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Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Estónia, Cátia Bruno e João Porfírio
“Nos últimos dias, só há dois tópicos de conversa em Narva: a abertura do supermercado Lidl e a guerra na Ucrânia.” Quem o diz é Mikhail Komaško, jornalista da emissora pública estónia em russo (que inclui a ETV+ e a Raadio4), quando recebe o Observador nos estúdios onde trabalha em Narva, a terceira maior cidade russa da Estónia — e que fica a poucos metros de território russo.
É sábado, o segundo deste mês de março, e Mikhail está a preparar-se para gravar o mais recente episódio do Narodu Vazhno, o espaço televisivo de debate que apresenta semanalmente. O programa do dia será centrado no papel da cultura russa em Narva, uma cidade onde mais de 80% dos habitantes são etnicamente russos, apesar de serem cidadãos estónios. Por aqui, os sinais de trânsito têm indicações em estónio, mas não é essa a língua que se fala na maior parte das casas, cafés e locais de trabalho: o russo domina de tal forma que cerca de 20% dos habitantes nem sequer sabem estónio.
No Narodu Vazhno desta noite, Mikhail vai receber dois convidados: a diretora da Casa da Língua Estónia da cidade e um ativista local que organiza habitualmente as cerimónias do 9 de Maio, o dia em que se assinala a rendição da Alemanha Nazi e que é comemorado na Rússia como Dia da Vitória — “Um dia complicado na Estónia, porque para a maioria das pessoas não é o Dia da Vitória, é o primeiro dia da ocupação soviética”, explica Mikhail. O jornalista prevê que o debate será vivo, mas considera-o importante, mesmo que venham a surgir na conversa ideias mais próximas do argumentário do Kremlin trazidas por este ativista. “Ele é uma pessoa normal com um ponto de vista diferente”, diz, considerando que não deve ser ostracizado por isso. “É uma pessoa, não é um orc”, acrescenta, referindo-se à criatura repugnante criada por J. R. R. Tolkien.
A Ponte da Amizade e os 160 metros que separam a UE da Rússia
Contudo, o cenário à beira do rio Narva pode mesmo fazer lembrar um local da Terra Média do Senhor dos Anéis. De um lado, está o castelo Hermann, construção medieval rematada com a bandeira da Estónia. Do outro, imediatamente em frente, as ameias da fortaleza Ivangorod carregam a bandeira russa. A separá-las está uma fronteira estabelecida em cima da Ponte da Amizade — aqui, são pouco mais de 160 metros para chegar da União Europeia à Rússia.
Diana, de 16 anos, está com uma amiga sentada num banco de jardim com vista para o forte russo. Do outro lado da fronteira, a milhares de quilómetros, estão membros da sua família afastada. Os seus pais emigraram em jovens para a Estónia e conheceram-se na escola. “Nunca lhes perguntei porque é que saíram da Rússia”, confessa ao Observador a adolescente, com naturalidade, como se a questão não se colocasse. Para si, toda a situação em torno da sua identidade é simples: fala russo, mas é estónia. “Não apoio minimamente a Rússia”, afirma, sem rodeios. “Mas acho que a minha família russa é pró-Putin. Não me atrevo a perguntar-lhes, não falamos muito.” Prefere não dar o apelido, nem ser fotografada.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre a Estónia com Cátia Bruno.
Os efeitos da guerra na Ucrânia já têm efeitos diretos na sua vida: há poucos dias, recebeu uma refugiada ucraniana na turma, o que levou o professor de História a encetar um debate com os alunos sobre o atual conflito: “Ninguém disse ser a favor da Rússia. Os que falaram eram contra, como eu. Os outros ficaram calados.”
Sergey, que aproveitou o dia de sol para passear perto do castelo com a família, tem a mesma posição e considera que é esse o pensamento da maioria em Narva. “Os estónios são espertos”, resume este falante de russo, que não sente confusão com o facto de ter um passaporte escrito numa língua que não é a que fala habitualmente. “A guerra é uma merda, é o que é”, atira, “e não apenas para os ucranianos”. Ali, diz, também se sentirão os efeitos: “Os preços sobem e a qualidade de vida desce.”
Habitualmente, muitos habitantes de Narva atravessam a Ponte da Amizade para ir abastecer ao outro lado da fronteira, onde a gasolina e o gasóleo são mais baratos. Agora que os preços continuam a subir na Estónia, devido aos efeitos da guerra, a maioria já não faz essa travessia com tanta regularidade. A tensão com os guardas fronteiriços russos é maior nas últimas semanas e, para muitos, já não vale a pena a chatice.
Não é o caso, porém, da empregada que faz a limpeza dos estúdios onde Mikhail Komaško trabalha. Continua a ir a Ivangorod habitualmente, não só abastecer o carro, mas também para comprar alguns bens alimentares tipicamente russos, de que gosta. É o caso das bolachas de chocolate que ali deixou e que o jornalista partilha com o Observador. “Para muita gente aqui, sobretudo de gerações mais velhas, isto é normal. São confortos que não largam”, explica. Estónios por um lado, russos por outro. Pertencentes a dois lugares e a lugar nenhum.
“Uma coisa é a mensagem do governo, outra é o que as pessoas sentem no terreno”
Veja-se o exemplo de Mikhail. Há três anos, participou num programa para jornalistas nos Estados Unidos. Quando lhe pediram para se apresentar, respondeu “Não sei quem sou”. Cidadão estónio, falante de russo, com apelido ucraniano e origens familiares no Cazaquistão e na Rússia, Mikhail não sabe definir-se ao certo. Os americanos responderam-lhe com simplicidade: “És um cidadão estónio que fala russo, da mesma maneira que há cidadãos americanos que falam espanhol.” Quando contou a história a alguns amigos etnicamente estónios, estes reagiram com algum desconforto, considerando a definição simplista. “E tenho a certeza que se a contasse a alguns familiares também haveria reações inflamadas: ‘Como assim? Tu falas russo, logo és russo, és da terra de Tolstói!’”
Oficialmente, o Estado estónio desvaloriza as questões identitárias em locais como Narva, onde a população é quase toda etnicamente russo. “Não fazemos distinções entre aqueles que falam estónio e aqueles que falam russo. Consideramos que a minoria falante de russo é uma parte da sociedade estónia que está plenamente integrada”, afirma ao Observador Tuuli Duneton, secretária de Estado da Defesa, numa entrevista concedida no ministério, na capital, Tallinn, a cerca de 200 quilómetros. “Não é do interesse do Estado estónio estabelecer diferenças. Temos de ser uma sociedade coesa”.
Duneton desvaloriza igualmente questões como o facto de uma minoria destes cidadãos (mais de 80 mil pessoas) não terem oficialmente nacionalidade. São os portadores dos chamados “passaportes cinzentos”, uma herança do fim da União Soviética, quando a Estónia não quis dar cidadania imediatamente aos russos étnicos que viviam no seu território e que impede estes cidadãos de votar (com exceção das autárquicas). Duneton sublinha, porém, que já não são emitidos tais passaportes e que muitos dos portadores mantêm-nos por opção própria. Em Narva, Mikhail confirma: “Tenho muitos amigos que preferem ficar assim, porque podem viajar livremente entre a Rússia e a União Europeia. Mas também conheço quem o tenha mantido como gesto político, por considerar uma ofensa ter de fazer o teste de linguagem estónia para obter o passaporte nacional quando se consideram cidadãos da Estónia”.
É um pequeno sinal de tensão, desvalorizado oficialmente, mas que pode, em abstrato, ser aproveitado pela propaganda russa — afinal, foi precisamente sob a justificação de defesa dos direitos dos cidadãos falantes de russo que a Rússia enviou “forças de paz” para Donbass, em fevereiro, dias antes da invasão da Ucrânia. Já em 2014, um relatório do Instituto de Defesa e Segurança estónio alertava para o facto de “muitos legisladores” não terem percebido que existem cidadãos etnicamente “não-estónios, com boas capacidades linguísticas em estónio, que se sentem alienados, excluídos e pelo menos alvo de desconfiança, se não mesmo de discriminação tácita”.
“Uma coisa é a mensagem do governo, outra coisa é o que as pessoas sentem no terreno”, resume o jornalista Mikhail. Tallinn está atenta, porém, ao facto de que tais sentimentos podem ser mesmo explorados pelos russos e tenta dar alguns passos para contra-atacar. Em 2018, a Presidente à altura, Kersti Kaljulaid, decidiu transferir temporariamente o seu gabinete para Narva, numa tentativa de se aproximar da população local. Três anos antes, o governo lançou o ETV+, o canal público em russo, para tentar servir de contrapeso à influência dos media russos, consumidos em massa em locais como Narva. Agora, já depois do início da guerra na Ucrânia, tomou o passo final de banir completamente alguns canais russos como o Russia 24 do país. “O nosso objetivo é o de dar-lhes a maior quantidade de informação objetiva possível, para que eles possam formular os seus próprios argumentos”, resume a secretária de Estado Duneton.
A Noite de Bronze e a guerra híbrida russa
São esforços que Mikhail, ele próprio uma peça na engrenagem dos media estónios em russo, considera limitados. “Mesmo proibindo os canais, as pessoas simplesmente instalam uma antena e apanham o sinal da Rússia aqui ao lado”, resume. “E, apesar de as nossas audiências estarem a aumentar, o nosso orçamento ainda é limitado: qualquer programa na televisão russa tem um orçamento maior do que o nosso canal ao todo”. Quando chegam a casa ao final do dia, os habitantes de Narva querem ligar a televisão e ver uma novela ou as notícias na sua língua. E é aí que há espaço para a influência do Kremlin: “No que toca a assuntos internacionais, a maior parte das pessoas não tem grandes ideias definidas. A narrativa que for ouvida primeiro, que preencher aquele espaço que até ali estava vazio, é a que vence.” Uma narrativa como a de que o governo ucraniano precisa de ser “desnazificado” ou a de que o que está a acontecer na Ucrânia não é uma invasão militar, mas sim uma “operação especial”.
Não seria a primeira vez que a propaganda russa tinha efeitos diretos na sociedade estónia. Foi assim por causa da chamada “Noite de Bronze”, noite de violentos protestos protagonizados pela comunidade etnicamente russa em abril de 2007, onde mais de 800 pessoas foram detidas, 150 ficaram feridas e uma pessoa morreu. Tudo por causa da mudança da estátua do Soldado de Bronze, uma herança soviética, de uma praça no centro de Tallinn para um cemitério militar nos arredores da capital.
Como pode algo assim provocar tanta tensão? Em parte, pela influência dos media russos. Veja-se um dos relatos do Canal Um russo nos dias anteriores: “O Soldado de Bronze foi cortado em vários pedaços e levado para uma localização desconhecida (…) Isto é o que resta do monumento que celebra os soldados soviéticos”. Na verdade, o destino final da estátua já estava definido, mas a dúvida foi criada. E a pólvora da desconfiança, combinada com o ressentimento já latente, explodiu em violência.
A estónia Kadri Liik, investigadora do Conselho Europeu para as Relações Internacionais, apontaria três anos depois as “falhas” do governo estónio: “Todo o processo de mudança da estátua foi tratado como sendo algo apenas técnico e burocrático; só houve cuidado em cumprir a legalidade, ninguém tentou chegar aos corações e mentes das pessoas mais afetadas por isto”. Sentimento rapidamente explorado por Moscovo, com o próprio Vladimir Putin a pronunciar-se sobre o assunto precisamente na parada do Dia da Vitória, ao afirmar que “aqueles que querem violar monumentos a heróis de guerra estão a insultar o seu próprio povo”.
Como se não fosse suficiente, aos protestos da Noite de Bronze seguiram-se uma série de ataques cibernéticos que afetaram as páginas online do Estado, de bancos e de jornais, durante cerca de três semanas. O governo estónio apontou o dedo à Rússia, mas nem todos os países europeus os apoiaram. “Alguns dos nossos aliados europeus na NATO disseram-nos ‘Vocês estão só a ser russófobos’”, confessou ao Politico Toomas Hendrik Ilves, o Presidente estónio à altura. Apesar disso, a NATO conduziu um inquérito interno aos ataques e um ano depois estabelecia no país o seu centro de ciberdefesa.
As tentativas de influência russas na política estónia não se ficam por aí, segundo as autoridades de Tallinn. Ao todo, desde 2009 já foram condenados 20 cidadãos russos na Estónia, acusados de crimes relacionados com espionagem e ligados a agências de informação russa. No relatório “Segurança Internacional e a Estónia 2022”, elaborado pelos serviços de informação do país, diz-se claramente que “os serviços russos vão continuar as suas operações de espionagem contra a Estónia e outros países ocidentais num futuro próximo”. “É um método de espionagem bem firmado e eficiente”, alertam os serviços de informação estónios. A secretária de Estado da Defesa, Tuuli Duneton, também não desvaloriza essas tentativas de interferência: “Não excluímos a possibilidade de um ataque híbrido massivo, seja na área de informação, seja de sabotagem com políticos, por exemplo”, diz ao Observador. “Estamos preparados para todos esses cenários”.
Cenário de invasão russa é real?
Os cenários incluem também uma invasão militar tradicional por parte da Rússia, com os líderes estónios a não excluírem essa hipótese. Tallinn sente que foi ignorada durante anos: lançou o alerta após a invasão da Geórgia, em 2008, e após a tomada da Crimeia, em 2014, mas a reação europeia contra a Rússia foi sempre de maior apaziguamento. 2022 é a exceção, com a guerra na Ucrânia a marcar um ponto de viragem que fez os europeus aplicarem as maiores sanções de sempre aos russos.
A secretária de Estado da Defesa estónia considera que a reação vem tarde. “No Ocidente sempre achámos ‘Ele não se vai atrever a atacar-nos’, nunca achámos que iria acontecer e muito menos nesta escala como aconteceu na Ucrânia”, diz Duneton. “Uma das lições a tirar daqui é que já não devemos arriscar. Se Putin decidir apostar na estratégia de reestabelecer a grande Rússia, pode atacar a NATO. Será um risco calculado, é claro, mas não podemos excluir nenhuma opção.”
É precisamente por isso que a Aliança Atlântica tem reforçado a sua presença no Báltico, com a Estónia a receber parte desse contingente, algo que acontece desde 2016. Nas últimas semanas, o número de militares da NATO na base de Tapa (sensivelmente a meio caminho entre Tallinn e Narva) aumentou de mil para 1.700 efetivos — um batalhão comandado pelo Reino Unido. E a Estónia coloca todas as fichas na NATO, a que aderiu em 2004, sendo um dos poucos Estados-membros que supera a contribuição de 2% do PIB para as Forças Armadas, numa tentativa de mostrar o seu compromisso com a defesa. Ao mesmo tempo, mantém instrumentos como a Liga de Defesa Estónia, uma milícia civil subordinada ao ministério da Defesa onde qualquer um se pode inscrever para ter treino militar. Ao todo, num país com pouco mais de um milhão de habitantes, há 60 mil pessoas que servem nas forças armadas ou que estão na reserva.
A localização dos países do Báltico (Estónia, Letónia e Lituânia) é particularmente sensível, como explica ao Observador um responsável dos Serviços de Informação Estónios que prefere não ser identificado: “O plano de restauração das ambições imperiais russas preocupa-nos, porque englobaria a Estónia”, diz. “E embora a NATO seja muito forte, nós somos uma parte vulnerável da NATO”, afirma a mesma fonte, referindo-se ao corredor Suwalki. Esta área, na fronteira entre a Polónia e a Lituânia, fica também perto do enclave russo altamente militarizado de Kaliningrado, o que levanta a possibilidade de a Rússia tentar isolar os Bálticos por essa zona, com recurso às tropas que tem em Kaliningrado e agora na Bielorrússia.
Os serviços de informação estónios têm sido dos que mais têm feito soar os alertas na Europa em relação à Rússia. A 15 de fevereiro, tornaram-se um dos poucos serviços europeus a juntar-se aos alertas deixados pelos espiões norte-americanos de que uma invasão da Ucrânia estaria iminente. “A nossa avaliação é de que as forças armadas russas estão prontas para embarcar numa operação militar de larga escala contra a Ucrânia na segunda metade de fevereiro”, escreveram os serviços no relatório anual. “Embora a guerra na Ucrânia não represente uma ameaça militar imediata à Estónia ou à NATO, a pressão política e militar da Rússia nos Estados bálticos pode aumentar a longo-prazo”, avisaram.
Socorremo-nos da mesma fonte dos serviços de informação estónios para tentar perceber qual a avaliação que fazem da evolução da guerra na Ucrânia. “Sem dúvida que a Rússia fez um cálculo errado relativamente à capacidade de resistência dos ucranianos”, diz este responsável. “O mito de que o exército russo é praticamente invencível foi destruído na Ucrânia, mas os russos ainda são capazes de causar muita destruição. A nossa avaliação, contudo, é de que isto não irá continuar como está durante muito mais tempo.”
Narva não é a próxima Crimeia. Mas é preciso “psicoterapia” com comunidade russa
Os estónios fazem questão de sublinhar que conhecem bem a Rússia, por considerarem que não há grande diferença do modus operandi do país atualmente face aos tempos soviéticos, altura em que os países Bálticos eram três das repúblicas da URSS. Um exemplo frequentemente referido é o da tentativa de golpe de Estado do Comintern em 1924, quando infiltrados soviéticos tentaram derrubar o à altura independente governo estónio. A Estónia acabaria por ser conquistada pela União Soviética na sequência da II Guerra Mundial e ali não é difícil encontrar os fantasmas do legado soviético um pouco por todo o lado: a mãe da primeira-ministra Kaja Kallas, por exemplo, foi deportada para a Sibéria.
É por isso Tuuli Duneton destaca a “experiência histórica” dos Bálticos nesta matéria. “Os países que tiveram esta experiência soviética estão mais bem colocados para perceber a forma de pensar russa e como o sistema deles funciona. É por isso que temos dito ao longo dos anos ‘tenham cuidado, a essência da Rússia não mudou e ela é uma ameaça à segurança europeia’. E tínhamos razão.”
Perante os acontecimentos do último mês, situações como a da cidade de Narva, onde a maioria da população é etnicamente russa, tem família do outro lado da fronteira e consome media russos, torna-se ainda mais relevante. Os serviços de informação estónios, porém, desvalorizam a ideia de que haja ali terreno fértil para uma nova Crimeia: “Isto pode parecer egoísta de dizer, mas a guerra na Ucrânia até fez com que se criasse maior afastamento dos simpatizantes pró-russos na Estónia em relação à Rússia”, afirma o agente que prefere não ser identificado. “As pessoas aqui até podem simpatizar com a ideia de a Crimeia ser russa, por exemplo, mas não querem uma guerra como aquela que a Ucrânia está a viver agora.”
Em Narva, a poucos quilómetros da Rússia, o jornalista Mikhail Komaško concorda. “A narrativa de que a Crimeia é russa já existe há muito tempo, lembro-me de nos anos 90 ouvir dizer que o Khruschev fez mal ao dar a península à Ucrânia. Mas a situação agora é diferente: ninguém acredita de facto que a Ucrânia é parte da Rússia e que foi Lenine que lhe deu a independência…”, diz, referindo-se ao discurso revisionista proferido por Vladimir Putin dias antes do início da invasão.
“Narva não é a próxima Crimeia, nem é a próxima Donbass. Tirando alguns oportunistas, ninguém aqui quer isso. A maior parte das pessoas só quer ir trabalhar, voltar para casa, fazer o jantar e consumir algum entretenimento — entretenimento russo, sim”, resume Mikhail. O que não significa, porém, que a situação seja simples. O jornalista, que passa os dias a ouvir a comunidade no seu programa de rádio e no de televisão, tem esperança de que o horror da guerra da Ucrânia possa servir para a Estónia aproveitar esta oportunidade e repensar a sua relação com os falantes de russo do país. “As pessoas do governo, em Tallinn, acham que isto está resolvido. Mas aqui não está.”
A Noite de Bronze, em 2007, foi a primeira oportunidade perdida, diz. A tomada da Crimeia, em 2014, foi a segunda. “Agora, é guerra a sério. Chegou a altura da psicoterapia. Chegou o momento de falar.” Em russo, é claro.