É o fim de uma era. É cliché, mas é também a expressão que mais sentido faz aqui. The Crown chega ao fim com os seis episódios da segunda parte da sexta temporada já disponíveis na Netflix. Tal como num reinado, o percurso não foi sempre consistente. Começou de forma brilhante, sendo uma série pioneira em vários campos, mas perdeu-se pelo caminho, desviando-se daquela que poderia ter sido sempre a sua figura principal (a rainha) para dar aos espectadores a história da princesa infeliz (Diana). Esteve envolta em polémicas e acusações até ao fim, tentando fechar o círculo de novo com a sua protagonista.
Seis temporadas e 60 episódios depois, será que aquela que se estreou em 2016 como a série mais cara de sempre tem um balanço positivo?
“The Crown” em números
Quando começou, em novembro de 2016, The Crown era a série mais cara até à data, muito devido à recriação das joias, dos vestidos e dos cenários. Entretanto, foi amplamente ultrapassada e estacionou em décimo lugar, com um custo médio de 11,9 milhões de euros por episódio. O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder está em primeiro, com cada capítulo a custar 53 milhões, e Stranger Things em segundo, com 27,5 milhões.
Porém, ainda nenhuma destas atingiu os 60 episódios da história da família real. As temporadas foram ficando cada vez mais dispendiosas à medida que avançaram. Se a primeira custou 66,17 milhões de euros a produzir, a quinta subiu até aos 134,6 milhões (os números da última ainda não são finais).
O investimento valeu a pena? Essas equações não conseguimos resolver mas, de acordo com a revista Forbes, a estreia da última temporada foi reproduzida em 778 mil contas nos primeiros três dias, ainda assim um número 35% abaixo dos 1,2 milhões registados pela estreia da quinta temporada.
[o trailer da segunda parte da temporada final de “The Crown”:]
A aposta ousada na mudança de elenco
Não é estranho ver uma personagem a ser interpretada por diversos atores consoante a fase da vida em que está. No entanto, isso nunca tinha sido feito numa série, durante tanto tempo, com o elenco a rodar de forma consistente de dois em dois anos.
Já é difícil um ator interpretar alguém real, imitar-lhe os gestos e a voz, além de ser minimamente parecido fisicamente, mas nesta corrida entraram três atores para cada papel. Além de terem a tarefa de estarem no meio de uma biografia, ainda foi preciso serem semelhantes entre si. E, na sexta temporada, ainda há uma quarta Isabel II (Viola Prettejohn) a juntar-se a Claire Foy, Olivia Colman e Imelda Staunton. Numa das cenas finais percebe-se na perfeição como todas se encaixam de uma forma homogénea.
[Já saiu: pode ouvir aqui o sexto e último episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode sempre ouvir aqui o quinto episódio e aqui o quarto, o terceiro aqui, o segundo aqui e o primeiro aqui]
O único erro de casting flagrante foi Dominic West enquanto príncipe Carlos nas últimas duas temporadas. Uma opção que manchou o currículo do ator e que fez muito pouco a favor do agora rei. Carlos é um bebé chorão preso no corpo de um idoso e quase nos faz esquecer a interpretação dinâmica e a roçar a perfeição de Josh O’Connor na versão mais jovem.
Coitadinha da realeza?
A primeira temporada apresentou-nos uma jovem Isabel II, atirada para o trono aos 25 anos devido à morte precoce do pai. Obrigação passou a ser o lema da sua vida, na qual a coroa e os deveres inerentes se sobrepuseram a tudo o resto. Mas a sua castração começou bem antes: na escola, em vez de estudar geografia como os outros miúdos, decorou a constituição. Quando foi coroada, o marido passou a andar sempre um passo atrás (ninguém ultrapassa a rainha). Se ficámos com pena dela? Sem dúvida. O início de The Crown deu à rainha Isabel II um lado humano (cheio de problemas e dilemas) que talvez nunca lhe tivéssemos atribuído antes.
Não foi só a ela, aliás. A princesa Margarida, a irmã, nunca pôde casar com quem quis e o mesmo aconteceu a Carlos, condenados a uma vida amorosa caótica que teve solução para o segundo mas não para a primeira. E em troca de quê? A vida de honra perante a coroa e os exemplos que se esperavam da família real foram manchados por traições e roupa suja lavada em público (Carlos e Diana deram ambos entrevistas admitindo os casos extraconjugais).
Contas feitas, a fotografia de família conta com muitas histórias trágicas e caóticas mas a compreensão dos espectadores só vai até certo ponto. Há tanta trapalhada junta (como o próprio príncipe Filipe refere no último episódio) que, por vezes, parece que estamos simplesmente perante uma família disfuncional onde uns comportamentos geraram outros, as infantilidades são passadas à frente como se ninguém visse e há sempre alguém conciliador a apanhar os cacos. O papel da rainha aqui pode ser esse, mas ela própria não está isenta de culpas. Dos quatro filhos que teve nunca se viu relação realmente próxima com nenhum. O instinto maternal parece ter saltado uma geração, manifestando-se numa preocupação com os netos que não manifestou com os filhos (e o mesmo é válido para o marido).
O caos que ficou de fora
Os membros da realeza podem respirar de alívio, já que os últimos episódios de The Crown se situam numa época pouco fértil em polémicas. Os quatro primeiros arrastam-se pelas últimas semanas da vida de Diana e consequente morte e os restantes seis parecem algo perdidos (já lá iremos). Para felicidade de quem ainda anda pelos corredores do Palácio de Buckhingam, a narrativa termina em 2005, com o casamento de Carlos com Camila.
A cronologia retratada na série não chegou aos dias de hoje e, por isso, não abordou o escândalo sexual que envolveu o príncipe André (e fez com que ele fosse afastado da vida pública) e da chegada de Meghan Markle, talvez a princesa que teve tanto de popular e polémica como Diana. A autobiografia de Harry, Na Sombra, também não assombrou (!) a família real da ficção — embora haja um piscar de olhos numa cena em que a rainha diz a William que “o sistema protege o primogénito”, e o segundo (“the spare”, o suplente, título original do livro) precisa de mais carinho e atenção.
Inúmeras polémicas
Mas tenhamos alguma calma. Se querem polémicas, a série teve muitas nos últimos tempos. “A lição de história falsa é tão corrosiva como as fake news”, escreveu o jornal britânico The Guardian em 2020.
Num dos episódios da quinta temporada, o príncipe Carlos explora a possibilidade de afastar a mãe para subir ao trono. Fá-lo numa conversa com o então primeiro-ministro, John Major. Para não ser arrastado para esse cenário hipotético, o político foi rápido a desmentir tudo através de um comunicado. “Nunca houve nenhuma conversa entre Sir John e o então príncipe de Gales sobre qualquer possibilidade de abdicação da rainha Isabel II”, garantiu.
Chocados pelas insinuações de casos extraconjugais do príncipe Filipe, da ganância de Carlos ou simplesmente porque qualquer menção à família real é desrespeitosa, como chegou a classificar Dickie Arbiter, antigo secretário de imprensa da rainha, a Netflix foi constantemente atacada, incluindo pela atriz Judi Dench, que em 2022 escreveu no jornal The Times. As acusações de “sensacionalismo cru” e “relato impreciso e prejudicial” acabariam por levar a plataforma de streaming a acrescentar um aviso no início dos episódios:
Inspirada em factos verídicos, esta dramatização ficcional conta a história da rainha Isabel II e dos acontecimentos políticos e pessoais que marcaram o seu reinado”
Porém, a sexta temporada ainda tinha material guardado para os críticos. A primeira parte, dedicada praticamente só às últimas semanas de vida de Diana, deixou de fora a recriação de momentos que podiam chocar, como o acidente em Paris em que acabaria por morrer. Mas a imprensa britânica não perdoou “o fantasma de Diana”. Em dois momentos, já depois de morta, a princesa fala com Carlos e com a rainha, como se estes estivessem a ter uma conversa que nunca chegou a acontecer. De “mau gosto” a “desumano”, os adjetivos do descontentamento transformaram-se numa bola de neve que ainda não parou de rolar.
“The Crown” perdeu o rumo?
A resposta pode não ser óbvia nem simples, mas inclina-se mais para o “sim”. A partir da quinta temporada houve um claro descarrilamento. Nessa fase, a série quis abordar demasiados acontecimentos diferentes (o desmantelamento do navio da rainha, a ascensão de Al-Fayed), dando episódios inteiros a arcos narrativos que podiam ter ocupado apenas um par de cenas — e, pior, a ligação entre os capítulos foi muitas vezes inexistente. O erro mais grave foi remeter Isabel II para um papel de espectadora, em vez de protagonista, escolha que só foi corrigida (q.b.) no final da série. Diana e Carlos tomaram conta e deram-nos os dramas que já tínhamos visto escarrapachados nos tabloides. Os momentos de bastidores (que nos fizeram ter simpatia pela família nas primeiras temporadas) tornaram-se pouco credíveis.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a série The Crown.
Redenção nos episódios finais?
A sexta temporada repete o mesmo erro: episódios dedicados a histórias soltas. Se num estamos nos Morangos com Açúcar com sotaque british a assistir ao nascer da história de amor entre William e Kate (e a ficar com péssima impressão da mãe, Carole Middleton, representada como uma espécie de alpinista social que mexeu todos os cordelinhos para atirar a filha para os braços do príncipe), no seguinte vemos a decadência da princesa Margarida, para no capítulo sete voltarmos à lamechice dos universitários.
William (Ed McVey) tem muito protagonismo durante a segunda parte da temporada, enquanto Harry (Luther Ford) é só um miúdo destabilizador, arrogante e sem grande propósito na vida. Camila (Olivia Williams) volta a ser a personagem mais subvalorizada nisto tudo e, no final de contas, a que sai mais bem vista: ponderada, paciente e inteligente.
Isabel II recupera o controlo da história e os dilemas internos consomem-na internamente. E é exatamente isso que faz Imelda Staunton finalmente brilhar e chegar aos calcanhares das antecessoras, sobretudo Claire Foy. Se é verdade ou não que se debateu com a questão de abdicar para dar o lugar a Carlos não sabemos, mas da forma como o tema é abordado aqui faz sentido. Há duas vozes que a guiam (e não são o anjo e o diabo). Uma Isabel II madura (e o regresso de Olivia Colman na forma daquilo a que os ofendidos podem chamar “fantasma Colman”) que a faz questionar se, aos 80 anos, não está mais do que no momento de se reformar. Não fez já o suficiente? E tudo aquilo de que abdicou? Ser mãe, ser mulher, ser livre? Não tem o direito de voltar apenas a ser Isabel? E uma Isabel II mais nova (Claire Foy), tão focada no dever que não concebe outro caminho que não seja ficar no trono até morrer.
Até ao fim, The Crown oferece cenários sumptuosos e elaborados (além de muito fiéis à realidade), a descoberta de grandes atores, contexto político e histórico. Se muita coisa não corresponde ao que realmente aconteceu atrás dos portões dos palácios e castelos? Claro que não, mas mesmo que a série por milagre tivesse tido acesso aos verdadeiros protagonistas, muita coisa teria sido romantizada para o ecrã. Isto não é um documentário.
A conclusão dura cerca de uma hora e acaba por conseguir alguma redenção para os desvios feitos pelo caminho. Isabel II é a figura central e vê-la a preparar o próprio funeral (que só aconteceria em 2022) faz-nos recuperar a empatia que sentimos em 2016. Por mais que estivesse rodeada de família, empregados, políticos ou súbditos, sempre foi uma mulher que teve de tomar decisões inimagináveis sozinha. Mesmo apontado-lhe diretamente o dedo em muitas ocasiões, The Crown acaba por ser uma homenagem ao seu legado e àquilo que foi além da coroa.