muitos fundos europeus em Portugal, o PS fez um acordo com o PSD, tanto para escolher as CCDRs, que vão decidir a distribuição de uma parte destes fundos, como para alterar a lei da contratação pública, que é fundamental na forma como estes fundos vão ser aplicados, como também na substituição do Presidente do Tribunal de Contas, que tem um papel de fiscalização importante. Portanto, o que nós registamos é que este processo foi pouco democrático, de acordo de Bloco Central e muito pouco explicado, num momento muito sensível.
Mas está sanado. Ou seja: mantém a confiança no novo Tribunal de Contas.
A nossa questão é política. É porque é que existiu este acordo em relação às instituições. Nós seremos sempre exigentes com todas elas, confiando naturalmente na separação de poderes e nas instituições em Portugal, não deixando nunca de ter a exigência democrática.
Ao contrário do que o primeiro-ministro diz e do que o ministro das Finanças repetiu várias vezes, entende que há uma transferência do Orçamento para o Novo Banco?
Não acho que o ministro das Finanças tenha mentido quando apresentou o OE, ele explicou o que lá está. Nos outros anos havia uma transferência direta do Orçamento para o Fundo de Resolução para este colocar no Novo Banco. Este ano não há essa transferência mas está prevista a transferência para o Novo Banco feita com o dinheiro que já está no Fundo e que é dinheiro público, é dinheiro de um imposto que a banca tem de pagar ao Estado, e por outro lado um empréstimo que a banca faz ao Fundo de Resolução para este dar ao Novo Banco. O Fundo fica mais endividado e sendo este um instrumento da esfera pública em que o Estado é o último garante.
Mas o contrato da Lonestar é com um Fundo de Resolução, qual é alternativa?
A alternativa é investigar o que se está a passar com via à denúncia do contrato.
E até lá?
O Estado português deve comportar-se como qualquer outro acionista se comportaria. Tem 25% do Novo Banco, a Lonestar tem 75% e quando um acionista tem indícios fortes de que está a ser prejudicado não continua a fazer pagamentos antes de investigar.
Portanto, quer rasgar o contrato?
Porque é que quando o Estado português quer contas certas está a desrespeitar contratos? Imagine que temos os dois uma empresa, com um contacto em que diz que vou ter de pagar x, e vê que eu estou todos os dias a lesar a empresa e a obrigá-lo a pagar mais. Tem de me pagar sempre ou começa a investigar para acabar com isso? Porque é que o Estado português tem de perder sempre?
Enquanto não houver uma entidade independente a dizer alguma coisa, vai ter de cumprir o contrato, certo?
Não, tem de investigar. Foi um enorme erro o Estado português não ter um administrador no Novo Banco. Aliás, todo o negócio é um enorme erro. Agora, nós temos uma visão sobre qual deve ser a solução para o banco para o dia seguinte e o que queremos no OE não é necessariamente chegar a acordo com o PS sobre essa solução para o Novo Banco. Toda a gente sabe que a Lonestar não vai ficar e que o Novo Banco vai precisar de um solução e andamos todos a fazer de conta que não vemos o problema e o BE recusa-se a fazer de conta.
A sua solução preferida continua a ser a nacionalização?
Tinha sido mais barata se tivesse sido quando propusemos. Pode entrar a banca privada ou pode ficar do Estado, o Novo Banco vai precisar de uma solução, é um banco com grande impacto na economia portuguesa e terá sempre de ter uma solução e nós propomos a solução que custa menos ao erário público e são mais instrumentos estratégicos aos Estado português por outro. Mas neste momento não estamos a pedir ao PS uma convergência integral sobre as nossas posições sobre a banca. O que estamos a pedir para o OE é que nãos e comprometa mais dinheiro antes de uma auditoria que investigue o que se está a passar.
Portanto, já se reduz a isso.
Nós propusemos além disso uma solução de futuro para o Novo Banco porque achamos que essas soluções se devem preparar. O Estado põe-se constantemente na posição de fazer de conta que não vê um problema na banca para depois ficar com as soluções mais caras e que prejudicam mais a economia. Portanto, o BE ao mesmo que apresentamos uma solução no OE apresentamos também uma solução para o dia seguinte.
“A gestão privada de Neelman fez com que muita gente se sentisse abandonada”
O BE tem avançado sempre com a ideia de nacionalizar empresas em dificuldade e no caso da TAP isso foi feito, e a solução do Governo foi já quase uma nacionalização, mas quatro meses depois ainda não há uma equipa de gestão definitiva, há 1600 despedimentos e o Estado a pensar gastar pelo menos 1700 milhões de euros na empresa. O controlo da TAP pelo Governo está a correr bem?
O BE não defende a nacionalização de empresas em dificuldade, mas empresas estratégicas para a economia portuguesa devem ser públicas. E defende que quando o Estado entra com muito dinheiro público numa empresa deve ter controlo sobre o que a empresa faz. É bom não fazermos caricaturas das posições se não fica estranho. A TAP é uma empresa estratégica não devia ser privatizada, devia ser pública. Na verdade, quando foi privatizada e com a solução que o PS de entrar com capital público mas deixar a gestão na mesma entregue ao privado, a Neelman, a TAP fez uma série de negócios ruinosos. Abriu uma série de rotas para sítios onde era muito importante para outros negócios de Neelman e de compras de aviões.
A TAP era uma empresa muito lucrativa quando tinha gestão pública…
Não, uma empresa aérea em Portugal nunca será muito lucrativa se fizer serviço público. Nunca será muito lucrativo servir as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo ou servir regiões autónomas que são arquipélagos.
Mas a gestão foi boa?
Não, tivemos sempre críticas à gestão. O que dizemos é que os últimos anos foram particularmente ruinosos, nomeadamente na escolha de rotas. E isso deslegitima a TAP aos olhos da própria população. Durante anos a TAP, com problemas que teve, era uma empresa que as pessoas que estavam fora de Portugal reconheciam como casa. Eu vivi fora de Portugal quando era criança e quando via um avião da TAP sentia-me segura. E era este o sentimento que as pessoas tinham durante muito tempo. A gestão privada de Neelman fez com que muita gente se sentisse abandonada. Pergunte a muita comunidade portuguesa espalhada pelo mundo o que é que sente pela TAP.
Esta nova gestão resolveu a situação e é um modelo a repetir?
Agora temos um problema que é: a TAP não precisava de continuar a ser tratada como uma empresa aérea regional da Europa à espera que venha uma grande empresa comprá-la. Era preciso que houvesse um plano estratégico para a TAP e para os transportes. A aviação está em enorme crise e há problemas no pensamento do futuro que nos devem fazer repensar a questão da aviação, nomeadamente o problema das alterações climáticas. Isso quer dizer que devia haver uma grande reflexão estratégica sobre os transportes, para saber o que se faz a este setor, mais do que desatar a despedir. Com a consciência que as competências específicas dos trabalhadores da TAP são extraordinárias e despedi-los é perder essa capacidade instalada no país. Pelo contrário, um plano estratégico para os transportes que pensasse não só as nossas necessidades de transporte aéreo mas também as de reconversão em diálogo com os trabalhadores eram muito importantes.
Esta a fazer uma crítica velada à gestão do ministro Pedro Nuno Santos?
Eu tento não fazer nada velado, tenho estado a falar muito francamente convosco.
Não disse diretamente, mas quem está a liderar o processo acaba por ser o Governo. Há aqui uma frase dita precisamente por Pedro Nuno Santos “não podemos manter emprego e depois não ter trabalho”. Se esta frase é válida para uma empresa controlada pelo Estado porque é que não é para um privado?
Não subscrevemos essa forma de olhar para a TAP. O transporte aéreo irá encolher, mas não a capacidade nos transportes e a necessidade que temos de pessoas com conhecimentos específicos que há na TAP. O BE nunca propôs que nenhuma empresa pudesse despedir, porque isso não é possível. O que dizemos é que num momento de crise pode haver regras especiais que dividam o esforço coletivo para aguentar esta crise. Assim como o estado tem de criar proteção social especial, também as empresas têm capacidade, seja porque têm lucros ao longo do ano ou porque estão a ter apoio do Estado, neste período particular durante o próximo ano devem assumir a responsabilidade solidária que todos assumimos de manter emprego e salário.
Tensão entre o BE e o Governo. “É bom existir mais cabeça fria”
Há condições para fazer um acordo de legislatura sobre as questões laborais?
Tenho muita dificuldade em perceber porque é que o Governo não aceita uma medida que, não sendo exatamente esta, é muito importante para que despedir não seja a solução mais fácil e barata. No tempo de Passos Coelho e Paulo Portas, as compensações por despedimento passaram a ser 12 dias por ano de trabalho e o equivalente para a caducidade dos contratos a prazo.
Uma das medidas que não foi revertida do tempo da troika.
O PS sempre foi contra esta medida. Votou contra esta medida. Porque é que agora, no momento em que precisamos que o despedimento não seja o mais fácil para as empresas, o PS não é coerente com o que sempre defendeu e faz com que o despedimento passe a ter mais compensação para que as empresas terem de pensar duas vezes quando despedem?
O Bloco não entende porque é que o Governo não entende, ouvimos o primeiro-ministro a dizer que também não entende porque é que o Bloco não aprova isto. Vemos durante dias e dias o Bloco a ser permanentemente mal tratado pelo Governo há uma conferência de imprensa em que a acusam de mentir… hoje vai encontrar-se com o primeiro-ministro. A vossa relação já está completamente deteriorada?
Da parte do Bloco de Esquerda, a nossa relação foi sempre pautada pela necessidade de encontrar soluções para o país. Bem sei que há momentos em que há declarações mais destemperadas, que acho que quem as profere até se arrepende delas — e a atuação do Governo demonstra isso — e há outros momentos em que há mais cabeça fria. É bom existir mais cabeça fria e ponderação nestes momentos. As tensões existiram sempre e o que é preciso é saber o que é que importa.
O primeiro-ministro disse sempre que com o PCP bastava um aperto de mão. É porque o Bloco não é de confiança?
O Bloco de Esquerda nunca mudou um sentido de voto depois de ter feito um acordo com o Governo sobre uma matéria tão fundamental como a matéria orçamental.
Não fará isso desta vez? Não mudará o sentido de voto entre a generalidade e a especialidade?
Vamos ter hoje reunião com o Governo, o Bloco terá a sua reunião de direção.
Peço-lhe que responda diretamente: entre uma e outra votação, o Bloco não vai mudar de posição?
A especialidade de um Orçamento é sempre uma oportunidade para melhorar um Orçamento…
Acabou criticar o PCP por ter mudado de posição entre uma e outra.
Nunca fomos para uma especialidade sem termos um acordo suficiente com o Governo em matérias essenciais de especialidade para garantirmos que não havia propriamente surpresas entre um momento e outro. Essa é a forma mais correta porque é aquela que permite previsibilidade para todos e é aquela que o país, do ponto de vista institucional e de diálogo com a sua população, esteja mais defendido.
Há condições ou não para haver um acordo de legislatura em matérias laborais?
Infelizmente, o PS recusou esse acordo. Propusemo-lo em 2019, logo no início da legislatura.
Estou a referir-me a agora. Foi posto um documento em cima da mesa.
O PS continua a recusar-se a alterar a legislação laboral. Desse ponto de vista, não foi nada posto em cima da mesa.
Mas foi posto um documento que o Bloco não aceita, é isso?
O PS não pôs em cima da mesa nenhum documento com a alteração da lei laboral. Um a moratória sobre a caducidade da contratação coletiva é algo que já foi feito noutros momentos de crise. Não teve nenhum efeito na degradação dos salários médios e das condições e direitos dos trabalhadores em Portugal. O PS não abre a porta a tornar o princípio de tratamento mais favorável como uma regra, como já foi no passado, ainda que pudesse ter algumas exceções. O PS não abri a porta a nenhuma alteração laboral.
Portanto, não há condições para haver um acordo de legislatura.
O Bloco de Esquerda propôs esse acordo. O PS recusou esse acordo.
Isso foi em 2019.
Na altura do Orçamento Suplementar, propusemos que a reposta, em vez de ser emergência, tivesse logo algumas medidas estruturais. Pela segunda vez, o PS recusou. Isto tem sido um bocadinho a história das recusas do PS.
Mas nestas negociações o primeiro-ministro propôs um acordo escrito e o Bloco de Esquerda também falou nisso. Um acordo escrito paralelo ao acordo do Orçamento do Esquerda, um acordo plurianual.
Julgo que há aí um equívoco. O que acontece é que o Orçamento do Estado não tem necessariamente as matérias laborais. Mas as matérias laborais são essenciais para perceber como é que o Orçamento é aplicado. O que pode acontecer é ter que existir outra legislação ao lado que tem as matérias laborais que acordámos e que vão enquadrar a forma como Orçamento vai ser executado.
Quer um compromisso político nesse sentido.
Que não existe porque o PS não aceitou até agora nenhuma alteração à lei laboral. O que aliás contrasta com o que está a ser feito noutros países e contrasta com as declarações do primeiro-ministro.
Tem a app Stayaway Covid instalada?
Não.
E não planeia ter?
Tenho um enorme respeito por quem desenvolveu a app, mas quem desenvolveu a app explicou desde o início as suas limitações. Temo até que o debate sobre a app seja uma boa forma de não estarmos a fazer o outro debate: quando estamos dois mil novos infetados por dia e não temos equipa de saúde pública para fazer o rastreamento. Sem equipas de rastreamento, também não há médicos para gerar os códigos para se pôr na app. Portanto, é tudo um bocado inútil.
Foi uma cortina de fumo do Governo?
Não sei. O que digo é que sem médicos e sem equipas no terreno a app vê-se incapaz. Não funciona sem o resto.
Desde que acabaram as reuniões do Infarmed sente-se informada sobre a evolução da pandemia?
O Bloco de Esquerda propôs que fosse possível o Parlamento continuar a ter acesso aos relatórios das entidades que estavam nas reuniões e eles têm sido enviados. Estou muito grata às pessoas destas instituições que têm tido a generosidade de partilharem dados.
Portanto, está suficientemente informada?
Ninguém se sente suficientemente informado por duas razões: esta pandemia é algo de novo; por outro lado, falta em Portugal uma comissão de acompanhamento técnico e científico que vá fazendo trabalho multidisciplinar ao longo do tempo de acompanhamento da pandemia.
Eleições nos Açores. O Bloco admite fazer parte de um Governo de coligação com o PS ou, em alternativa, fazer uma espécie de ‘geringonça’ com todos os partidos que afaste o PS do poder nos Açores?
Essa alternativa é absurda. Alguém está a ver o Bloco de Esquerda a fazer uma aliança com a direita para seja o que for?
Admite então ajudar o PS se for caso disso?
Essa é uma matéria em que respeitamos muito o Bloco/Açores. Na verdade, o PS/Açores não tem tido qualquer vontade de diálogo à esquerda, tem feito muita chantagem política e existe muita dificuldade das pessoas afirmarem livremente aquilo que pensam na construção da democracia. Os Açores têm há mais de duas décadas uma maioria absoluta do PS e são a região do país com mais pobreza e mais abandono escolar precoce. As diferenças que temos o PS são muitas e o Bloco tem sido a oposição mais presente. E acho que os açorianos e as açorianas reconhecem esse trabalho.
[A entrevista na íntegra:]