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"Queria humanizar o conflito. E também queria perturbar o leitor. Queria perturbar a sua ideia de 'certeza', e por isso queria afastá-lo dos factos e dos números", diz-nos o escritor

AFP via Getty Images

"Queria humanizar o conflito. E também queria perturbar o leitor. Queria perturbar a sua ideia de 'certeza', e por isso queria afastá-lo dos factos e dos números", diz-nos o escritor

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Colum McCann, o escritor que deu um mergulho na "verdade mais profunda" do conflito entre Israel e a Palestina

O irlandês Colum McCann entrou nos corações e mentes de duas "personagens maiores do que a vida" para mostrar o lado humano do conflito israelo-palestiniano. Falámos com escritor sediado nos EUA.

Em 2015, no âmbito de uma iniciativa da Narrative 4, uma associação sem fins lucrativos com sede em Nova Iorque, Comum McCann visitou Israel e a Palestina com um grupo de artistas. Foi durante essa viagem “curta” que o escritor irlandês residente nos Estados Unidos da América conheceu o israelita Rami Elhanan e o palestiniano Bassam Aramin, dois amigos improváveis, e ouviu pela primeira vez as suas histórias. McCann lembra-se como se tivesse acontecido ontem: o dia frio e húmido, o pequeno gabinete no cimo de um frágil vão de escadas, a emoção nas vozes de dois homens aparentemente normais e o impacto que a sua narrativa, sobre a morte das suas filhas devido ao conflito entre Israel e a Palestina, teve em si. “Fiquei profundamente emocionado e mudado para sempre”, admitiu, em entrevista, ao Observador.

Smadar Elhanan, filha de Rami Elhanan, tinha 13 anos quando, em 1997, três bombistas suicidas palestinianos fizeram detonar cintos de explosivos no meio da Ben Yehuda, uma movimentada rua em Jerusalém Ocidental. Dez anos depois, Abir Aramin, de dez anos, filha de Bassam Aramin, foi atingida à porta da sua escola em Amara, na Margem Ocidental, por uma bala de borracha disparada por um soldado israelita de 18 anos. Abir foi transportada para o hospital, mas a falta de condições levou a que fosse transferida para Jerusalém. A ambulância ficou para durante horas junto ao posto de controlo na fronteira, adiando os cuidados médicos de que Abir tão urgentemente necessitava. Morreu dois dias depois, no Hospital Hadassah.

[Rami Elhanan e Bassam Aramin a contarem como se uniram após as mortes das filhas:]

Desde 2007, quando Abir morreu, que Rami Elhanan e Bassam Aramin, que se tinham conhecido no grupo ativista Combatentes pela Paz, co-fundado pelo primeiro, viajam juntos pelo mundo falando sobre as suas experiências e apelando à paz e ao fim da ocupação na Palestina. Mais do que uma iniciativa com fins político, a repetição das suas histórias é uma forma de manterem a memória das suas filhas viva, que sobrevive agora também nas páginas de um livro que Colum McCann soube desde logo que tinha de escrever, mesmo sabendo que seria “arriscado e que levaria algum tempo”. “Mas as únicas coisas que vale a pena fazer são aquelas que apresentam dificuldades”, disse em resposta às perguntas enviadas por email pelo Observador.

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Apeirogon é o resultado desse risco assumido. O livro, que pode ser descrito como um romance mas que é sobretudo um trabalho de não-ficção por partir de factos reais, tem no seu centro as histórias de Rami e Aramin e das suas filhas, mas na sua estrutura desafiante e aparentemente desordenada há espaço para muitas outras coisas que, de uma maneira ou de outra, ajudam a compreender o conflito israelo-palestiniano. No seu conjunto, formam um retrato que se pretende humano do que se passa na região, chamando ao mesmo tempo a atenção para a dificuldade de conceitos como “verdade” ou “mentira”, sobretudo num contexto onde muitas vezes as notícias são contraditórias. “Os factos são coisas mercenárias. Podem ser manipulados e enviados para fazerem o trabalho que precisamos que façam”, afirmou o escritor, para o qual “a verdade mais profunda” é aquela que “existe no coração humano”.

“E o coração humano é um lugar desarrumado e em constante mudança. E uma vez que a verdade é desarrumada, às vezes temos de inventar novas fórmulas. Foi o que tentei fazer neste livro. Tinha de ser chamado romance, apesar de ser maioritariamente não-ficção. É assim porque queria viver nos corações e mentes dessas personagens maiores do que a vida, que são o Rami e o Bassam. Queria habitar os lugares para lá dos factos.”

Aiperogon esteve nomeado para o Booker Prize de 2020, mas não passou à shortlist de seis finalistas. Chega agora a Portugal pela Porto Editora

Como é que descobriu as histórias de Rami Elhanan e Bassam Aramin e porquê é que sentiu necessidade de as escrever?
Há quase seis anos visitei Israel e a Palestina com um grupo de uma associação sem fins lucrativos, a Narrative 4. Éramos um grupo grande, de artistas e ativistas, e foi uma viagem relâmpago, mas conseguimos visitar várias pessoas — escritores israelitas, músicos palestinianos, colonos, soldados, artistas e especialistas em segurança. Foi uma viagem incrível, com uma curadoria brilhante e com várias nuances. Na minha última noite, visitámos a cidade de Beit Jala, logo a seguir a Jerusalém. Era um dia frio, negro e húmido. Não tinha grandes expectativas. Entrámos num pequeno gabinete, no cimo de um frágil vão de escadas. Esses dois homens estavam ali sentados e apresentaram-se como Rami e Bassam. Homens normais num lugar normal. Ou assim me pareceu nos momentos iniciais. Começam a contar-me sobre as suas filhas, Smadar [filha de Rami] e Abir [filha de Bassam], ambas mortas devido ao conflito. Absorveram todo o oxigénio do ar. Pareceu-me que era a primeira vez que contavam a história. Claro que não era, tinham-na contado centenas de vezes antes, mas fiquei profundamente emocionado e mudado para sempre. E soube logo que queria escrever sobre eles. Sabia que era arriscado e que levaria algum tempo, mas as únicas coisas que vale a pena fazer são aquelas que apresentam dificuldades.

Antes dessa viagem a Israel e à Palestina, estava a par do que se passava na região? Era algo que o preocupava? Ou a descoberta das histórias desses dois homens mudou a sua perceção do conflito?
Tinha uma vaga noção do que se passava. Não sabia grande coisa sobre e o que sabia tinha dificuldade em entender. Mas sim, a descoberta dessas histórias mudou a minha perceção do que se passava. Acho que a história do Rami e do Bassam é verdadeiramente incrível. Definitivamente mudou a minha vida.

O conflito político não é uma realidade que lhe seja alheia. Nasceu em Dublin e viveu na Irlanda durante o período dos “Troubles”. Isso influenciou a forma como recebeu essas histórias e como elas o tocaram? 
Sim, nasci em Dublin, mas passei muitos dos verões da minha infância em Derry, na Irlanda do Norte, onde a minha avó nasceu. E por isso devo dizer que sim, houve uma ligação profunda [com as histórias do Rami e do Bassam]. Sabe, quando estava na Palestina, atravessei vários postos de controlo, mas atravessei vários durante a minha infância na Irlanda do Norte. Acho que passar muito tempo em Derry foi muito importante para mim. Além disso, o facto de ter seguido de perto o processo de paz na Irlanda, completado em 1998, ajudou-me a entender o que se passava no Médio Oriente. Quando lá estive, consegui reconhecer as várias formas de sofrimento. Isso tornou-se algo que devia honrar, que devia transmitir aos outros. E consegui também reconhecer a força da linguagem enquanto arma. E consegui reconhecer as mentiras e meias mentiras, mas também o desgosto. Não estou a dizer que as situações são iguais, não são, mas ter assistido a uma delas deu-me as ferramentas necessárias para conseguir compreender a outra.

“O facto de ter seguido de perto o processo de paz na Irlanda, completado em 1998, ajudou-me a entender o que se passava no Médio Oriente. Quando lá estive, consegui reconhecer as várias formas de sofrimento. Isso tornou-se algo que devia honrar, que devia transmitir aos outros.”
Colum McCann, autor de Apeirogon

Qual foi a reação de Rami e Bassam quando lhes disse que queria escrever as suas histórias?
Mostraram-se completamente abertos a isso. Disse-lhes que queria escrever um livro e eles imediatamente disseram que sim. Também lhes disse, “mas vocês sabem que sou um romancista, não sabem? Vou inventar certas coisas”. E eles disseram que sim outra vez. Apenas me pediram para ser verdadeiro em relação à sua história. Ficaram contentes, porque queriam que alguém desse corpo aos seus sentimentos. Queria que o leitor se sentisse como se estivesse a viver os acontecimentos. O Rami e o Bassam tornam-se dos meus melhores amigos. Tentei entrar dentro das suas cabeças e corações para revelar a verdadeira natureza da sua coragem.

Não tinha receio de escrever um livro de que eles não gostassem? Ou que não se sentissem representados pelo seu trabalho?
Para ser honesto, estava aterrorizado com a ideia de começar a escrevê-lo. Que outro conflito é mais visível do que este? Como pode um escritor chegar à verdadeira natureza de tudo isto e captar nem que seja uma porção do que se possa? Queria contar uma história que aqueles que não sabem nada sobre o conflito conseguissem compreender mas, ao mesmo tempo, queria escrever para as pessoas que compreendem perfeitamente as suas várias e intrincadas facetas. E devo dizer que estava confuso com as políticas de Israel e da Palestina. Queria um formato que simultaneamente abraçasse e abalasse alguma dessa confusão. Por isso, optei por um formato abrangente. Senti que tinha de ser musical. Comecei a sentir-me como um maestro. Ponto e contraponto. No final, ambos adoraram o romance. Foram muito gentis, apesar de ter sido extremamente difícil para eles o lerem.

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Uma dificuldade que refere em vários momentos do livro é a de tentar perceber o que é verdade e o que não é, porque as notícias são muitas vezes contraditórias. Como é que lidou com isso? 
Ao misturar ficção e não-ficção, tento chegar ao âmago do que é verdadeiro e do que não é. E, sejamos sincero, este é verdadeiramente o problema do nosso tempo. Toda esta ideia de “falsidade” e “fake news”. De verdade, pós-verdade. A relação entre ficção e “verdade” sempre foi complicada, mas é-o ainda mais hoje em dia. Onde é que devemos desenhar a linha de separação? Os factos são coisas mercenárias. Podem ser manipulados e enviados para fazerem o trabalho que precisamos que façam. A verdade mais profunda existe no coração humano. E o coração humano é um lugar desarrumado e em constante mudança. E uma vez que a verdade é desarrumada, às vezes temos de inventar novas fórmulas. Foi o que tentei fazer neste livro. Tinha de ser chamado romance, apesar de ser maioritariamente não-ficção. É assim porque queria viver nos corações e mentes dessas personagens maiores do que a vida, que são o Rami e o Bassam. Queria habitar os lugares para lá dos factos. Gosto do que os meus editores portugueses fizeram. Chamaram-lhe Viagens Infinitas. Também fizeram um ótimo trabalho com a capa.

Sinto uma afinidade especial com Portugal por uma série de razões. As pessoas fazem-me lembrar os irlandeses. E o meu cunhado, John Hawke, vive em Portugal com a sua mulher, Alexandra do Carmo, uma artista portuguesa maravilhosa, e a minha sobrinha Amélia. Às vezes sonho em comprar uma pequena casa na costa e em tentar escrever um romance aí.

"Os factos são coisas mercenárias. Podem ser manipulados e enviados para fazerem o trabalho que precisamos que façam. A verdade mais profunda existe no coração humano."
Colum McCann, autor de Apeirogon

Muitos irlandeses sentem essa ligação com Portugal e acho que muitos portugueses sentem o mesmo em relação à Irlanda. Porque é que acha que isso acontece?
Bem, acho que são ambos pequenos países com grandes corações. Temos vizinhos poderosos que às vezes nos tentam ofuscar. Somos originalmente culturas agrárias e sabemos a importância de contar histórias. Temos profundas ligações culturais e religiosas. Gostamos de beber e cantar. A única diferença é que vocês têm uma equipa de futebol muito melhor do que a nossa!

O livro tem, como disse, uma estrutura pouco convencional. Está dividido em 1.001 pequenos capítulos ou fragmentos, um número inspirado pelas Mil e Uma Noites. Quer explicar o porquê dessa inspiração?
Contar as suas histórias permite ao Rami e ao Bassam continuar a viver e também lhes permite manter as suas filhas vivas. Eles contam-nas uma e outra vez, todos os dias, às vezes cinco ou seis vezes por dia. É preciso uma disciplina incrível. E coragem e energia. Não encontrei logo essa estrutura. Sabia que queria uma estrutura fragmentada, mas só decidi dividi-la em 1.1001 cantos dois anos após ter iniciado o processo de escrita.

Muitos desses capítulos não são especificamente sobre Rami e Bassam ou sobre as suas famílias. As suas histórias estão, naturalmente, no centro do romance, mas vão sendo intercetadas por muitas outras sobre muitas outras coisas. Porquê?
Oh, essa é uma pergunta enorme. Queria tentar escrever um livro que rompesse com algumas das narrativas aceites em torno da Israel e da Palestina e também com a fórmula aceite de narrativa. Há muito que andava a pensar em escrever um romance que refletisse algumas das maneiras como a internet mudou a forma como pensamos, como sentimos e como respiramos. E queria homenagear esses homens incríveis, o Rami e o Bassam. Queria refletir a sua ideia de que é importante conhecermo-nos uns aos outros. Não temos de nos amar ou até de gostar uns dos outros, mas precisamos de nos conhecer. Caso contrário, iremos conhecer-nos quando tivermos seis palmos de terra em cima.

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Fala muito sobre pássaros. O que é que eles representam nesse contexto?
Um escritor nunca deve explicar demasiado e, de qualquer das formas, acho que o leitor é sempre mais inteligente do que o escritor. Mas posso dizer o seguinte: espero que o leitor se relacione com os pássaros que voam para todo o lado. Que o leitor, na verdade, se transforme num desses pássaros. O que quero dizer é que espero que se envolva na história. Todos migramos e somos todos cúmplices, quer estejamos em Dublin, Lisboa, Nova Iorque ou Jerusalém. E os pássaros também são bonitos. E tão misteriosos.

Algumas das descrições são muito explícitas. Descreve, por exemplo, os efeitos de uma bomba no corpo humano. Foi uma forma que encontrou de humanizar o conflito?
Absolutamente, sim. Queria humanizar o conflito. E também queria perturbar o leitor. Queria perturbar a sua ideia de “certeza”, e por isso queria afastá-lo dos factos e dos números. Como já disse, os factos são coisas mercenárias.

Um dos seus objetivos parece ter sido mostrar como o conflito afeta o dia a dia das pessoas que vivem na região. Concorda?
Sim, e não apenas das pessoas que estão no centro do conflito, mas também daquelas que estão longe e que são afetadas por ele.

"Queria tentar escrever um livro que rompesse com algumas das narrativas aceites em torno da Israel e da Palestina e também com a fórmula aceite de narrativa. Há muito que andava a pensar em escrever um romance que refletisse algumas das maneiras como a internet mudou a forma como pensamos, como sentimos e como respiramos."
Colum McCann, autor de Apeirogon

Os seus romances anteriores também são inspirados em pessoas reais e em histórias reais. Sente necessidade de ter sempre uma base fatual?
É o meu modus operandi atual, mas também acredito na ficção pura. Mas trato as minhas personagens ficcionais da mesma forma que trato as não-ficcionais. Merecem todas o mesmo respeito.

Apeirogon chega a Portugal num momento particularmente complicado, marcado por um escalar das tensões e da violência na região. Como é que olha para a situação atual?
É devastador, mas espero que possamos ter uma oportunidade de falar mais abertamente sobre isso. Há um verso dos Mu’allaqat [um conjunto de sete poemas árabes] que pergunta: “Há alguma esperança de que esta desolação nos traga algum consolo?”. Não acho que possamos ter algum consolo agora, mas talvez amanhã. Temos de arriscar e ter esperança.

O seu romance pode ajudar os leitores a compreenderem melhor o que se passa entre Israel e a Palestina?
Espero sinceramente que sim. Mas isso não está dependente de mim, está dependente do leitor. O leitor é quem controla agora. Apresentei-lhe a paisagem. É ele que tem de caminhar em direção a ela.

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