A mochila está pronta, o relógio está em contagem decrescente. Cláudia Pascoal prepara-se para parar, pela primeira vez em muitos meses, para descansar uma semana. Ou descansar q.b., porque antes de se deitar numa espreguiçadeira a apanhar sol, tem pela frente o Caminito del Rey, em Málaga, Espanha.
“Serão umas três horas a caminhar com 45 graus. Calculei mal, mas agora já está”, explica a cantora no meio de uma gargalhada característica que repete muitas vezes durante a nossa conversa.
Quando regressar das curtas férias, atua no MEO Kalorama, em Lisboa, a 31 de agosto e a tournée ainda tem datas até novembro.
Este ano tem-se dedicado a projetos que a desviam da sua zona de conforto e foi por isso que aceitou fazer a panda sonora original do novo “Podcast Plus” do Observador, “Um Rei na Boca do Inferno”, narrado por Soraia Chaves.
“O convite surgiu numa fase em que estava cheia de trabalho, mas tive de dizer que sim. Tenho vindo a descobrir que adoro fazer coisas fora do meu contexto pessoal. Peguei no projeto e foi muito intuitivo, porque tinha uma ideia concreta do que queria e dos sons que estava à procura.”
Aos 30 anos e com dois álbuns de originais no currículo, Cláudia Pascoal conseguiu um lugar próprio no universo da música — e não é só pelo seu cabelo néon e visual excêntrico, mas sobretudo porque consegue conjugar um estilo moderno com raízes tradicionais, dando destaque
Nasceu em Valbom, que pertence ao município de Gondomar, a 12 de outubro de 1993, e foi em São Pedro da Cova que passou parte da infância, antes de se mudar para Arco de Baúlhe, no distrito de Braga. As memórias mais longínquas que guarda são um tanque de água e sol insuportável em verões intermináveis. “As tardes eram assim passadas com os meus primos. O tanque servia para lavar roupa ou para nos encharcarmos todos.”
O chão era quase todo feito de terra, por isso Cláudia andava praticamente sempre descalça. “Lembro-me da dor. Tinha sempre os pés calejados, cheios de terra e com mordidelas, uma coisa um bocadinho grotesca. E lembro-me do alívio de ir para o tanque e de lavar lá os pés.”
Tem um irmão mais velho e uma irmã emprestada, como gosta de lhe chamar. Na família todos cantam, embora ninguém, além dela, faça da música profissão. “Ainda agora tivemos um jantar de e todos trouxeram as guitarras e os cavaquinhos.” E o que cantam? “Ou covers do Rui Veloso ou desgarradas.”
Na adolescência era “demasiado social”, admite. Isso deve-se ao facto de ter estudado a vida toda em São Pedro da Cova, “numa academia mais canónica, dedicada ao português e à matemática”. Depois, passou para uma escola secundária artística, a Soares dos Reis. “Aí, todo o meu mundo se abriu e tornei-me realmente eu, explorando várias vertentes. Fiz teatro, estava todos os dias na rua e no metro, com guitarra e pessoas aleatórias.”
Começou a tocar guitarra aos 15 e já lhe diziam que tinha de investir na música. Ela não acreditava mas, ainda assim, foi parar ao casting do Ídolos, programa de talentos da SIC, mas nessa altura ela própria ainda não se levava a sério.
“Toda a gente na minha família cantava muito bem, portanto achava que era algo vulgar até, apenas um entretenimento e não mais do que isso.”
Aprendeu cedo a dar valor ao dinheiro. Juntava-o com um objetivo: comprar uma nova guitarra, apanhar o comboio para ir tocar num sítio específico.
“O meu primeiro trabalho foi distribuir na rua folhetos para uma peça chamada We Will Rock You. Foi o meu primeiro ordenado e lembro-me de ficar muito orgulhosa por poder ir ao McDonald’s e pagar a refeição com o meu dinheiro.”
Estava no décimo ano mas considera que foi um marco importante. A partir daí, fez uma data de trabalhos mais ou menos aleatórios, como passagens de modelos ou vender tabaco em festivais de música.
“Sempre tive o que foi preciso, mas não venho de uma família cheia de bens. Sabia que, para conseguir chegar às ambições fora da caixa que tinha, tinha de ter a minha independência financeira.”
Viver da música nunca foi sequer um sonho real, estava ciente de que tinha de pensar numa profissão que lhe garantisse uma vida minimamente estável. Quando chegou a altura de escolher um curso superior, achou que queria ser professora de desenho ou pintura. Estudou na Escola Superior de Artes e Design (ESAD.CR) das Caldas da Rainha.
“Era um curso artístico, mas muito abrangente. O primeiro ano eram artes plásticas puras e duras, pintura e escultura, e no último ano só tive cinema. Acho que foi também por essa razão que percebi que a educação não era bem o que queria seguir.”
Nesse momento descobriu a vertente da comunicação, uma coisa que sempre lhe tinha sido inata por ser tão extrovertida. “Eu adorava o facto de deixar alguma coisa para outra pessoa, de deixar algo permanente enquanto professor, mas depois percebi que havia outras funções que podiam ter o mesmo resultado. O cinema, por exemplo, a ideia de uma obra imortalizada em vídeo, foi algo que me apaixonou.”
Seguiu então para um mestrado em Cinema na ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), no Porto, e a música foi também ganhando cada vez mais espaço. “Percebi que é tudo o que adoro, que é comunicar de uma forma muito direta e imediata. Tem uma reação imediata do público e é algo que se imortaliza em várias vertentes, tanto no vídeo, na dança, na música.”
A paixão pelo desenho e pela pintura não desapareceram totalmente, apesar de agora não ter tanto tempo para lhes dedicar. “Tenho olhado para a minha parede e pensado que tenho de começar a fazer mais coisas. Tinha o hábito de andar sempre com um caderno preto e umas aguarelas atrás e perdi-o um pouco devido à mudança de rotinas.”
O que pinta varia muito, dependendo do material com que está a trabalhar. “Quando pinto a óleo, gosto de tudo o que é rupestre. Andei uma boa temporada viciada em pintar tempestades. Quando uso aguarelas, abro o caderno e pinto o que estou a ver, seja um caixote do lixo, seja uma paisagem.”
Com a vida mais caótica, foi-se distanciando da pintura e, de certa forma, substituiu-a pelo cinema. Aliás, é na vertente visual que geralmente nascem as ideias para novas canções. “Penso primeiro no videoclip e depois é que faço a música para se encaixar nele.”
Foi pela enorme curiosidade no mundo audiovisual que continuou a inscrever-se em concursos de talentos musicais.
“Todas as participações tinham um objetivo específico: perceber como funcionava a televisão e tentar entrar naquele meio na forma de criação de vídeo, cameraman ou produção, porque era algo que me cativava bastante.”
Foi quando ainda estava na licenciatura que surgiu o CC Casting, para escolher o novo apresentador do programa da SIC Radical. Ter participado em talent shows ajudou-a a entrar no programa e nessa fase conheceu pessoas que ainda hoje fazem parte do seu grupo de amigos. A aventura durou um ano. “Quando fui trabalhar para a SIC, percebi que tinha a curiosidade de criar algo que ainda não foi feito, portanto não posso dizer que não gostava de voltar à televisão, fazer algo completamente diferente, com pessoas especiais.”
Já estava no final do mestrado quando participou no The Voice e, a partir daí, entrou na via rápida para o Festival da Canção, álbuns e a carreira a solo.
O Festival da Canção teve duas vezes Cláudia Pascoal como participante. Da primeira vez, em 2018, tinha acabado de sair do The Voice, onde chegou às semifinais. Não tinha identidade artística, nem canções originais, muito menos temas em português. Contra as suas expetativas, venceu com O Jardim, tema de Isaura, e seguiu para representar Portugal na Eurovisão.
“Não estava de todo a contar. Ia fazer aquilo e depois voltar para o Porto, para a minha empresa de vídeo.”
Porém, no dia da final, começou a perceber que ganhar não seria assim tão descabido. “No Multiusos de Guimarães [onde aconteceu a final do concurso], cada vez que ensaiava, notava uma alteração no público e comecei a pensar: ‘Queres ver que vou ganhar isto?’”
Conquistou o primeiro lugar e, a partir daí, foi tudo muito rápido. A Universal Music ofereceu-lhe um contrato discográfico e mudou-se do Porto para Lisboa.
“Foi como recomeçar do zero aos 24 anos. Está tudo certo, mas foi avassalador. No Porto tinha alguma estabilidade financeira e, de repente, mudei-me para o sofá de uma amiga, porque nem casa tinha.”
Olhando para trás, teria feito muitas coisas diferentes. “Não consegui aproveitar nada. Teria tirado tempo para estar com a minha família e com os meus amigos para celebrar, porque a partir daí tive de me afastar deles durante meses e viver em hotéis. Foi algo muito solitário e não muito feliz, vou ser honesta.”
Tinha obrigações para cumprir, mas sentia-se perdida por não conhecer minimamente o meio. Pela primeira vez, a Eurovisão realizou-se em Portugal e Cláudia Pascoal tinha a tarefa de suceder a Salvador Sobral, o único vencedor português do concurso. O Jardim ficou em último lugar na classificação final, mas isso não deitou Cláudia Pascoal abaixo.
“Já me tinham dito que o país anfitrião nunca fica muito bem classificado e, na verdade, quando tudo acabou foi um grande alívio para mim. ‘Ok, já posso voltar a ser eu e tirar esta máscara de ser super imparável e confiante.”
Apanhou boleia dos pais, que tinham ido assistir à final na MEO Arena, em Lisboa, e foi finalmente para casa descansar. Depois de dormir mais horas seguidas do que alguma vez tinha conseguido, tinha pela frente o desafio de criar um álbum, algo que lhe deu enorme entusiasmo, mas também medo.
“Estava preparada para pintar quadros e fazer vídeos, não um álbum. Eu nunca estudei música na vida.”
Rapidamente surgiram nomes experientes para lhe darem a mão. Tiago Bettencourt foi um dos primeiros. “Ensinou-me tudo o que tinha de aprender: como fazer um álbum, como comunicar, o que quero dizer, o que é um single, etc.”
Era imatura e emotiva, recorda, mas a base era sempre a mesma: papel e caneta. Os cadernos ainda os guarda. Diz que teve um curso intensivo com grandes nomes da música, como Samuel Úria, Joana Espadinha ou Francisca Cortesão.
Tudo isso lhe permitiu que, na segunda ocasião em que participou no Festival da Canção, em 2023, tivesse uma confiança completamente diferente e um objetivo muito claro: mostrar a identidade de Cláudia Pascoal. Nasci Maria foi o tema escolhido.
“Sinto que a minha carreira musical começou no Festival da Canção e foi importante voltar ao sítio onde tudo começou, mas mostrar quem eu sou agora.”
Antes de chegar a este ponto, onde se sente confortável, ainda teve uma banda de jazz, os Morhua. “Ainda era mais esotérica nessa banda do que sou agora como Cláudia Pascoal”, assegura.
O objetivo principal era descobrirem-se individualmente e tocarem pelo País. Numa das ocasiões, foram atuar à ilha Terceira e ficaram sem malas e sem instrumentos.
“Estávamos todos contentes porque tínhamos ido no início da semana para curtir, antes de atuarmos no final da semana, e de repente ficamos retidos quatro dias no aeroporto sem nada, a tomar banho naquelas casas de banho. Foi a pior experiência que podíamos ter tido.”
Os Morhua tinham uma data de validade, todos sabiam. “O jazz não tem nada a ver de onde sou, eu venho do rancho.” Porém, nem tudo se perdeu. O guitarrista que hoje toca com Cláudia Pascoal é o mesmo dessa banda.
Em 2019, depois de ter tido o devido afastamento do frenesim do Festival da Canção, lançou o primeiro single, Ter e Não Ter. O álbum, !, ficou disponível um ano mais tarde. Porém, tudo aí ainda era novidade e caminhos a descobrir.
Só no final do segundo álbum, !! (de 2023), é que Cláudia Pascoal sente que se encontrou. “A partir do momento em que consegui produzir tudo em casa sozinha, mudou tudo.”
Apesar de ser muito expansiva e extrovertida, pelo menos quando atua, a verdade é que passa muito tempo sozinha e gosta. “Sou de ficar em casa a ver um filme ou a ler um livro, o silêncio é algo que prestígio imenso. É raro ouvir música e, quando oiço, é mesmo para ouvi-la, não gosto de ruído de fundo como distração.”
Independência financeira para viver sozinha só a conseguiu este ano, com 30 anos, uma conquista que há muito perseguia. “Até há bem pouco tempo eu fazia outras coisas, como edições ou videoclips para outras pessoas. Sempre tive de conciliar o meu projeto pessoal com outros projetos, o que me trazia grande felicidade mas estava a esgotar-me.”
A ansiedade de viver de recibos verdes é algo que aprendeu a gerir. “Habituei-me a organizar a minha contabilidade de forma a perceber o que preciso até ao final do ano e a viver de ordenado em ordenado de uma forma volátil.”
Até ao final de 2024 a agenda continua cheia: atua no Meo Kalorama no último dia de agosto, a tour acaba em novembro, e estará em cena a peça de teatro Popular com banda sonora assinada por ela. Pretende ainda lançar novos singles, incluindo colaborações.
Quando olha para a sua vida a longo prazo continua a ver-se como uma espécie de malabarista. “Acho que um pé na música vai ficar para sempre mas sinto que vou trabalhar em muitas outras áreas artísticas distintas.”
Até lá, vai aproveitando a fase de maior confiança na sua carreira e a adrenalina dos concertos, onde vê cada vez mais cartazes onde lhe chamam “Sailor Moon do Minho”.
“Acho que é a coisa mais amorosa que me podem dizer porque conjuga tudo o que amo, que é a imagem sem preconceitos, sem linhas canónicas, mas com um lado muito associado à tradição. É tudo o que sou.”