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Muitos não sabiam sequer o que ia acontecer. Vários soldados ucranianos há meses a combater no Donbass receberam em meados de agosto uma nova missão, transmitida no maior segredo: no dia seguinte, partiriam em direção à fronteira, para uma ofensiva ultrassecreta em território russo.
É pelo menos isso que garantem todos os militares que falaram com media ocidentais. “Os soldados rezavam a Oração do Senhor e mexiam nas contas dos rosários à medida que avançavam”, relatou o Economist a partir do terreno. “Para Ivan, 45 anos, um veterano da 103.ª brigada da Ucrânia, lutar dentro da Rússia era só mais um dia de trabalho. ‘As granadas e os morteiros são iguais onde quer que se esteja’. Os novos recrutas estavam quase paralisados pelo medo.”
A grande maioria, porém, comentava o entusiasmo que a missão lhes provocava. “Pela primeira vez em muito tempo há movimento”, dizia um deles à revista britânica. “Senti-me como um tigre.” Serhii, de outra unidade, contou poucos dias depois ao The Times como sair das trincheiras do Donbass lhe parecia uma visão quase de sonho: “Comparado com aquilo, isto são umas férias”, dizia o soldados de 30 anos. “Quando atravessámos [a fronteira até Kursk, na Rússia], tinha um sorriso digno de anúncio de pasta de dentes. Sentia euforia e alívio.”
A ofensiva de Kiev por território russo adentro foi tão inesperada que galvanizou muitos ucranianos. E não é para menos: ao fim de duas semanas, é já a maior invasão de um país estrangeiro à Rússia desde a II Guerra Mundial, com ucranianos a controlarem uma enorme mancha de território (pelo menos por enquanto).
Desta vez, não são unidades semi-secretas de russos pró-ucranianos a atuar, como a Legião Rússia Livre e o Corpo de Voluntários Russos: são mesmo soldados do exército ucraniano, a cumprir uma missão planeada pelo Comandante-General das Forças Armadas, Oleksandr Syrskyi — segundo a Economist, foi ele o principal responsável pelo desenho da operação.
“Syrsky não é bom nos jogos políticos. Aquilo em que ele é bom é na guerra”, comentou com a revista uma fonte próxima do homem que está no cargo há apenas cinco meses. De acordo com a publicação, tudo foi mantido no maior segredo: Syrsky era o único a comunicar diretamente com o Presidente Volodymyr Zelensky sobre o tema, as informações foram recolhidas pelos serviços secretos militares e não pelos civis e foi decidido que os norte-americanos não deveriam ser previamente informados, por receio de que Washington tentasse travar a ofensiva.
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Esta narrativa foi confirmada pelo próprio Presidente ucraniano, mas apenas dias depois de os soldados ucranianos já estarem em território russo e terem conquistado as primeiras povoações. Kiev demorou a reconhecer que tinha invadido território russo e, explicou Zelensky, fê-lo em segredo, sem informar os aliados. “Eles diriam que era irrealista”, justificou. Depois de ter provado que era possível, Kiev assumiu que o ocidente não se iria opor a uma ocupação de território russo.
Segredo total ou “notificação” de última hora? Ninguém sabe ao certo o nível de informação prévia dos aliados de Kiev
Moscovo plantou a semente de que poderia não ser exatamente assim. O conselheiro e amigo de longa data de Vladimir Putin, Nikolai Patrushev, afirmou no final da primeira semana da ofensiva que esta tinha sido “planeada com o envolvimento da NATO e dos serviços secretos ocidentais”. “Os EUA dizem uma coisa e fazem outra, consistentemente. Sem a sua participação e apoio direto, Kiev não teria ousado entrar em território russo.”
Poucos dias depois, o mesmo era publicado como notícia oficial no Izvestia, um dos jornais russos mais próximos do Kremlin, com fontes dos serviços de informações russos a garantirem taxativamente que a ofensiva terá contado com “a participação das secretas de EUA, Reino Unido e Polónia”.
Washington garantia que não. De tal forma que a primeira reação até pareceu ser de alguma confusão e descoordenação. “Vamos abordar o exército ucraniano para perceber melhor quais são os seus objetivos”, limitou-se a dizer a porta-voz da Casa Branca Karine Jean-Pierre. Nos dias seguintes, os governos coordenaram-se, com o Presidente Joe Biden a garantir que o contacto com Kiev estava a ser mantido “a cada quatro ou cinco horas ao longo dos últimos seis a oito dias”. E Biden foi mais longe, dando aparente respaldo às ações dos ucranianos: a ofensiva, decretou, “está a criar um dilema para Putin”.
Tal como na Rússia, não demorou a que outra versão aparecesse rapidamente nos jornais, com a Bloomberg a citar um responsável “ocidental” que garantia não haver qualquer coordenação prévia e que Kiev não partilhou detalhes sobre a ofensiva com os norte-americanos até esta estar “totalmente em movimento”.
Mas será exatamente assim? É possível a Ucrânia, que depende do armamento e respaldo do Ocidente (em particular dos EUA) ter avançado com uma operação desta dimensão sem ter sequer discutido o assunto previamente com os seus aliados? Os especialistas ouvidos pelo Observador dividem-se.
Shelby Magid, especialista na região da Eurásia do Atlantic Council, crê absolutamente que sim. “Os ucranianos entenderam que numa guerra tem haver um nível de segurança operacional. Uma guerra não pode ser combatida sem segredos”, resumiu. “Mesmo havendo coordenação próxima e mesmo as relações sendo um fator numa guerra, um país e um exército continuam a ter direito aos seus segredos, especialmente quando são críticos para a sua segurança nacional.”
Mas alguns pequenos sinais que podem passar mais despercebidos a um primeiro olhar surgiram para mostrar que é improvável que tenha havido uma total separação. A 14 de agosto, o chefe do gabinete de Zelensky, Mykhailo Podolyak, disse uma frase enigmática ao jornal britânico The Independent: “Há certas coisas que têm de ser levadas a cabo com um elemento de surpresa e isso tem de acontecer a nível local. Mas houve discussões entre os parceiros, só que não foram num nível público.”
Quatro dias depois, o ministro da Defesa da Estónia, Hanno Pevkur, tornava mais palpável o que poderia querer isto dizer: “Os ucranianos informaram os seus principais aliados, particularmente os Estados Unidos, mas fizeram-no mesmo à última hora, para impedir que houvesse qualquer fuga de informação.”
Ou seja: parece ter havido algum nível de comunicação, mas, de facto, a decisão não terá sido planeada com os Estados Unidos previamente e estes terão sido informados com muito pouca antecedência. O que não significa, é claro, que, desde então, a coordenação não se tenha intensificado, à medida que a ofensiva militar ucraniana parecia ser bem sucedida.
Alexander Graef, especialista em Estudos de Segurança e Controlo de Armamento na Universidade de Hamburgo, aponta ao Observador um pormenor importante que exemplifica isso. Reconhecendo que tudo aponta para uma ofensiva que terá sido “preparada de forma bastante secreta”, desde então notou um sinal de coordenação: “A Ucrânia estará a usar os sistemas [de lançamento de foguetes norte-americanos] HIMARS para atingir pontes e docas russas”, afirma, apontando para os vídeos divulgados nas redes sociais e declarações de militares ucranianos nessa matéria.
HIMARS. O “amigo de confiança” americano que está a ajudar a Ucrânia a virar a guerra
“No passado, Kiev recebeu coordenadas de alvos vindas dos Estados Unidos para os ataques com os HIMARS. Apesar de não ser claro se foi esse o caso desta vez, se o foi, então é claro que a administração norte-americana está a ser informada”, nota o especialista alemão.
Nos últimos dois anos depois da invasão russa de território ucraniano, a coordenação entre Kiev e Washington parece ter sido quase total, mas nem sempre pacífica. Várias fugas de informação levaram jornais como o Washington Post a noticiar em 2023 que há muito que Zelensky e a sua equipa sugeria aos norte-americanos fazer ataques diretos a território russo e “ocupar cidades russas não especificadas na fronteira”, com o objetivo de “dar a Kiev vantagem em futuras conversações com Moscovo”. Em fevereiro desse mesmo ano, o governo ucraniano terá decidido adiar planos que tinha desenhado para fazer ataques a Moscovo, que foram travados “a pedido de Washington”.
Desta vez, perante uma situação de impasse a arrastar-se no Donbass, com a Ucrânia a perder atenção mediática e dúvidas sobre a continuação do apoio ocidental a Kiev no futuro — em particular com o resultado das eleições norte-americanas de novembro ao virar da esquina —, Zelensky e a sua equipa militar podem ter decidido optar por outra estratégia. Foi exatamente isso que um membro da equipa do Presidente garantiu à revista Tablet: “A lição aqui é que devemos comportar-nos como os americanos se comportam. Devemos fazer o que eles fazem, não o que eles nos dizem para fazer.”
Por tudo isto, outros analistas consultados pelo Observador concordam que tudo aponta para uma operação secreta que só terá sido revelada aos EUA tão em cima do acontecimento que já não seria possível travá-la. “É possível que tenha havido algumas indicações ou avisos de última hora, mas a minha impressão geral é que não houve qualquer briefing prévio detalhado e nenhum interesse da Ucrânia em procurar apoio ou aprovação”, nota Matthew Savill, especialista militar do think tank britânico Royal United Services Institute (RUSI).
O antigo militar norte-americano Steve Horrell, atualmente analista convidado do Centro Europeu de Análise Política, não podia concordar mais, destacando os relatos de que os próprios oficiais ucranianos só terão sabido da operação três dias antes e os soldados rasos apenas na véspera. “Por isso, é muito razoável que os EUA e outros parceiros não tenham sido avisados com antecedência, nem lhes tenha sido permitida autorização”, diz ao Observador. “Notificá-los para que possam estar preparados para perguntas da imprensa, por exemplo, mas só mesmo no último minuto é bastante razoável. E, claramente, funcionou.”
O risco nuclear tem assustado os EUA. Mas, para alguns, a ofensiva de Kursk desmascarou o bluff de Putin
Mas por que razão têm os Estados Unidos mantido tanta resistência até agora em apoiar ataques diretos da Ucrânia a território russo — e, ainda mais, à ideia de uma ofensiva?
Há duas principais razões. A primeira é a de que, ao utilizarem armamento norte-americano para o fazer, Moscovo possa considerar que há envolvimento direto dos EUA neste conflito e retaliar, levando a uma escalada ainda maior da guerra. A segunda é uma preocupação de monta: o facto de a Rússia ser uma potência nuclear, tendo ameaçado várias vezes no passado que pode recorrer ao seu arsenal.
O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, diz que esta ofensiva veio provar que não há razões para ter receio, já que o avanço das tropas russas não teve resposta de peso do Kremlin. “O conceito ingénuo e ilusório das chamadas ‘linhas vermelhas’ em relação à Rússia, que tanto dominaram a avaliação da guerra por parte de alguns parceiros, desfez-se nestes dias”, declarou o chefe de Estado ucraniano. No fundo, para Zelensky, a ofensiva de Kursk desmascarou o bluff de Vladimir Putin.
Alguns especialistas, como Shelby Magid, concordam: “Os últimos desenvolvimentos em Kursk mostram que, uma vez mais, as linhas vermelhas de Putin vão continuar a mexer-se da forma que lhe for mais conveniente, usando mais a ameaça da escalada nuclear do que agindo em relação a ela”, afirma. “O risco existe sempre, já que Putin e o seu regime no Kremlin desrespeitam completamente o Direito Internacional, mas ele não está numa posição em que consiga por em prática as suas ameaças nucleares.”
Steve Horrell vai ainda mais longe. “A administração norte-americana tem tido demasiado medo de uma escalada russa e acabámos por nos dissuadir a nós próprios”, sentencia. Os riscos, diz, existem sempre, mas os mecanismos da NATO em caso de ataque aos norte-americanos “são um verdadeiro fator de dissuasão” para a Rússia e o uso de armas nucleares em território ucraniano também teria uma resposta firme ocidental, acredita. “Os EUA têm de se comprometer com a vitória da Ucrânia e nos termos da Ucrânia. Não [numa lógica de] ‘demore isto o que demorar’. O compromisso com a vitória da Ucrânia é identificar o que ela precisa e dar-lhe isso.”
Nem todos os analistas, contudo, são tão otimistas. Alexander Graef diz que a ofensiva de Kursk não eliminou os riscos, já que “a doutrina nuclear russa permite a possibilidade do uso de armas nucleares como resposta a ataques convencionais ‘se a existência do Estado russo estiver ameaçada’”. O medo de uma escalada por parte de Washington, diz, “é compreensível”. O especialista militar britânico Matthew Savill também reforça que os riscos continuam a existir, mas reconhece que muitas das ameaças russas não se têm concretizado, o que tem levado os norte-americanos a evoluir na sua posição — inicialmente contra o uso de armamento dos EUA até na Crimeia, Washington já admite que pode ser utilizado em direção a território russo se for “em resposta a ataques” vindos de determinada região.
“Contudo, não devemos ser blasé em relação a uma possível escalada russa, já que eles podem provocar uma resposta noutro local e de forma encoberta”, sentencia.
O futuro apoio ocidental pode depender de como corre Kursk. A jogada de Kiev é um sucesso mediático — mas traz riscos
A ofensiva sobre Kursk, porém, já teve o condão de mudar a perceção pública do rumo da guerra e, possivelmente, reforçar o apoio dos EUA a Kiev — autorizando, por exemplo, não apenas o uso de HIMARS, mas de armamento de ainda maior alcance como os ATACMS e os Storm Shadow britânicos.
Congressistas republicanos até já elogiaram publicamente a ofensiva de Kursk, como o senador Lindsey Graham, próximo de Donald Trump, que descreveu a ofensiva como “ousada, brilhante e linda”. De visita a Kiev no início da semana, Graham explicou que o apoio americano (de qualquer futura administração) pode estar dependente de uma questão de perceção. “Eu disse a Zelensky ‘Você precisa de algumas vitórias’”. De um ponto de vista psicológico é importante para o povo americano ver vitórias, porque adoramos apoiar vencedores.”
Já Mike Turner, republicano do Ohio e presidente do Comité de Informações da Câmara dos Representantes, defendeu que deve ser discutido o apoio a Kiev com novo armamento, já que isso pode ajudar “a alterar a dinâmica no terreno”.
Steven Horrell crê que a ofensiva de Kursk pode ajudar a alterar o rumo da guerra, nomeadamente a galvanizar ucranianos e aliados ocidentais. “Não quero ser tão otimista quanto aos efeitos nos círculos de decisão de Moscovo ou na opinião pública russa, mas isto não é certamente bom para o estado de espírito de Putin”, declara. “Não acho que esta ofensiva tenha sido uma jogada assim tão arriscada, mas não é uma única jogada que põe fim a uma guerra. É um de vários sucessos que podem levar, espero eu, à vitória da Ucrânia.”
Já Alexander Graef, no entanto, considera que o apoio americano ou uma estratégia de relações públicas não foram os principais motores desta ofensiva. “O principal objetivo militar [da Ucrânia] é provavelmente forçar a Rússia a ir buscar as forças que estão no Donbass” para defender Kursk. “Ao mesmo tempo, a ofensiva de Kursk pode expor as vulnerabilidades da região [russa] na fronteira”, diz, contribuindo para promover “incentivos a negociações para um cessar-fogo”.
Mas os riscos da grande ofensiva de Kursk, que ainda decorre e ninguém sabe como terminará, também existem. Tal como os russos retiraram tropas do Donbass para reforçar a zona da fronteira, os ucranianos também desfalcaram a sua defesa nessa zona. E há uma diferença entre conquistar território e conseguir manter domínio sobre ele — irá o exército ucraniano conseguir continuar a ter um pé dentro da Rússia ao longo dos próximos tempos? E até quando?
“Pode demorar semanas ou até meses até percebermos quão bem sucedido foi isto”, alerta Matthew Savill. “Porque a questão é que preço vão os ucranianos pagar para atingir este objetivo. Eles não podem arriscar perder equipamento moderno e militares com experiência.”
É precisamente essa incerteza sobre o rumo que a ofensiva pode tomar que pode explicar o segredo que aparentemente envolveu esta operação e o facto de não ter sido discutida com os aliados — que poderiam apontar reservas, fragilidades e desaconselhá-la por completo. “Ser vago é a melhor forma de alguém não se deixar encurralar se as coisas não se desenvolverem como planeado”, reconheceu ao Financial Times Mykola Bielieskov, conselheiro do exército ucraniano.
A ofensiva apresentada como um facto consumado e o seu aparente sucesso inicial, nota Savill, “suprimiu as críticas dos aliados internacionais em público”. “Se o custo mais tarde se tornar demasiado elevado, isso pode levar a algum debate. Não me parece, contudo, que seria sensato que o fizessem em público.” O segredo, pelos vistos, continua a ser essencial em qualquer guerra.