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Ainda que há muito fosse prevista uma pandemia com as características da Covid-19, foram precisos quase cem anos para o mundo voltar a sentir o poder de um microrganismo altamente contagioso e com impacto direto na saúde de quem o contrai. As consequências estão à vista de todos e algumas estão bem longe de ser aferidas e quantificadas, porque a análise de um fenómeno destes exige tempo e distanciamento. É exatamente esta ressalva que nos faz José Poças, internista e infeciologista no Centro Hospitalar de Setúbal, logo no início da nossa entrevista telefónica. Segundo o médico, que coordenou a comissão de crise para enfrentar a Covid-19 naquela instituição, “vivemos um tempo de incertezas que levam a indecisões e isso é tudo menos aquilo que as pessoas querem”. “É preciso que se tenha o distanciamento, não só temporal mas também afetivo, para se perceber que isto, sendo uma pandemia, não tem nada de novo, mas as pessoas não estavam preparadas nem nunca tinham vivido algo idêntico”. É precisamente este confronto com o desconhecido que gera tantas dúvidas e questões, até porque se sabe que vão continuar a existir crises destas – só ninguém sabe quando nem que intensidade irão assumir.
Mas apesar das hesitações próprias do momento e da proximidade em relação à pandemia que ainda decorre – no dia em que escrevemos mais de 14 milhões de casos foram diagnosticados no mundo e mais de 612 mil vidas se perderam devido ao SARS-CoV-2, 1702 das quais em Portugal – algumas aprendizagens podem ser já retidas como forma de preparar o que aí vem. Maria de Belém Roseira, antiga ministra da Saúde, não tem dúvidas de que é necessário um plano estratégico para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que passe por motivar os seus profissionais, articular eficazmente os setores da saúde, da segurança social e da educação e, agora, aproveitar o “balão de oxigénio” constituído pelos apoios europeus para “fazer acontecer aquilo que verdadeiramente conta para as transformações necessárias no país”.
Doentes não-Covid: tratá-los e não esquecê-los
Cancelamento ou adiamento de consultas, tratamentos e cirurgias não urgentes foi uma das muitas medidas tomadas de imediato quando o isolamento foi decretado no nosso país. Apesar de as teleconsultas terem sido um recurso adotado nalgumas instituições, nem todos os utentes beneficiaram delas, até porque o contacto físico seria imprescindível em muitos casos. Some-se a isso o medo que muitas pessoas desenvolveram em relação a um possível contágio numa unidade de saúde e percebe-se a dimensão do problema. Ou melhor, não se percebe ainda, porque está por apurar o real impacto que possa ter havido no atraso de diagnósticos ou suspensão de tratamentos em quem sofre de doenças oncológicas, cardiovasculares ou diabetes, entre outras. Para já, a Entidade Reguladora da Saúde reconhece que “relativamente ao período homólogo em 2019, em março de 2020 verificou-se uma queda de 16% no número de consultas médicas hospitalares realizadas presencialmente no SNS”.
O cenário é, de facto, preocupante de norte a sul do país, com José Poças a sublinhar que “os doentes desapareceram até dos serviços de urgência, verificando-se depois, passadas umas semanas, uma elevada quantidade de enfartes agudos do miocárdio a chegarem ao hospital”, porque “as pessoas ficaram em casa”.
Segundo o especialista, “antecipam-se cenários complicadíssimos”, relacionados sobretudo com a necessidade de “tratar a grande maioria dos doentes, os quais não têm Covid-19, sendo que a maior parte dos que têm a infeção não estão gravemente doentes”. “Temos de saber contextualizar e tratar as coisas que são emergentes, como esta pandemia, mas não perdendo a mão em relação aos outros doentes”, salienta, admitindo que “não é fácil, mas tem de haver esta preocupação”.
Igual destaque é feito por Maria de Belém Roseira, segundo a qual, “por um lado, vimos que o SNS conseguiu acudir e tratar do impacto da pandemia com grande afinco e competência, agora também vemos que o fez a custo de outras tarefas como o seguimento de doentes crónicos e o atendimento das doenças agudas”. Nesse sentido, reforça que “temos de ter um plano específico para a recuperação dessas disfunções que decorreram da grande concentração de esforços no ataque ao impacto da pandemia e aos seus efeitos”.
Mais de 50% de países adiaram rastreios oncológicos
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi estudar o fenómeno da interrupção da prestação de cuidados de saúde e concluiu, num relatório que incidiu sobre 155 países, que em cerca de metade foram adiados os rastreios oncológicos à população e em 63% foram afetados os serviços de reabilitação, ainda que esta área “seja determinante para uma recuperação saudável após infeção grave por Covid-19”, escreve a OMS.
No mesmo estudo, mais de metade (53%) dos sistemas de saúde inquiridos revelaram ter interrompido total ou parcialmente os serviços de tratamento da hipertensão arterial, 49% fizeram-no no que diz respeito ao tratamento da diabetes e complicações relacionadas, em 42% dos países houve interrupção nos serviços oncológicos e em 31% dos casos foram afetadas as emergências cardiovasculares.
Motivar os profissionais de saúde é preciso
Se recursos humanos do SNS andam há anos a trabalhar no limite da resiliência, agora, com a Covid-19, estão exaustos e com a própria saúde debilitada . É, pois, normal que as dúvidas surjam: como corresponder eficazmente aos doentes não-Covid ao mesmo tempo que se combate uma pandemia? E se uma segunda vaga acontecer, será que o empenho vai ser o mesmo? “Ainda temos muito para aprender sobre o impacto desta pandemia, mas esta pandemia não é a única coisa que o SNS tem de fazer e acompanhar”, acentua Maria de Belém Roseira, segundo a qual “este esforço vai ter de ser feito por profissionais envolvidos num plano estratégico que entendam, que compreendam e de que queiram ser parte”. Por isso mesmo, defende que “é crucial que as pessoas se sintam motivadas”. “Os profissionais de saúde têm de ser reconhecidos no seu mérito e louvados não apenas por palavras”, afirma, considerando que “temos de ter uma política para as profissões que seja muito clara e objetiva, que assente na criação de condições de trabalho, de motivação dos profissionais e da sua avaliação em função do mérito”. “Nós temos profissionais de saúde que são dos melhores do mundo e por isso é que eles são tão requisitados; isso é o nosso ouro, uma riqueza que temos e que devemos aproveitar”, considera, lembrando que a sua permanência em Portugal é benéfica, “até porque fomos nós que investimos na sua formação”.
A antiga ministra lembra ainda que “o trabalho em saúde é completamente diferente do trabalho noutros setores, porque implica, além de risco – no caso concreto da pandemia, um risco para a própria vida – muita abnegação e um investimento afetivo”. “As pessoas estão internadas imenso tempo nos cuidados hospitalares e não podem receber visitas, a única relação humana que têm é com os profissionais de saúde e isto implica um grande investimento por parte destes no suplantar desse vazio afetivo que rodeia as pessoas que estão tanto tempo internadas em situação de insegurança”, especifica.
Vírus pouco letal, mas com potencial de catástrofe
José Poças chama a atenção para o facto de o vírus SARS-CoV-2 ter “uma mortalidade relativamente pequena”, já que “não é muito patogénico”. Então, porque é que é tão temível ao ponto de conseguir praticamente encerrar o mundo durante várias semanas? Desde logo porque, segundo o infeciologista, “apanhou o grosso da humanidade desprevenida”, e depois porque “não há uma memória imunológica do contacto com este vírus, o qual é de transmissão muito fácil”. Com estas condições, “havendo milhões de infetados, basta que uma pequena percentagem fique muito doente para levar ao colapso dos serviços de saúde”, resume. Mas o cenário poderia ser dantesco se a letalidade do novo coronavírus se aproximasse, por exemplo, da registada com a síndrome respiratória do Médio Oriente (infeção provocada pelo coronavírus MERS-CoV), que, de acordo com José Poças, ronda os 30%. Embora estejamos científica e tecnologicamente muito evoluídos, o médico realça que “temos uma capacidade que continua a ser limitadíssima, do ponto de vista da sociedade e das estruturas de saúde, para responder a uma coisa que seja avassaladora”.
Por outro lado, Maria de Belém Roseira destaca outra dimensão do problema, ignorada por enquanto: “É que ainda não sabemos o verdadeiro impacto da Covid-19 quando as pessoas recuperam, ainda não sabemos com que sequelas ficam.” A verdade é que, à medida que o conhecimento sobre a infeção por SARS-CoV-2 aumenta, vão-se revelando outras questões com impacto na saúde das populações e consequente pressão nos sistemas de saúde. Por exemplo, sabe-se que a Covid-19 não afeta apenas os pulmões, mas também o coração e os rins, além de que começa a haver evidência de que possa abrir as portas a outras complicações de saúde.
A Covid-19 pode estar na origem de novos casos de diabetes?
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Já se sabia que a diabetes é um fator de risco importante para que a Covid-19 se complique, mas o que parece ser também cada vez mais evidente é que esta infeção pode ser responsável por novos casos de diabetes, ao danificar as células produtoras de insulina. As eventuais correlações nesta área parecem ser tão fortes que levaram mesmo um grupo de investigadores internacionais a criar o projeto CoviDIAB, um registo global de doentes com diabetes e Covid-19 destinado a compreender a extensão e as características dos casos de início recente de diabetes relacionados com o SARS-CoV-2, bem como para investigar a sua origem, desenvolvimento, tratamento e resultados.
Mais do que vacinar é necessário diagnosticar rapidamente
Será que vai haver uma segunda vaga de Covid-19? José Poças diz que ninguém conhece a resposta a esta pergunta, até porque tal “depende da precocidade com que venha a haver uma possível vacina e também da monitorização mais ou menos apertada que for sendo feita a partir dos novos casos”.
Todavia, mais importante que a vacina, considera não só a existência de um tratamento eficaz, mas também de um teste de diagnóstico rápido, sobretudo “se houver circulação significativa do vírus na época da gripe”, como forma de ser possível diferenciar rapidamente as duas situações. “Tivemos sorte, porque a pandemia emergiu no fim da época da gripe, não houve cruzamento da doença praticamente”, lembra o médico que no hospital onde trabalha diz ter tido “mais trabalho a lidar com os suspeitos da doença” do que com os doentes propriamente ditos. “Os suspeitos foram umas dezenas e ocuparam três enfermarias, não sabíamos se estavam infetados ou não e alguns deles até eram muito graves e alguns foram para cuidados intensivos e morreram sem ter Covid-19”, recorda, concluindo que “o número de doentes não reflete a dimensão do problema, a qual vai muito além dos doentes”.
Quanto à imunidade de grupo, sublinha que tal só se atingirá com a vacinação, caso contrário, “seria preciso ter grande parte da população infetada e, se tal acontecesse de repente, seria cataclísmico para as pessoas e para os serviços de saúde, mesmo que fosse grave apenas numa pequena percentagem de casos”.
Mas são muitas as dúvidas que subsistem sobre a rapidez com que se conseguirá uma vacina e sobre a sua própria eficácia. De acordo com o infeciologista, “os vírus RNA como este caracterizam-se por ter elevada mutagenicidade, por isso é que não temos uma vacina para o vírus da hepatite C ou para o HIV”, esclarece. Por outro lado, “se a vacina for produzida através de engenharia genética, permitirá a produção de milhões de vacinas em pouco tempo”, mas a situação será bem diferente se o processo de fabrico for mais “complexo ou moroso, como no caso da vacina da gripe ou da febre amarela”.
Os fundos da UE e a saúde
Mas mesmo que não haja uma segunda vaga de pandemia, a recessão económica é já uma realidade, com implicações diretas no desemprego e, claro, na saúde das populações. Alinhando com outros especialistas, também José Poças diz que “às tantas, as pessoas já estão a sofrer muito mais por todas as implicações da pandemia do que propriamente pela pandemia em si”. Ainda assim, admite que o isolamento levado a cabo “foi positivo”, em especial “para permitir que houvesse resposta no primeiro embate”. Mas acredita que “nunca mais vai haver um confinamento como houve”, desde logo devido às “implicações económicas desta doença”.
Sobre a crise que se vive, Maria de Belém Roseira diz que aquilo que mais a preocupa “é a disfunção social que se gera”, porque “quem trabalha em saúde sabe que o mais importante fator preditivo de saúde e, neste caso, da doença, é a pobreza”. A tornar tudo mais complexo, frisa que “Portugal já está muito marcado por um risco elevado de pobreza e as crises acentuam-no”.
Com o anúncio do acordo relativo aos fundos da União Europeia (UE) para apoiar na retoma — a decorrer precisamente no dia da nossa entrevista —, assim como também no mesmo dia em que foi apresentado o plano de recuperação nacional, a antiga responsável ministerial não hesitou em referir-se ao momento. “Este pacote europeu é uma nova grande oportunidade para Portugal, não podemos perdê-la”, afirmou, avançando que “o mais importante é olhar para a maneira como podemos aproveitar estes recursos extra no sentido de fazer acontecer a mudança que é necessária para melhorarmos os indicadores de saúde, o que só pode acontecer em articulação com outras áreas de governação”. É que, nas suas palavras, “a pandemia também veio mostrar como funciona mal a articulação entre vários setores, sobretudo entre a saúde e a segurança social”. A estas duas áreas acrescenta ainda a educação, “porque é aquela que nos vai permitir desenvolver as nossas capacidades no sentido de sermos cidadãos ativos, livres e capazes de fazermos as nossas próprias escolhas”.
Voltando ao plano estratégico para o país, sublinha que “aquilo que nos está a fazer mais falta é um investimento que suplante a crónica insuficiência de recursos no SNS, mas um financiamento que tem de ser aplicado de forma a que produza a mudança de que precisamos, não é só deitar recursos para cima do SNS para que fique tudo na mesma”.
Proteger o ambiente para proteger a saúde
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Sabe-se que as questões relacionadas com a proteção do clima e da biodiversidade devem ser consideradas para impedir o ciclo que pode desencadear pandemias como a de Covid-19. O aviso voltou a ser recentemente destacado pelos autores de um relatório promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), segundo os quais as doenças infeciosas de larga escala podem tornar-se cada vez mais frequentes devido às alterações climáticas, aumento da urbanização, destruição de habitats, perda de biodiversidade e até devido à expansão da agricultura intensiva.