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A carta foi aprovada pelo Parlamento sem votos contra
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A carta foi aprovada pelo Parlamento sem votos contra

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A carta foi aprovada pelo Parlamento sem votos contra

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Censura ou combate à desinformação? As polémicas à volta da Carta dos Direitos Humanos na Era Digital

O Parlamento aprovou-a sem votos contra e Marcelo promulgou-a. Mas agora há quem veja na Carta dos Direitos Humanos na Era Digital uma forma de censura. Perguntas e respostas sobre a polémica.

O texto foi aprovado pelo Parlamento — sem votos contra — e já foi promulgado pelo Presidente da República. Contudo, menos de dois meses depois dessa votação, a nova Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital está envolvida em polémica.

Na esfera pública, multiplicam-se as críticas ao documento e as acusações de censura. A Iniciativa Liberal, que se absteve na votação parlamentar, já anunciou que vai avançar com uma proposta para mudar um dos artigos do texto, que quer estabelecer um novo paradigma de direitos humanos numa era marcada pela sociedade digital: para os liberais, o artigo que implementa em Portugal a estratégia europeia de combate à desinformação é uma inaceitável ferramenta de censura. O documento, cuja aplicação terá de ser regulamentada pela Assembleia da República, vai alimentando o debate público por estes dias. Mas, afinal, o que está em causa?

O que é a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital?

É preciso recuar até 28 de junho de 2018 para perceber as raízes da discórdia agora em cima da mesa. Nesse dia, após uma longa e dura maratona negocial de dez horas, os líderes europeus chegavam a um acordo sobre as migrações, o tópico que marcava a agenda de uma Europa que poucas semanas antes vira o nacionalista Matteo Salvini chegar a ministro do Interior de Itália. Por isso, poderá ter passado despercebido nesse dia um dos outros pontos das conclusões daquele Conselho Europeu: um apelo lançado à Comissão Europeia e aos Estados-membros para que apresentassem, até dezembro daquele ano, propostas para um plano de ação contra a desinformação, que nos anos anteriores se afirmara como um dos principais desafios às sociedades contemporâneas.

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As propostas chegaram e, no dia 5 de dezembro de 2018, a Comissão apresentou o Plano Europeu de Ação contra a Desinformação. “A saúde da democracia depende da existência de um debate público aberto, livre e equitativo”, disse na ocasião a alta representante da UE para a política externa, Federica Mogherini. “Cumpre-nos proteger esse espaço, impedindo a disseminação de desinformação suscetível de alimentar o ódio, as divisões e a desconfiança em relação à democracia. Decidimos, enquanto União Europeia, agir em conjunto a fim de reforçarmos a nossa resposta, promovermos os nossos princípios e apoiarmos a resiliência das nossas sociedades, tanto dentro das nossas fronteiras como nos países vizinhos. É essa a resposta da Europa a um dos principais desafios do nosso tempo.”

"A saúde da democracia depende da existência de um debate público aberto, livre e equitativo. Cumpre-nos proteger esse espaço, impedindo a disseminação de desinformação suscetível de alimentar o ódio, as divisões e a desconfiança em relação à democracia."
Federica Mogherini, antiga alta representante da UE para a política externa

Na verdade, não era a primeira vez que a União Europeia se pronunciava sobre o assunto. Em março de 2015, o Serviço Europeu para a Ação Externa implementara a East StratCom, um grupo de trabalho para monitorizar e prevenir as campanhas de desinformação política lançadas pela Rússia. Nos anos seguintes, a Comissão Europeia viria a endurecer o combate à desinformação, designadamente com a criação de um código de conduta assinado por gigantes como o Facebook, a Google e o Twitter.

A controvérsia em torno das eleições norte-americanas de 2016 já tinha dado o mote para uma discussão global, incluindo em Portugal, sobre o problema da desinformação, das fake news e da manipulação política na era das redes sociais. Em dezembro de 2018, quando a Comissão Europeia apresentou o plano de ação, o debate sobre o assunto em Portugal intensificou-se. O presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, pediu à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) que fizesse uma reflexão aprofundada sobre o problema, que resultou num longo relatório acerca da desinformação no contexto europeu e nacional, publicado em abril de 2019. O documento serviria de base a uma conferência no Parlamento, no mesmo mês, que colocou definitivamente o tema da desinformação na agenda política portuguesa.

O combate à desinformação integrou-se numa discussão maior sobre os direitos humanos na era digital, que se aprofundou quando o Partido Socialista apresentou no Parlamento a proposta para a produção de uma Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital. Entre os direitos mais célebres defendidos à época encontrava-se o “direito a desligar” — ou seja, o direito dos trabalhadores a desligarem o computador e o telemóvel fora do horário de trabalho para poderem aproveitar o tempo de descanso. Já nessa altura a proposta do PS implicava a adoção em Portugal de medidas ao abrigo do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação.

Desligar telemóvel e computador fora do trabalho vai ser um direito

Ao fim de praticamente dois anos de discussões, que incluíram um grande número de pareceres de várias instituições do setor da informação, das tecnologias digitais e do direito, e já depois de um projeto semelhante do PAN se ter juntado à discussão, o Parlamento aprovou em 9 de abril deste ano por uma larga maioria o documento final, que não mereceu qualquer voto contra. PS, PSD, Bloco de Esquerda, CDS, PAN, Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues votaram a favor; já o PCP, os Verdes, o Chega e a Iniciativa Liberal abstiveram-se. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou a lei em 9 de maio, formalizando definitivamente a publicação da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.

O que diz a Carta e quais são os pontos polémicos?

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital pode ser lida na íntegra na página do Diário da República, onde já foi formalmente publicada.

A quase totalidade do documento — que prevê direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no ciberespaço — tem merecido um apoio generalizado em todo o espectro partidário. Ao longo de 21 artigos, a carta estabelece princípios como o “direito ao esquecimento” (ou seja, todos têm o direito a que os seus dados sejam apagados da internet e o Estado tem o dever de ajudar os cidadãos no cumprimento desse direito), o “direito à cibersegurança” (devendo o Estado definir políticas públicas para o garantir), o “direito à proteção contra a geolocalização abusiva” ou o “direito à privacidade em ambiente digital”. A carta determina ainda que direitos já conhecidos, como o direito de reunião, manifestação e associação, também têm uma expressão no ambiente digital.

Uma grande parte do documento pronuncia-se, por outro lado, sobre os direitos associados ao próprio acesso à internet. Logo no terceiro artigo, a carta determina que todos os cidadãos, sem exceção, “têm o direito de livre acesso à Internet”, e impõe sobre o Estado um conjunto de deveres relativos à promoção de um ambiente digital saudável, mas também à garantia da própria infraestrutura da rede. A carta garante a transposição da liberdade de expressão e criação para o ambiente digital, proíbe o Estado de interromper o acesso à Internet ou a partes dela e assegura o direito à neutralidade da Internet. O documento cria ainda a figura da ação popular digital, que significa, na prática, que os cidadãos têm o direito de recorrer aos tribunais sempre que os seus direitos digitais não forem respeitados.

Há, no entanto, um artigo no centro da discórdia.

O artigo 6.º, que define o “direito à proteção contra a desinformação”, é assumidamente um modo de implementar em Portugal o Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, “por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas (…) que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”.

“Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”, diz o artigo. “Considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

Há, porém, exceções: “Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.”

O artigo termina com os pontos mais polémicos. “Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo”, lê-se. Além disso, o Estado “apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.

O que dizem os críticos?

Há quem veja neste artigo 6.º uma forma de censura — logo a começar pela Iniciativa Liberal, partido que esta segunda-feira anunciou que vai avançar com uma proposta para mudar aquele segmento legislativo.

Para os liberais, o artigo é “um primeiro passo para a criação de um Ministério da Verdade”. “Não é aceitável ser o Estado a dotar de selos de qualidade estruturas de verificação de factos. Isso seria um primeiro passo para a criação de um Ministério da Verdade que passasse a controlar a opinião o que os cidadãos expressam na internet”, diz o partido de João Cotrim de Figueiredo.

O líder da IL, João Cotrim de Figueiredo, é o principal rosto da oposição ao projeto

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Segundo o comunicado difundido esta segunda-feira, foi precisamente o artigo 6.º que levou a IL a abster-se na votação.

O projeto aprovado tem pontos que afirmam a internet como espaço de liberdade, sobretudo de liberdade de expressão, onde não pode haver censura”, diz a IL. “Convém notar que já houve vários casos em que estas tais estruturas de verificação de factos já se enganaram e outros casos em que estruturas diferentes deram resultados diferentes ao mesmo tópico em análise.”

De acordo com os liberais, o projeto é genericamente positivo, uma vez que reforça os direitos dos cidadãos — mas o artigo que pretende implementar a proteção contra a desinformação atribui ao Estado poderes indevidos para controlar quem difunde informação, quando devem ser os cidadãos a consumir fontes de informação variadas e formarem os seus próprios juízos. Por isso, a IL critica a ideia de atribuir selos de qualidade a ferramentas de fact-checking (como o Observador) e assinala que o problema se aprofunda com a atribuição de poderes à ERC para analisar queixas nesse sentido.

Mas a Iniciativa Liberal não é a única a apontar estas críticas ao artigo 6.º da carta. Nos últimos dias, em múltiplos artigos de opinião na imprensa portuguesa, algumas figuras relevantes da política portuguesa já se vieram opor ao documento — e também usaram a palavra censura.

Foi o caso do sociólogo e ex-ministro da Agricultura António Barreto, que escreveu no Público: “Esta lei consiste no mais atrevido ataque à liberdade de expressão desde há quase um século. A lei é uma tentativa violenta de impor uma moral, de regular o pensamento, de orientar as mentalidades e de condicionar convicções. A lei delega poderes públicos em instituições, entidades e empresas, privadas ou públicas, a fim de orientar o pensamento, de vigiar a opinião e de condicionar a liberdade de expressão.”

"Não é aceitável ser o Estado a dotar de selos de qualidade estruturas de verificação de factos. Isso seria um primeiro passo para a criação de um Ministério da Verdade que passasse a controlar a opinião o que os cidadãos expressam na internet."
João Cotrim de Figueiredo, deputado da IL

Salazar não faria melhor! Salazar não fez melhor! Polacos, húngaros e turcos não fariam melhor! Fascistas e comunistas não fariam melhor. Porquê? Porque agora utiliza-se a democracia para fazer as mesmas coisas. Usa-se a democracia para fazer o serviço sujo. Recorre-se à democracia para manipular, orientar e proibir. Emprega-se a democracia para favorecer e privilegiar”, acrescentou, num artigo com o título “A Inquisição, a Censura e o Estado”.

O académico e ex-deputado do PSD José Pacheco Pereira também criticou, na revista Sábado, “a institucionalização da censura”. “A coisa abre, como de costume, cheia de boas intenções e todos os rodriguinhos do atual discurso político, e muitas das disposições ou são platitudes sem efeito ou têm ambiguidades que se pode vir a verificar serem perigosas para a liberdade. Acresce que é bastante inútil para o fim em vista, mas muito eficaz para outros. Mas basta o artigo 6º para todos os alarmes soarem. A responsabilidade é portuguesa e europeia e mostra a deterioração do pensamento sobre a liberdade na Europa, já que em Portugal nunca foi muito pujante.

O assunto foi também debatido no episódio “A censura está de regresso e ninguém protesta?“, do programa “Contra-Corrente”, da Rádio Observador, com José Manuel Fernandes.

A censura está de regresso e ninguém protesta?

Como respondem os defensores do projeto?

O deputado socialista José Magalhães, um dos autores da carta, diz que a crítica “assenta num equívoco” e lamenta que João Cotrim de Figueiredo não tenha submetido, ao longo de um processo que “demorou mais de um ano e meio”, uma posição formal deste tipo.

"Obviamente, nunca passou pela cabeça da ERC ou pela nossa que fosse o Estado a atribuir selos de qualidade."
José Magalhães, deputado do PS

“Onde ele vê uma intromissão do Estado na verificação de factos e emissão de selos de qualidade não há intromissão nenhuma”, assevera José Magalhães ao Observador. “A única função do Estado vai ser exercida pela Assembleia da República quando regulamentar esta lei e aprovar uma lista das entidades que podem ser credenciadoras. Podíamos pôr o Palácio da Ajuda ou o Palácio Foz a atribuir selos? Caía o Carmo e a Trindade — e bem. A Constituição proíbe a programação da cultura e a graduação da qualidade dos órgãos de informação.”

“Obviamente, nunca passou pela cabeça da ERC ou pela nossa que fosse o Estado a atribuir selos de qualidade”, insiste, lembrando que a proposta dos selos de qualidade surgiu de um conjunto de discussões em torno do plano de ação europeu e também das recomendações emitidas pela ERC na sequência do relatório e da conferência de 2019. No plano europeu é mencionada repetidamente a necessidade de os Estados-membros da UE promoverem e facilitarem o trabalho dos órgãos de comunicação e dos verificadores de factos, bem como a importância de reconhecer os meios de comunicação credíveis — embora não haja uma referência direta a selos de qualidade.

Em resposta aos críticos, José Magalhães diz que “estiveram muito distantes deste processo legislativo” e remete para o arquivo parlamentar, disponível na internet. “Consultámos ene entidades, encontrará lá os pareceres todos. Ninguém apareceu a dizer ‘atenção ao lápis azul’. Por uma razão muito simples: não há nenhum lápis azul.

O deputado socialista contrapõe com um exemplo: o artigo 55.º dos estatutos da ERC, onde é determinado como os jornalistas e os meios de comunicação social podem ser responsabilizados pelo que publicam. “Ninguém diz que a lei que definiu os estatutos da ERC é o lápis azul. A aplicação do artigo 55.º não tem dado lugar a drama nenhum, não há uma rebelião dos jornalistas.”

O deputado socialista José Magalhães é um dos autores da carta

MIGUEL A. LOPES/LUSA

José Magalhães já tinha defendido esta posição na Rádio Observador, no programa Contra-Corrente de 14 de maio. “Em relação a Portugal, seguimos a definição do documento de estratégia da União Europeia. Não inventámos. A primeira constituição que eu estudei, por obrigação, foi a Constituição de 1933 da ditadura. Conheço-a bastante bem. Não se tratou de imitar qualquer preceito. Pelo contrário, temos pelo meio uma que nos resgata da ditadura, chamada Constituição de Abril”, disse. “Ao enquadrar direitos, ela não é um espartilho. É uma garantia. Aqui trata-se exatamente da mesma coisa. Há uma estratégia subjacente à carta.”

“A Assembleia da República aprovou por uma maioria superior à necessária para uma revisão constitucional esta lei, que é uma lei vinculativa, em defesa de liberdades e para resolver problemas reais. Podemos meter a cabeça dentro da areia e fingir que eles não existem, mas isso significa deixar atuar de maneira selvagem forças que acabarão por limitar as liberdades. Portanto, essa posição não é a posição da União Europeia”, considerou o deputado socialista, que rejeita a ideia de que a nova lei contribui para qualquer tipo de censura: os cidadãos podem difundir opiniões ou mensagens factualmente erradas, mas não podem passar-se por órgãos de comunicação legítimos.

“Há um tonto do meu bairro que acha que a Terra é plana. OK, pronto, que seja feliz. Não compro essa tese, estou-me nas tintas para o que ele pensa. Mas não se arma em Observador — o Observador até faz fact-checking. Não se confunde com o menino da lambreta que resolve inventar umas tretas e rasgar as vestes, ai ai, vem aí a censura. Pode. Pode, pode. Pode fazer figura de parvo. Não há problema nenhum com isso.”

O que se passa a nível europeu?

É importante recordar que o documento que está no centro do artigo polémico é um plano de ação europeu, mas não uma diretiva nem qualquer outro documento legislativo — ou seja, não exige uma transposição direta para o ordenamento jurídico dos Estados-membros. Segundo explicou ao Observador um porta-voz da Comissão Europeia, a documentação europeia inclui-se num esforço ativo de “luta contra a desinformação” que deverá ajudar o executivo comunitário a assegurar “mais coordenação a nível europeu”. Àquele plano de dezembro de 2018 já se seguiram várias outras iniciativas: um plano de ação para a democracia europeia “para reforçar o trabalho da UE contra a desinformação e para se adaptar a ameaças crescentes”; um reforço do Código de Conduta que deve ser assumido pelas grandes empresas que operam no setor; e ainda uma lei dos serviços digitais “que determina regras para garantir maior responsabilização no modo como as plataformas moderam o conteúdo, na publicidade e nos processos algorítmicos”.

epa09187683 European Commission President Ursula von der Leyen delivers her speech during the Future of Europe conference at the European Parliament in Strasbourg, eastern France, Sunday, May 9, 2021.  EPA/Jean-Francois Badias / POOL  MAXPPP OUT

A Comissão Europeia de Ursula von der Leyen definiu o combate à desinformação como uma das principais prioridades

Jean-Francois Badias / POOL/EPA

O plano de 2018 teve o objetivo de reforçar a cooperação entre Estados-membros, mas não significa necessariamente que todos os países estejam a adotar documentos como o português. Um dos pontos centrais do plano, na verdade, foi a nomeação de um gabinete de contacto entre cada Estado-membro e Bruxelas, para pôr em funcionamento um sistema de alerta rápido que permita identificar fontes de desinformação o mais velozmente possível no território dos 27 Estados-membros. Mas os países podem decidir o modo como integram estes princípios nas suas políticas internas.

Mas basta olhar para Espanha para perceber que Portugal não está sozinho. Em novembro de 2020, o governo de Pedro Sánchez publicou uma ordem ministerial com um protocolo destinado a lutar contra a desinformação em Espanha, ao abrigo do plano de ação europeu. O sistema espanhol prevê a emissão de alertas nacionais e internacionais sempre que são identificados pedaços de desinformação na internet — mas também ali a proposta do governo socialista foi criticada pela oposição. Os partidos de direita, PP e Ciudadanos, usaram aliás a mesma expressão que Cotrim de Figueiredo viria a usar meses mais tarde e classificaram a ideia como uma tentativa de criar um Ministério da Verdade. Porém, Bruxelas deu luz verde ao protocolo espanhol.

A partir de Portugal, o primeiro-ministro, António Costa, quer que a Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital seja um exemplo para toda a União Europeia, que até ao fim deste mês ainda está sob a presidência portuguesa.

Governo apresenta declaração de direitos digitais a países europeus

Esta terça-feira, Costa apresentou a “Declaração de Lisboa — Democracia Digital com Propósito”, um documento em tudo semelhante à carta portuguesa, embora com uma abordagem muito menos restritiva no que respeita à questão da desinformação do que o controverso artigo 6.º do texto nacional. Com a declaração, António Costa quer dar à UE uma proposta para criar legislação sobre os direitos humanos na era digital inspirada no exemplo português. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já elogiou a proposta.

O que acontece agora?

A Iniciativa Liberal já anunciou que irá apresentar uma proposta para mudar o artigo 6.º da carta, que ainda terá de ser sujeita a regulamentação por parte da Assembleia da República. Ainda não são conhecidos os detalhes concretos da proposta da IL nem o contexto em que vai apresentá-la.

O Observador fez esta terça-feira uma ronda pelos partidos e deputadas não inscritas do Parlamento português para perceber o que pode vir a acontecer.

Da parte do PS, prevê-se desde já um voto contra as ideias da Iniciativa Liberal, “porque não enfiamos a carapuça e seria um retrocesso”, afirma o deputado José Magalhães.

A carta precisa de se regulamentada no Parlamento

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

O PSD, que não respondeu às perguntas do Observador, foi um dos partidos a conseguir introduzir alterações à legislação e a declarar-se satisfeito com o resultado final. “Graças à aprovação das nossas propostas, a Carta de Direitos Digitais ficou mais equilibrada. Conseguimos aperfeiçoar e melhorar o diploma, compatibilizando-o com os diplomas internacionais e europeus e com as definições e conceitos técnicos existentes”, congratulou-se em março a deputada social-democrata Sara Madruga da Costa, uma das mais diretamente envolvidas no processo.

O PCP, por seu turno, absteve-se na votação precisamente devido ao artigo 6.º, uma vez que se opõe ao plano europeu. “O PCP não votou favoravelmente esta lei, tendo optado pela abstenção, por discordar da adoção por Portugal de um ‘Plano Europeu de Ação contra a Desinformação’ que introduz um controlo público europeu sobre o que se considera desinformação, tornando a narrativa das instituições europeias como critério da verdade”, disse ao Observador fonte oficial do grupo parlamentar comunista. “O PCP também se demarcou do apoio estadual à criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social, por entender que não cabe ao Estado promover esse tipo de apoios.” Sobre a proposta da Iniciativa Liberal, o PCP diz ainda não ter elementos para a avaliar, remetendo para mais tarde um pronunciamento acerca do sentido de voto.

Por outro lado, o PAN, autor de um dos projetos que resultaram na carta, não poupa nas críticas à proposta dos liberais. “Se o IL estivesse realmente preocupado com a questão da suposta censura teria apresentado propostas próprias no processo de discussão na especialidade e não o fez, portanto, esta proposta não é um exercício sério”, diz a deputada Inês de Sousa Real, líder parlamentar, ao Observador. “Em todo o caso, essa crítica dá-nos a sensação de que estamos numa lógica de ‘mundo ao contrário’. Como se pode falar em censura num diploma que, pela primeira vez, afirma que em ambiente digital os cidadãos têm o direito à livre criação intelectual, artística, científica e técnica, direito de reunião, manifestação, associação e participação, direito a utilizar os meios digitais para a organização e divulgação de ações cívicas?”

"Se o IL estivesse realmente preocupado com a questão da suposta censura teria apresentado propostas próprias no processo de discussão na especialidade e não o fez, portanto, esta proposta não é um exercício sério."

Ainda assim, o PAN não está completamente satisfeito com o texto final. “Apesar de se ter consagrado em lei, por proposta do PAN, um direito à neutralidade da internet, esta lei acabou por ficar aquém do desejado ao não acolher a proposta do PAN de proibição e punição de práticas de zero-rating abusivo por parte das operadoras – que atualmente surge em inúmeras operadoras que oferecem pacotes com dados artificialmente baixos para obrigar à subscrição de pacotes de zero-rating, algo que viola este direito de acesso neutral, põe em causa os direitos dos consumidores e afronta os princípios da concorrência”, exemplifica Inês de Sousa Real.

“Será importante dizer que a desinformação (mais conhecida por fake news) são um problema, que já vimos, pode pôr em causa a nossa democracia e aí, sim, as nossas liberdades (conforme vimos recentemente nos EUA), a norma nos termos propostos limita-se a consagrar no nosso país as recomendações da União Europeia nesta matéria”, diz a líder parlamentar do PAN. Ainda assim, sobre um eventual voto na proposta da IL, Inês de Sousa Real diz apenas: “Se qualquer dúvida houver, no momento da regulamentação poderá servir para proceder às devidas clarificações”.

A deputada não inscrita Cristina Rodrigues (que se desfiliou do PAN no verão de 2020) votou a favor da lei, mas agora diz compreender a dúvida levantada pela IL. “Posso desde já dizer que percebo que o art. 6.º não é suficientemente claro. Ou seja, não me choca a existência de entidades que procedam à verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados, no entanto, parece-me que o referido artigo precisa de regulamentação. É necessário que se conheçam critérios, por exemplo, para que essa aferição possa ocorrer”, disse Cristina Rodrigues ao Observador. Considerando “excessivo” classificar como censura o objetivo do artigo, Cristina Rodrigues salienta que “basta acedermos, por exemplo, ao Facebook para percebermos que em muitos casos é ultrapassada a margem aceitável da liberdade de expressão”.

“Uma notícia falsa, hoje em dia, em meras horas pode chegar a milhares de pessoas e, em muitos casos, provocando danos irreparáveis havendo muita dificuldade em certas circunstâncias repor a verdade”, assegura Cristina Rodrigues, acrescentando que só quando conhecer a proposta da IL poderá dizer como vai votar.

"Censura é o corte da verdade e da liberdade, muito diferente do que a IL parece pretender, que é dar luz verde à desinformação, mentira e manipulação."
Joacine Katar Moreira, deputada não inscrita

Joacine Katar Moreira, que também votou a favor da lei, tem menos dúvidas. “Votarei contra, naturalmente, porque o maior argumento da IL não procede porque confunde ‘ódio’ com ‘opinião’, algo que acontece repetidamente em Portugal”, diz ao Observador a deputada que saiu do Livre. “Censura é o corte da verdade e da liberdade, muito diferente do que a IL parece pretender, que é dar luz verde à desinformação, mentira e manipulação.”

“Os valores democráticos e humanistas contrastam com a violência cibernética e a desinformação, pois estas atacam pessoas e entidades concretas com notícias falsas, com bullying com manipulação de imagens e vídeos passando-os por reais, criando o descrédito, exaltando a mentira e induzindo a erro e à violência e manipulando pessoas e comunidades. A proposta da IL parece-me, por isso, irresponsável e desresponsabilizadora”, acrescenta Joacine.

Os restantes partidos não responderam ao Observador até ao momento da publicação deste artigo.

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