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Cem anos de Natália Correia: conhecida de todos, mas continuamente a ser (re)descoberta

Nasceu a 13 de setembro de 1923 a intelectual e a provocadora que também fez seu o último século. Dois editores e duas novas obras refletem sobre o legado e o futuro da poesia de Natália Correia.

Conservadora mas progressista, europeísta mas eurocética, vanguardista mas tradicionalista. Foi grande oposicionista do regime do Estado Novo e grande crítica do gonçalvismo e do Processo Revolucionário em Curso (PREC) pós-25 de Abril. Abraçou a vinda da atriz pornográfica Cicciolina recém-eleita deputada italiana quando veio visitar Portugal. De Natália Correia fala-se da personalidade exuberante e excessiva, dos versos que escrevia no assento da bancada parlamentar da Aliança Democrática (AD) do PSD-PPD de Francisco Sá Carneiro e do CDS-PP, fala-se da sua intelectualidade e famosas tertúlias dadas em casa ou no Botequim à Graça, em Lisboa, mas fala-se também da editora: a publicação da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica valeu-lhe uma condenação em tribunal. E, sobretudo, da poeta. Nascida a 13 de setembro de 1913 em Fajã de Baixo, na ilha de São Miguel, Açores, Natália Correia era, isso sim, um ser livre. Tão livre que pensava à frente do seu tempo. E isso teve o seu custo.

[Já saiu o último episódio da série em podcast “Um Espião no Kremlin”, a história escondida de como Putin montou uma teia de poder e guerra que pode escutar aqui. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui, o terceiro episódio aqui, o quarto episódio aqui e o quinto aqui ]

A propósito da celebração do seu centenário, é reeditada a sua poesia completa pela Ponto de Fuga, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, e também um livro que se encontra integrado naquela antologia e que o editor Pedro Mexia quis publicar na coleção da Tinta da China, resultado das viagens da poeta pela Europa, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro. O Observador esteve à conversa com os dois editores, numa entrevista a dois tempos, sobre a poeta, a agitadora, o ser livre, que era Natália de Oliveira Correia.

Vladimiro Nunes: “Era preciso devolver a obra poética da Natália aos leitores”

"O Sol nas Noites e o Luar nos Dias", 2023, ed. Ponto de Fuga, 880 pps.

A poesia da Natália foi primeiro reunida pela Círculo Leitores, depois pela Dom Quixote. Que especificidades tem esta edição da Ponto de Fuga? 
Vladimiro Nunes: Ando a trabalhar no espólio da Natália com a Ângela de Almeida desde 2015. Já fizemos várias edições. E Isso é quase, para mim, pelo menos, condição sine qua non para se fazerem edições da Natália como deve ser. Ela não teve grande fortúnio editorial e é preciso ir ao espólio. Há sempre surpresas. No caso do primeiro livro que fizemos, Não Percas a Rosa, foi a comparação dos manuscritos originais com a versão publicada e depois a existência de alguns textos inéditos que nos deu umas pistas muito curiosas e acabou por dar uma edição gigantesca, porque juntámos também as crónicas do 25 de Abril que estavam também dispersas. E depois ainda pareceram mais inéditos. Foi uma confusão. O livro Descobri que era Europeia é um dos primeiros livros dela, é um livro de viagens, de 1951. Ela tinha um exemplar na biblioteca dela completamente anotado, com acrescentos e cortes, e estabelecemos o texto a partir daí. A poesia é um caso um bocadinho diferente. Há inéditos ainda. A reunião da sua poesia foi o último trabalho que a Natália fez. Acho que estava o segundo volume em provas quando ela morreu, já estava tudo praticamente feito. Ela teve ajuda de um miúdo que entrou na vida dela, a quem ela deu guarida, o João Rubus, que a ajudou a fazer uma recolha de inéditos, e aquilo que sai em ’93 é basicamente uma reunião de todos os livros de poesia dela, sendo que nesta nossa edição há um grupo de inéditos, que ela de alguma forma renegou. Eu e a Ângela já tínhamos feito esse trabalho no espólio em termos de levantamento de inéditos, era preciso afinar algumas coisas. Aquilo que se nota é que ela não foi completamente exaustiva. Há umas surpresas. Vai dar um livro, se calhar, um bocadinho desigual, com mais juvenília que outra coisa. Corrigimos ali algumas coisinhas, tentámos dar um bocado mais de respiração aos poemas, que estavam muito condensados na anterior edição de um livro só. A oferta da poesia da Natália estava reduzida a uma antologia, muito bem feita pelo Fernando Pinto do Amaral na Dom Quixote. Mas antologiar a Natália dá sempre muitos problemas.

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Porquê?
VN:
Porque ela tem alguns livros que são ciclos de poemas, poemas longos, narrativos. E isso é impossível de antologiar a não ser que se façam cortes. A antologia, e bem, opta por não ir por aí, não retalhar. Faz uma escolha representativa de poemas e deixa de fora esse tipo de textos. Estou a lembrar-me por exemplo do “Cântico do País Emerso”. Há ali casos em que aquilo, para se fazer uma coisa com critério, não dá para antologiar. Ou bem que se faz tudo, ou bem que se faz uma escolha só de poemas. Eu acho que fazia falta a obra poética completa da Natália estar disponível, porque ela era, acima de tudo, poetisa. Esse é o princípio de tudo para ela. E tudo deriva daí. Mesmo na prosa há sempre um tom poético. Acho que era preciso devolver a obra poética da Natália aos leitores, mesmo que se ache que às vezes há ali coisas que são um bocado desiguais, que uns poemas são melhores do que outros. Ela, por um lado, ganha em ser antologiada, por outro perde. Então a opção aqui foi mesmo apresentar a totalidade da obra, como ela deixou organizada e deixar as pessoas decidir.

"Ela tem um conhecimento profundíssimo da história da literatura portuguesa. Faz uma síntese importante naquela altura. Urgente, até em termos de ideário político, de contestação, de carácter libertário e utópico que me toca muito e que acho que toca muita gente."
Vladimiro Nunes

O que é que sente ao ler a poesia da Natália?
VN: Gosto muito de muitas coisas dela, há outras coisas de que não gosto tanto. A Natália é excesso e às vezes esse excesso é muito excessivo, até para mim. Quando a poesia vai ao encontro da minha sensibilidade, é uma relação muito intensa. Costumo dizer isto num exercício de simplificação, que ela faz ali uma espécie de triangulação entre o romantismo, o barroco e o surrealismo. Gosto muito de surrealismo. Tenho aprendido a apreciar mais o barroco para lá daquela caricatura do exagero que há, até porque é um movimento que acaba por, de alguma forma e a Natália concordava com isto, libertar a criatividade poética das mulheres. As primeiras grandes poetisas são-nos reveladas no período barroco. Gosto do lado romântico, quase utópico, dela. E depois sempre simpatizei muito com o movimento surrealista e que lhe deu depois a chave para fazer o processamento disto tudo. Eu digo que isto é simplificação, porque a Natália também bebe muito das fontes medievais. Não é à toa que ela antologiou e fez versões dos cancioneiros galaico-portugueses. Ela tem um conhecimento profundíssimo da história da literatura portuguesa. Faz uma síntese importante naquela altura. Urgente, até em termos de ideário político, de contestação, de carácter libertário e utópico que me toca muito e que acho que toca muita gente. E, nesse aspeto, é um universo fascinante, porque mesmo quando ela é mais avançada ou mais barroca, se quisermos, ela é, mesmo naquela torrencialidade verbal toda, muito cirúrgica. As palavras não estão lá por acaso. É quase um paradoxo, há aqui uma certa contradição entre estas duas coisas, mas ela consegue ser ao mesmo tempo excessiva e lapidar. E isso para mim é muito fascinante.

Um editor a editar alguém que foi editora é intimidante?
VN:
Só não foi mais porque, quando comecei a editora, queria ter um pé no passado e fazer um bocado o trabalho de recuperação de coisas às quais os outros editores, ou por razões economicistas ou por razões estéticas ou preferência do que fosse, andavam desatentos. Havia coisas que, como leitor, sentia a falta de entrar numa livraria e encontrar. E a Natália, nesse aspeto, foi para mim uma escolha muito evidente. Durante muito tempo, ninguém a publicava. Lá havia uma edição de A Madona, um romance, lá aparecia uma antologia poética, mas a obra da Natália e, sobretudo agora com o espólio arrumado, desde que ficou em Ponta Delgada e está acessível, fazia falta prestar-lhe a ela esse serviço e prestar esse serviço aos leitores também. À semelhança do Mário de Sá-Carneiro, a Natália também dizia que iam ser precisos 30 anos depois da morte dela — curiosamente, estão a passar agora —, para a obra dela poder ser apreciada e entendida.

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Ela dizia isso?
VN:
Sim. Pelo menos ouço muitas vezes essa história do [jornalista, amigo] Fernando Dacosta. Aquilo que senti quando peguei no “Não Percas a Rosa”, que é o diário do processo revolucionário, de 2014 para 2015, estava a fazer 40 anos aquele processo… Fui ler o livro, por curiosidade, e compreendi que uma pessoa que escreve as coisas que ela escreveu estava condenada a algum tipo de ostracismo. É muito complicado ter razão antes do tempo.

E ela teve.
VN:
O parágrafo que escolhi para a contracapa do livro dizia que às seis da manhã, de 24 para 25 de Abril, com os tanques na rua havia três horas… ela dissecava aquilo tudo. Ela não se imaginava a dar para o peditório que diz que nenhuma revolução é vitoriosa, os medíocres iriam tomar conta disto, é um parágrafo absolutamente lapidar. No meio daquilo, ela estava exultante e em festa, porque sempre foi um libertária, teve sempre amor à liberdade. Mas ter a presciência de, com os tanques havia três horas na rua, perceber qual era o destino das revoluções é uma coisa absolutamente extraordinária. E depois ficou encalhada muito naquele compasso difícil entre: talvez fosse demasiado conservadora ou… não vou dizer anti-comunista, mas anti todo o tipo de propensões totalitárias para ser compreendida e apreciada à esquerda; e era demasiado libertária para ser compreendida e entendida ao centro-direita. Portanto, ela acaba por ter um ideário que não é parecido com o de mais ninguém e que lhe valeu um ostracismo tremendo, quer de um lado quer do outro. Acho que ambas as partes se portaram muito mal com a Natália. Ela foi uma das autoras mais censuradas pelo Estado Novo, teve oito livros proibidos, foi julgada — e condenada – por causa da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Publicou Portugal e o Futuro [da autoria do general António de Spínola, considerado um prelúdio da revolução de Abril]. Conseguiu por um triz livrar-se de problemas por causa da edição das Três Marias, que foi responsabilidade dela. E depois volta a ser censurada. Há uma comissão de trabalhadores do jornal A Capital que lhe censura um texto absolutamente assassino que ela escreve sobre o MFA [Movimento das Forças Armadas aquando o 25 de Abril]. Se isso por um lado lhe valeu muitas agruras, mesmo quando veio a liberdade por que ela tanto ansiou, por outro, fez com que a obra e a visão dela tivessem envelhecido muito bem. Todo aquele discurso pessimista em torno das ajudas das instituições europeias, da tecnocracia, de uma série de questões que a gente agora olha e reconhece ali qualquer coisa, ela sentiu que havia uma espécie de revolução total, de humanismo, de solidariedade, de irmandade que faltava fazer. E continua a faltar.

"Ela tinha um compromisso com ela própria e com seus congéneres humanos. Tinha ideias muito avançadas, com uma dimensão utópica, sim, mas sempre com uma consciência do mundo em que vivia, das limitações que existiam."
Vladimiro Nunes

Era uma sonhadora?
VN:
Esse lado utópico, romântico, mas, por outro lado, também muito arguto, muito perspicaz na observação das coisas, torna a obra dela muito atual e até urgente, diria eu.

Urgente porquê?
VN:
Porque neste imediatismo todo em que estamos, e de crise em crise, andamos todos descontentes com as instituições, com a ascensão de forças populistas, que representam um bocado o que de mais baixo há no espírito humano, a trabalhar os sentimentos de medo e inveja… Eu acho que a elevação que a Natália procurava introduzir, o compromisso que ela tinha pela humanidade e a elevação que ela procurava que pautasse todas as ações do espírito humano… faz falta voltar a pensar sobre isso. Faz falta, sem perder a noção da realidade — e ela tinha-a muito presente, embora parecesse um bocado um cata-vento, até politicamente, parecia contraditória, mas ela não era contraditória. Ela tinha um compromisso com ela própria e com seus congéneres humanos. Tinha ideias muito avançadas, com uma dimensão utópica, sim, mas sempre com uma consciência do mundo em que vivia, das limitações que existiam. Eu acho que isso é importante. Faz falta recuperar uma certa dimensão de sonho e da vontade de viver num mundo melhor, sem perder a ligação com a realidade e com as nossas limitações da nossa espécie, da nossa História.

Pedro Mexia: “Interessa-me menos a personagem Natália Correia do que a poeta”

"O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro’" 2023, ed. Tinta da China, 82 pps.

Porquê a escolha deste livro específico para a coleção?
Pedro Mexia: Quando a coleção começou há dez anos, na altura reinava uma incerteza sobre se a coleção seria só livros inéditos ou reedições, só portugueses ou também lusófonos, ou também estrangeiros. Ou obras completas, algumas acabaram por sair. Mas alguns livros individuais, que eram os livros que eu mais gostava deste ou daquele poeta. E o da Natália Correia esteve sempre nessa lista, porque é o livro dela de que gosto mais. Foi passando, ano após ano, foram saindo outras coisas e, quando estávamos a planear o ano de ’23, pensámos: o livro faz 50 anos, é o centenário da Natália Correia, se calhar era altura ideal para lançar este livro que já estava pensado, embora sem contexto. Na altura, não tinha nenhum contexto particular, o livro tinha sido recolhido nas obras completas da Natália na D. Quixote e entretanto saiu na Ponto de Fuga a poesia completa. Nem sabia, quando estava a tratar da edição deste. Porquê agora? Por razões óbvias. Porquê este livro? Porque é o livro que me interessa mais e não é um livro em que as pessoas pensem mais frequentemente. Pensam mais nos poemas mais ocasionais, os poemas parlamentares, ou então Os Sonetos Românticos, que é o último livro dela, ou outros mais carregados. Acho que este livro é um livro muito importante, quer do ponto de vista poético, quer da relação de uma intelectual cosmopolita com a Europa: uma relação complicada, em ’73. Ou seja, no momento em que nós estávamos prestes a voltar a ser só Europa. Achei que deste ponto de vista era um livro também muito singular.

Pode aprofundar porque é que gosta tanto do livro?
PM:
O livro tem as virtudes que tem a poesia da Natália Correia, que é, neste caso, muito impetuosa, muito inventiva, muito sarcástica, tudo isso. Mas acho que, enquanto noutras dimensões da obra poética dela eu tenha menos identificação — quer dizer, eu tenho imenso interesse por outras dimensões da obra dela. Como digo na badana do livro, ela tinha escrito um livro sobre os Estados Unidos, Descobri que Sou Europeia, aquilo que viu na América não lhe agradava muito. Este livro nasce das viagens do contexto das viagens que fez como escritora e como editora, pela Europa. A expressão que me ocorre é a de uma europeísta eurocética. É claramente além com valores e referências da tradição cultural, literária e política europeia, cosmopolita e tudo isso, mas que nessas suas viagens não encontra exatamente a Europa de que estava à espera. Soubemos, já depois do 25 de Abril e do processo de adesão à CEE, que ela alinhou entre os eurocéticos. Há ali uma ideia de que a Europa está a trair o seu próprio passado, está a trair a sua melhor tradição. Há uma série de observações e acusações de conformismo, uniformização, americanização, tudo isso. É um livro que tem essa tensão que acho muito interessante: de alguém de quem à partida só se esperaria um entusiasmo com tudo o que significa a Europa, a história e a cultura, mas que não pode deixar de confessar a sua deceção e a sua apreensão. Isso tem particular força porque éramos um país, como se dizia na altura, pluricontinental e íamos deixar de o ser. Estávamos à beira de regressar à nossa condição de país do continente europeu apenas. E o grande desígnio político português, pelo menos nalguns sectores, e no caso de Mário Soares desde sempre, era a Europa. A Europa passou a ser o novo Brasil. É muito curioso que ela começasse a destoar desse novo projeto nacional, antes do 25 de Abril. Antes sequer de se falar disso. Este livro é uma mistura das virtudes poéticas, que existem noutros livros, com um motivo específico, particularmente interessante e único. Não me estou a lembrar de outros poetas que tenham escrito livros inteiros sobre a ideia da Europa, pelo menos naquela época.

Há autores que têm muitos epílogos, outros não têm nenhuns. No caso dela, foi tão dominada, enquanto deputada e autora de programas de televisão e ativista cultural, pela sua imagem pública, que os textos ficaram um bocadinho esquecidos na memória que muitos de nós temos dela.
Pedro Mexia

São uma espécie de crónicas em formato de poesia.
PM:
Sim. Isso aconteceu também noutros momentos. Por exemplo, os poemas que ela escreve a seguir ao 25 de Abril, um livro que se chama Epístola aos Iamitas, são poemas sobre o PREC [Processo Revolucionário em Curso] e são no fundo crónicas em verso. São poemas sobre o Vasco Gonçalves… Aliás, como ela fez em alguns dos seus poemas mais famosos: o famoso poema sobre o deputado do CDS, que é, no fundo, aquilo a que se chama versos de circunstância. Ela tinha esse lado espontaneamente no hemiciclo da Assembleia da República, conseguia estar ali a escrever um poema satírico sobre um deputado que acabara de discursar. Acho que, embora esses poemas tenham muito interesse, evidentemente, acabam por reduzir a Natália Correia a uma personagem. Não há dúvida nenhuma de que era uma personagem. Mas a personagem, digamos assim, é o elo mais fraco do escritor, porque é aquilo que se vai desvanecer com o tempo, com meia dúzia de exceções. Interessa-me menos a personagem Natália Correia do que a escritora, no caso, a poeta.

Refere também na badana do livro o anjo pintado por Paul Klee que, na visão do filósofo Walter Benjamin, configura a ideia que este tinha da História e da Europa, rosto virado para o passado, asas abertas ao futuro. Natália não era conservadora, mas também não se identificava com o progresso que via acontecer na Europa. Veria a Europa como uma impossibilidade?
PM: No caso da Europa, veria pelo menos como um impasse. Acho que a Natália sempre esteve entre o passado e o futuro, no sentido em que tem um lado dinâmico, profético e, portanto, virado para futuro, por definição. Mas também tem uma ligação muito forte à tradição, desde a tradição literária portuguesa e por isso vai antologiar os trovadores, os barrocos, etc. É uma pessoa com uma noção clara da tradição literária, da tradição poética em particular. E, por outro lado, tem uma ligação, por ser açoriana — não só, mas também —, a um lado que não é bem cristão. É mais pagão do que cristão, ou pós-cristão; onde toda aquela espiritualidade, que nos Açores é muito forte, ainda mais no tempo em que ela já nasceu, se traduz na presença de um lado ancestral, mítico, mais ou menos enigmático. Isso também está muito presente na poesia dela. Isso talvez tenha sido um fator de rejeição por parte de alguns leitores, para quem aquilo pode ser nalguns momentos uma espécie de discurso místico. Parece-me que é uma das razões também pelas quais ela não é tão reivindicada como podia ser. Por exemplo, no feminismo em Portugal, é claramente uma mulher ativa no papel das mulheres na sociedade e na política, em causas conhecidas. Uma feminista marxista, por exemplo, não tem interesse algum na abordagem do que é a mulher enquanto eterno feminino ou algo do género. Ela fica sempre não só entre o passado e o futuro, como entre várias coisas. O caso muito típico é como ela é eleita deputada nas listas da AD e entra em choque com a AD na votação do aborto. É um dos vários exemplos em que ela está com um pé em cada lado. Isso acontece muitas vezes em muitos aspetos da poesia dela, a intervenção cívica. É muito interessante na obra e na personalidade da Natália, mas provavelmente foi-lhe prejudicial. No sentido em que não há muitas pessoas, imagino eu, tirando as pessoas que conviveram com ela — e ela foi com certeza marcante para essas —, não haverá muitas pessoas que reclamem a poesia da Natália Correia. Não me lembro de ler livros de poesia das gerações seguintes e dizer “isto lembra-me a Natália Correia”. Isso não acontece. Há autores que têm muitos epílogos, outros não têm nenhuns. No caso dela, foi tão dominada, enquanto deputada e autora de programas de televisão e ativista cultural, pela sua imagem pública, que os textos ficaram um bocadinho esquecidos na memória que muitos de nós temos dela.

Que atualidade têm estes poemas?
PM:
Do ponto de vista político, o lugar da Natália é muito problemático, no sentido em que, em termos muitos esquemáticos, seria uma progressista com uma costela conservadora. Certamente anti-comunista. A seguir ao 25 de Abril, foi muito notória a sua intervenção, em que nem sempre foi óbvia uma linha de continuidade de forma permanente em sua vida política. Nas várias fases da vida política, nem sempre era visível uma linha de continuidade. Ela é progressista, progressista para o seu tempo, mas este livro em particular é um livro onde há uma desconfiança em relação ao progresso, que ela diz no prefácio: aquilo a que hoje chamaríamos financeirização da humanidade, que o progresso seja confundido com uma espécie de apoteose do capitalismo económico. Isso é um dos aspetos mais fundamentais deste livro, a ideia de que a Europa não é uma ideia económico-financeira mas uma entidade cultural e espiritual. Isto também a põe num território nem exatamente progressista nem exatamente conservador, é um pouco das duas coisas, depende de como quisermos olhar para ela.

Um Europa impossível?
PM: É uma Europa da cultura e uma Europa do dinheiro, digamos de forma muito simplista. Ela estava muito alerta para tudo o que fossem ameaças. Naturalmente que a intervenção dela no tempo do PREC foi no sentido de que os valores que ela esperaria da queda da ditadura não era exatamente aqueles que pareciam estar a dominar Portugal no período do gonçalvismo. Nalgumas das suas intervenções públicas e nas definições do que seria, ou não, a liberdade é muito fácil tomarmos algumas delas como sendo mais parra que substância. Toda a gente se lembra dela a receber a Cicciolina de braços abertos no parlamento. Não diria que a eleição da Ciciolina para o parlamento italiano tenha sido um momento forte da democracia europeia. Foi um antecedente do Berlusconi, fez parte da carnavalização da política italiana que depois teve frutos no outro lado do Atlântico. Acho que ela estaria muito preocupada com aquilo que também nos preocupa, mas seria ainda mais difícil a Natália Correia estar hoje, num momento em que o tribalismo cresceu, nem numa barricada nem noutra. O legado difícil da Natália Correia é que, do ponto de vista político, religioso, estético e outros, não é propriamente apropriável por nenhuma fação. Há pessoas que só falam da Natália que editou As Três Marias, outras que só falam da Natália que gozou com o deputado do CDS, outras da Natália que atacou o Vasco Gonçalves. Mas a Natália é tudo isso. No caso da obra poética dela, nos poetas é muito importante haver alguém nas gerações subsequentes que se reclame desses autores, a posteridade da Natália é incerta. Há autores de que gosto muitíssimo cuja posteridade é incerta, agora com a reedição da poesia completa e a biografia há um renovar de interesse, mas o facto de a maioria das pessoas que falam da Natália falarem da pessoa Natália Correia é um problema.

Natália Correia: uma mulher que era um mundo

É um problema para o autor.
PM:
É um problema para o autor porque daqui a umas poucas décadas já não há ninguém vivo que tenha conhecido a Natália Correia. A imagem que todos tínhamos é uma imagem que vai deixar de estar presente. As pessoas não vão lembrar-se dos programas televisivos, [do livro de poemas] Mátria, dessas coisas todas. Isso marcava a Natália Correia para o bem e para o mal: tornaram-na numa pessoa conhecida de todos, mas também havia pessoas que condicionavam a leitura da obra da Natália Correia com a impressão prévia que tinham dela como figura pública. No final da História o que fica sempre são os livros. É nos livros que se joga a posteridade, e não na personalidade.

"Nem sempre é claro nos poemas o que é que motiva o descontentamento dela. Nalguns casos, percebe-se genericamente. São assuntos que têm a ver com a tal homogeneização. Terão sido experiências específicas dela ou acontecimentos da atualidade política que a tenham motivado para escrever poemas."
Pedro Mexia

Ela criticava este capitalismo, o dinheiro, a financeirização. Mas também foi uma pessoa ativa e com receio de que Portugal, no pós 25 de Abril, se tornasse comunista. Ela tinha muita, muita, muito receio de uma sociedade soviética. E nesse sentido, poderíamos falar sou completamente independente porque critica ambos os lados.
PM: Ela identifica ambas as ideologias como inimigos da liberdade. Uma das coisas que eu acho muito notória no livro, e isto atribuo às suas raízes açorianas, é o facto de ela estar muito focada nas singularidades. Cada ilha tem as suas especificidades, assim como Portugal tinha as suas no contexto da Europa. Ela criou um pouco aquela ideia de que o projeto europeu, juntamente com o capitalismo, vão ambos no caminho de esbater as singularidades. No fundo, esbater a ideia de que sermos todos europeus é sermos todos iguais. É deixar de haver as características nacionais e ela era claramente muito apegada às características nacionais, regionais e pessoais. Eu acho que isso é o que ela era enquanto pessoa e a sua posição política nessa matéria fazem todo o sentido.

Se ela viesse visitar Lisboa nos dias de hoje…
PM:
Não aconselhava esse regresso.

Natália tinha cidades preferidas?
PM:
Não sou capaz de especificar, sem os versos à frente, a relação com cada cidade. Nalguns casos, é muito notório na maneira como ela fala nas amnésias históricas. Isso é muito notório num país como a Alemanha, num poema como o de Frankfurt, imagino que ela terá ido à Feira [do Livro] de Frankfurt, em que podemos chegar à Alemanha pelas melhores das razões, nomeadamente literárias, musicais, filosóficas e outras, ou pelas piores e evidentes razões da história contemporânea. Nem sempre é claro nos poemas o que é que motiva o descontentamento dela. Nalguns casos, percebe-se genericamente. São assuntos que têm a ver com a tal homogeneização. Terão sido experiências específicas dela ou acontecimentos da atualidade política que a tenham motivado para escrever poemas. Isso é um bocadinho elidido, os poemas raramente se apresentam como comentário direto, ao contrário dos poemas portugueses do PREC. Existem, naquela dialética, alguns elementos do passado que infelizmente se perderam e existem elementos do passado que infelizmente voltarão.

António Aguiar

Como é o caso da ascensão da extrema-direita?
PM:
Há uns anos, comprei alguns livros sobre a situação política europeia, todos eles falavam da extrema-direita na Europa e todos eles diziam que em Portugal e Espanha não há nada a assinalar, porque a proximidade das ditaduras que faz com que não seja relevante a extrema-direita nestes países. Isto foi há 20 anos. A História nunca está resolvida. Não me ocorreria citar propriamente isso como recomendação do livro, mas é verdade que isso também lá está: estão lá os eternos retornos, alguns deles não são filosóficos, mas são históricos. Na verdade, o que acho mais interessante no livro, além do arsenal retórico e sonoro de tudo isso que ela tem, é que ele faz parte de uma história de uma relação um pouco incerteza dos intelectuais portugueses com a Europa: por um lado, entusiasmados e a dizer que é preciso modernizar, a geração de 70, etc, por outro lado muito ciosos da tradição portuguesa, da especificidade portuguesa, da ideia de que vamos ser engolido, de que vamos ser iguais aos outros e que somos um país muito mais antigo. Essa discussão existe em vários momentos e chega a ser, até mesmo no próprio autor, cicloquímica. Ora estamos entusiasmados com a Europa, ora estamos desagradados com a Europa. A Europa é, no fundo, uma entidade mítica, tão mítica como os adamastores ou as ilhas dos amores [ambos retratados por Camões]. Nós na palavra Europa projetamos uma série de coisas que são basicamente as coisas que achamos que não somos. Nesse e apenas nesse sentido, o livro é paradigmático de uma relação muito incerta com a Europa, que parece ser a ideia de casos de entusiasmo pela Europa, foi certamente no século XIX, mas depois esses mesmos autores do século XIX, começando pelo Eça [de Queiroz], que acaba muito mais português do que europeu na sua cabeça. A União Europeia já não goza do prestígio que a palavra Europa ainda tem. A degradação da entidade Europa na entidade da União Europeia: há uma degradação do produto na passagem de um para o outro. O livro dela tem alguma coisa a ver com isso.

A intelectualidade portuguesa contemporânea ainda tem esta relação incerta com a Europa?
PM:
Era preciso ver caso a caso. Estamos num momento muito bizarro da União Europeia, em que, por exemplo, estamos a discutir os requisitos de adesão à União Europeia de países que não são da União Europeia, quando há neste momentos países da União Europeia que não os cumprem.

Os casos da Hungria e da Polónia.
PM: Estamos a exigir à Ucrânia requisitos que a Hungria ou a Polónia não cumprem. Estamos num momento bizarro em que já não podemos presumir que essa distinção entre os membros da União Europeia e os países que não são membros da União Europeia é uma distinção tão nítida quanto isso. Não há nada parecido, como algumas pessoas achavam que ia acontecer, com um patriotismo europeu. As pessoas são europeias mas não se sentem europeias: não há um sentimento, há uma identificação com uma cultura, com uma tradição, mas imagino que as pessoas só se sintam europeias se estiverem na Mongólia ou assim. Apesar de tudo, há um certo folclore das festas e do futebol e dessas coisas todas que nos exigem ou solicitam uma certa teatralização do patriotismo. Mas a Europa é um bocado uma ideia. Desse ponto de vista, este livro da Natália não é um corpo tão estranho quanto parece na nossa relação com a Europa. Sem, evidentemente, reduzir o livro a um tema. O livro tem um arsenal vocabular e retórico da Natália que é muito impressionante.

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