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Arquivo DN

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Como o 25 de Abril transformou a sede da PIDE num destino de turismo revolucionário

No seu novo livro, António Araújo discute o que aconteceu à PIDE. Um dos capítulos, que o Observador pré-publica, fala sobre a transformação da sede da polícia política num destino turístico.

O que aconteceu na sede da PIDE no 25 de Abril? Qual foi o destino dos agentes da polícia política do Estado Novo depois da Revolução? É a estas e outras questões que o jurista e historiador António Araújo, autor de Matar o Salazar. O Atentado de Julho de 1937 (2017), responde no seu novo livro, «Morte à PIDE!» — A queda da polícia política do Estado Novo, que chega às livrarias portuguesas no próximo dia 21 de junho, com a chancela da Tinta-da-China.

De modo a antecipar o lançamento, o Observador pré-publica, quase integralmente, o terceiro capítulo, “A sede da DGS nas rotas do turismo revolucionário”, que conta como o nº 20 da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, se transformou num destino turístico de passagem obrigatória.

A capa de Morte à PIDE!, de António Araújo (Tinta-da-China)

A sede da DGS nas rotas do turismo revolucionário

Após ser tomada pelos militares, a sede da DGS tornara-se um ponto de visita obrigatório. E de fácil acesso. Como refere José Rebelo num ensaio dedicado ao modo como a imprensa estrangeira captou o 25 de Abril, “Lisboa torna-se o grande fórum da imprensa internacional. Na Cova da Moura conhecem-se, enfim, ao vivo, os heróis do MFA. No sinistro edifício da Rua António Maria Cardoso imaginam-se os interrogatórios policiais. Espreita-se para os gabinetes onde, antes, se alojavam os chefes dos inquisidores. Soltam-se gargalhadas perante um retrato de Salazar pendurado de lado. Aceitam-se, religiosamente, carteiras de fósforos ilustradas com a efígie da PIDE que jovens oficiais da Marinha acabam de descobrir numa gaveta”. A historiadora espanhola María José Tíscar considera que a ocupação da sede da DGS foi “uma das operações de maior repercussão na imprensa estrangeira e na vida interna de Portugal”. E, nas palavras do jornalista e historiador alemão Arno Münster, “nos dias seguintes, a sede da PIDE torna-se o lugar de sinistra peregrinação de jornalistas vindos do mundo inteiro, mas também de uma grande parte da população de Lisboa”.

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O acesso dos jornalistas ao nº 20 da Rua António Maria Cardoso é franqueado no dia 27. Nesse dia, a convite e na companhia de José Cardoso Pires, o diretor do Instituto Alemão de Lisboa, Curt Meyer-Clason, entra na sede da DGS:

As instalações foram abandonadas à pressa depois de uma troca de tiros sem derramamento de sangue. Vemos os gabinetes, as casamatas, as celas individuais, os instrumentos de tortura, os corredores e pátios com grades, de onde não há saída, os ficheiros com centenas de milhares de processos, os álbuns fotográficos com centenas de suspeitos políticos, num dos quais reconheço o escritor Urbano Tavares Rodrigues, que há anos foi assaltado em plena rua por agentes da PIDE […]. Vemos as salas compridas, com os aparelhos de escuta instalados sob orientação da Gestapo, e entretanto já destruídos, que registavam em fita magnética as chamadas telefónicas suspeitas. Com uma excitação contida, os visitantes vão passando pelas salas em desordem, folheiam as pilhas de processos espalhados por todo o lado, Sttau Monteiro dá, por acaso — e que acaso incrível! —, com o seu próprio processo do ano de 1964, cada um guarda uma recordação, qualquer coisa: um auto de acusação, uma folha com prescrições para o tratamento dos presos nos interrogatórios, ou em fuga, um cartão de visita impresso em gravura de cobre — Sílvio da Costa Mortágua, Inspector Adjunto da Direcção Geral de Segurança (DGS). “O grande filho da puta”, rosna o crítico de televisão Mário Castrim ao meu lado. […] José Cardoso Pires está agora ao meu lado: por trás da sua expressão contida sente-se a raiva e a impaciência. No dia 25 de Abril tinha exactamente a mesma idade do fascismo português, 48 anos. Entramos no grande salão, sala de trabalho do chefe da polícia secreta, com uma secretária revestida a couro vermelho, estilo barroco tardio, por baixo dela, invisível, o sistema de comando dos aparelhos de escuta, disfarçados por um biombo de seda, à esquerda a estatueta de um cisne, à direita uma caixa de violino de uma oficina do século xviii, ao lado do telefone uma fotografia de família, idílio ecléctico da belle époque. Na parede, pendurado por um dos cantos desfeitos, o retrato de Salazar; no chão, pisado, o do seu sucessor de pouca dura.

De tarde foram a Caxias, ver a prisão.

O Diário de Lisboa noticiava, na primeira página, que cerca de duzentos agentes da PIDE/DGS tinham conseguido escapar por um subterrâneo na António Maria Cardoso e que o famoso inspector Tinoco, "conhecido pelas sevícias que praticava aos presos", se escapulira disfarçado de doente.

Em Abril de 1974, o mundo livre penetra naquilo que um autor francês designa por “símbolo odioso da ditadura”. Servindo de cicerone aos jornalistas nacionais e estrangeiros, um jovem aspirante informa “podem mexer em tudo” e, diligente, esclarece os visitantes: “Isto é como um museu, leva muito tempo a ver, temos de dividir o tempo por todos.” Os jornalistas espanhóis Luis Carandell e Eduardo Barrenechea lembram-se da subida tumultuosa pela escadaria principal, junto da qual existia um conjunto de lápides negras que assinalavam os agentes da PIDE/ DGS mortos em serviço. Por cima das lápides de mármore, uma frase de Salazar sobre o dever e a honra de lutar. O interior pareceu-lhes tortuoso e algo claustrofóbico. Os gabinetes dos directores, pesados. Não viram salas de tortura, mas compartimentos vazios. Deixadas ao acaso, numerosas caixas cheias de munições e armas, nomeadamente metralhadoras de fabrico checo, russo, chinês, e pistolas alemãs e espanholas. Ao lado, caixas de vinho e, sobretudo, de uísque. E uma biblioteca composta em especial por revistas pornográficas. Nos sofás, soldados descansavam de 48 horas de vigília. Os oficiais que conduziam os jornalistas não se importaram que estes levassem consigo pequenas recordações: uma fotografia de um morto pela PIDE, cápsulas de balas, ordens de captura, documentos administrativos. Um instrumento de tortura foi de imediato apreendido e entregue aos populares e, na narrativa de O Século, “o objecto andou em ‘procissão’ pelo Camões, Chiado e ruas adjacentes”. Ao jornalista de O Século é mesmo concedido o privilégio de sobraçar a pasta de Silva Pais, no interior da qual se encontravam “denúncias, um pedido, fotografias suas em congressos internacionais, um exemplar do jornal Portugal Livre, vindo de França”. O comandante Costa Correia confidencia-lhe, decerto com mágoa: “Olhe, tudo isto está mal organizado. Esta instituição reflectia as outras do País.” Tendo entrado na sede da PIDE/DGS na companhia de um colega canadiano, o repórter de O Século fica surpreendido pela “sujidade tremenda” em seu redor, com latas de conservas abertas, garrafas de cerveja pelo chão, “revistas pornográficas ou simplesmente eróticas”, documentos queimados relacionados com correspondência com a Interpol, os arquivos pejados de processos da “vida íntima” dos seus concidadãos. Um “tenebroso dédalo”, em suma, onde ainda não tinham sido descobertos os “tão falados subterrâneos” da pavorosa corporação. “Aos subterrâneos é que ainda não fui”, disse Malheiro Meseder, primeiro-tenente da Armada, ao repórter de A Capital, acrescentando, prudente: “Quem nos garante que os que fugiram por ali não protegeram a retirada com armadilhas?” Entrando no “casarão labiríntico” da António Maria Cardoso, o jornalista do vespertino lisbonense deixa-se invadir pelas metáforas, escrevendo que aquele era “o centro nevrálgico da teia, o corpo do polvo de poderosos tentáculos que cobria o nosso País”. Segundo ele, “todos os portugueses ali tinham a sua ficha”, mas havia no local “sinais evidentes de desarrumação recente”.

Por sua vez, os repórteres da Flama informaram que na sede da DGS se encontrariam uns trezentos a quatrocentos agentes (A Capital falou em duzentos) e que “lá dentro foi descoberto um autêntico arsenal, cerca de uma tonelada de material bélico, constituído por armas ultramodernas”, tendo o Diário Popular deparado igualmente com armamento “de concepção moderníssima, o mais moderno que há no mercado mundial, incluindo armas chinesas, russas, alemãs”. E livros pornográficos, claro: “parece que não havia gabinete que não tivesse, na última gaveta, um arsenal destas publicações proibidas”, entre as quais obras de Sade. Tranquilizando os leitores, o Diário Popular informava que “não foram, até agora, detectados catacumbas, túneis ou salas especiais de tortura, de estilo medieval”.

O forte de Caxias, em Oeiras. Durante o Estado Novo foi aqui estiveram mais presos políticos

Pedro Nunes/LUSA

Em contrapartida, o Diário de Lisboa noticiava, na primeira página, que cerca de duzentos agentes da PIDE/DGS tinham conseguido escapar por um subterrâneo na António Maria Cardoso e que o famoso inspector Tinoco, “conhecido pelas sevícias que praticava aos presos”, se escapulira disfarçado de doente. Os repórteres desse jornal depararam com um cenário hediondo e triste: “No chão, sobre as secretárias, sobre as cadeiras, sobre as camas, encontra-se um mundo de pequenas e grandes coisas, de objectos reles, de armas, de pontas de cigarros, de livros, de revistas pornográficas.” Em suma, “um arsenal que deu cabo de muita gente”, como disse um fuzileiro presente no local. Mais atento a pormenores, O Século enumera as marcas do armamento, tal como descritas pelo comandante Costa Xavier: Dryz, Thompson, Uzi, RPG-2 (bazuca de origem russa), metralhadoras ligeiras Sterling, Browning, carregadores russos Kalashnikov e granadas de mão de origem inominada.

Os jornalistas do Diário de Lisboa espantaram-se por ver por ali, tranquilamente, Leitão Bernardino, antigo guarda-costas de Salazar e Caetano. Perante a sua estupefacção, foi-lhes dito que Bernardino não era agente mas funcionário da polícia política e que o MFA necessitava dele “para a resolução de certos problemas”: “Há códigos que nós não conseguimos decifrar. Códigos e arquivos. Temos de recorrer a alguns funcionários para que nos auxiliem nessa tarefa.” Num armário, encontram luvas brancas e uma bata também branca, tendo bordadas as letras “Sr. Inspector Mortágua”. A bata serviria, segundo se disse, para “contactos indiscretos” com os presos políticos e as luvas para “massagens especiais”. Intrigados pelo facto de luvas e bata estarem imaculadas, logo foram esclarecidos: “Uma organização destas, como é óbvio, tem sempre lavadeiras…” O cicerone deu-lhes depois entrada no que chamou “o gabinete da corrupção”, que se destinava à “distracção dos agentes”. Viram aí collants e sutiãs, cosméticos, calcinhas de várias cores, perfumes, um dístico que afirmava “Make war with love”, calendários nas paredes com “corpos esbeltos e nus” e, enfim, “as mais sórdidas revistas pornográficas”. Num gabinete de um funcionário superior, a sua agenda diária era bem o resumo de uma existência ociosa e triste: “12 horas — almoço; 13 horas — ginja; 14 horas — entrada; 15 horas — meditação; 16 horas — mula; 17 horas — correio; 18 horas — pausa; 19 horas — crítica; 20 horas — reunião; 21 horas — incógnita: 22 horas — bar; 23 horas — WC (casa de banho)”

Outro visitante da Rua António Maria Cardoso, Jacinto Baptista, entraria meses mais tarde na sede da DGS, em Julho de 1974. Em lugar da confusão encontrada pelos colegas estrangeiros, deparou com um marinheiro a apanhar sol à varanda do primeiro andar.

O jornalista espanhol César de la Lama encontrou no interior do nº 20 da Rua António Maria Cardoso radiotransmissores, televisões, projectores de filmes, à mistura com obras de Marx, Engels, Lenine, o Livro Vermelho de Mao Zedong, exemplares de La Pensée ou Nouvelle Critique, mas também revistas pornográficas. Dois repórteres franceses entraram igualmente na sede da DGS, sem necessidade de apresentarem quaisquer credenciais. Ao invés de salas de tortura, encontram austeros locais de trabalho de burocratas. Numa sala, que continha ficheiros e arquivos, marinheiros procuravam os seus nomes no classificador. A desordem encontrada resultava, diziam os jornalistas franceses, das investidas dos populares. Nos gabinetes, fichas de polícia, cartas, papéis, as omnipresentes revistas pornográficas. Ao lado de um conjunto de garrafas de uísque, depararam com um objecto fálico de plástico. “Isto podia ser um museu da vergonha”, desabafou pudicamente um oficial da Marinha. No primeiro andar, o primeiro-tenente Antero instalara o seu gabinete de trabalho, analisando os diversos dossiês encontrados nos arquivos. “Praticamente todos os agentes da DGS estão identificados. Vamos publicar um comunicado na imprensa apelando à rendição dos agentes da polícia política. […] Se os que ainda se encontram em liberdade não se apresentarem nos quartéis, publicaremos as suas fotografias nos jornais e pediremos a ajuda da população. Os mais difíceis de apanhar são os informadores.” Afirmou-se ainda que no cofre tinham sido encontrados 13 mil contos, correspondentes ao próximo pagamento de ordenados; além disso, existiam duas contas na Caixa Geral de Depósitos à ordem da DGS, num valor global de sete mil contos, devendo lembrar-se que, para o ano de 1974, a DGS dispunha de um orçamento de cerca de 105 mil contos.

Outros jornalistas estrangeiros visitaram a sede da PIDE/ DGS, convertida em ponto de passagem obrigatório do “turismo revolucionário” que animou a capital do país após o 25 de Abril. O catalão Xavier Roig, correspondente da Tele/Express, chegaria a Lisboa no dia 26, numa carruagem do Lusitania Express pejada de jornalistas; ao atravessar a fronteira, praticamente à mesma hora em que os revolucionários entravam no nº 20 da Rua António Maria Cardoso, ainda eram os funcionários da DGS que carimbavam os passaportes. Roig assiste ao já referido episódio da destruição de um automóvel no Largo Trindade Coelho e ouve populares lamentarem-se por só ter morrido um “pide” no dia 25 de Abril. Naturalmente, também ele iria visitar a sede da DGS, guiado por Costa Correia. O edifício pareceu-lhe um labirinto de terror, que nem sequer os oficiais da Marinha que agora o ocupavam conheciam por inteiro. Os marinheiros acreditavam na existência de subterrâneos, mas ainda não tinham descoberto nenhum. Xavier Roig impressionou-se sobretudo com o caos que encontrou no interior da sede da PIDE/DGS: “Garrafas de cerveja em cima das mesas e no chão […], cascas de laranja por toda a parte, restos de comida e papéis inundam tudo.” Mais interessante é o que escreve sobre o estado de conservação do imóvel, que contrasta bem com as descrições que salientavam o luxo dos gabinetes e o vanguardismo tecnológico dos equipamentos:

O aspecto do interior do quartel-geral da PIDE basta, por si só, para explicar com precisão gráfica o drama português dos últimos anos. Os gastadíssimos soalhos de madeira, as portas mil vezes repintadas dão uma justa ideia da loucura de uns impressionantes esforços económicos em matéria de segurança que, apesar disso, não chegavam mais do que para comprar algum material electró- nico moderno para a escuta e a intercepção das comunicações […]. A sensação de aperto orçamental é muito real.

A PIDE foi criada em 1945, durante o regime ditatorial do Estado Novo, dirigido por António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros entre 1933 e 1968

A DGS, pelos vistos, passava dificuldades, e estava longe de ser uma organização que podia viver faustosamente à custa das dotações do Estado e dos “serviços” prestados às empresas privadas. Eis uma conclusão muito mais interessante do que o material pornográfico ou os exemplares de A Nossa Vida Sexual, de Egas Moniz, que Xavier Roig viu na António Maria Cardoso.

Outro visitante da Rua António Maria Cardoso, Jacinto Baptista, entraria meses mais tarde na sede da DGS, em Julho de 1974. Em lugar da confusão encontrada pelos colegas estrangeiros, deparou com um marinheiro a apanhar sol à varanda do primeiro andar. No interior do “sinistro casarão”, decididamente mais sombrio, começou pelas duas grandes salas do ficheiro central. Tirará uma conclusão imediata: ao contrário das ideias que povoavam o imaginário colectivo, a PIDE/DGS caracterizava-se por uma quase total ausência de sofisticação — dizia Jacinto Baptista que ela”processava a sua actividade, em termos desajustados, hoje, do processo tecnológico”. O atraso da PIDE/DGS confortou-o, mas pareceu-lhe confrangedor:

Eram frequentes os erros no preenchimento dos verbetes, cuja seriação, por outro lado, tinha muito de empírico, assim se explicando, por exemplo, que, por vezes, a polícia pren- desse outra pessoa. Do atraso tecnológico geral que emperra a máquina burocrática do País não estava excluída, por estranho que pareça, a polícia política, menos dotada em meios técnicos — releve-se o símile — do que algumas empresas particulares de bem menor dimensão. O computador ainda não chegara à Rua António Maria Cardoso…

Acabada a visita, à porta — pormenor que só Vicente Talón descreve —, um "pide" de meia-idade, munido de uma pistola de grande calibre, acabava de ser detido pelos fuzileiros. Atordoado e incrédulo, foi metido num Land Rover praticamente sem se aperceber do que se passava. Não saberia que dois dias antes houve uma revolução?

Descobria-se, afinal, que a PIDE/DGS, pelo menos nos anos 1970, não tinha os “mais modernos meios técnicos” de que falava uma das suas vítimas mortais, o pintor comunista José Dias Coelho. Não possuía “ficheiros completíssimos, instantaneamente consultáveis”, de acordo com o retrato do norte-americano Wilfred Burchett, nem tinha, como asseverava Dias Coelho, uma “rede de milhares de informadores pagos”. Também o irlandês Phil Mailer se dirigira à sede da DGS no dia 27 de Abril, para reclamar o seu passaporte. A sua pretensão era algo exagerada: “Queria que as tropas invadissem o edifício e mo fossem buscar.” O seu relato não é muito fidedigno, pois tudo sugere que Mailer não entrou sequer no edifício-sede e até confundiu o que lá havia com o que foi encontrado na Escola em Sete Rios. Ainda assim, vale a pena recordá-lo:

A sede da PIDE não tinha sido atacada de imediato e isto tinha-lhes permitido destruir certos ficheiros, em particular os que diziam respeito a agentes e informadores. Mais tarde, as instalações foram abertas à imprensa. Foram descobertas grandes quantidades de espingardas, granadas e outras armas ligeiras, bem como fichas sobre todos os militantes, reais ou suspeitos, em Portugal. Cartazes e posters da esquerda estavam exibidos numa sala especial. E também, em vitrines, panfletos e folhetos datando dos anos. A PIDE tem a melhor biblioteca revolucionária de Portugal: uma colecção completa de escritores marxistas e anarquistas. Na parede da biblioteca, em letras garrafais, um poema da autoria de Salazar, escrito quando ele tinha 18 anos. Contígua à sala de torturas (uma comprida sala vazia com luzes e um palco) fica uma pequena capela católica. Continha muitos tesouros de arte portuguesa, e era dominada por uma estátua da Virgem Maria. A PIDE já tinha fundado um museu. O que falta agora é pôr lá os PIDEs em exibição.

O romeno Mikhaël Harsgor apresenta igualmente uma descrição muito curiosa da entrada dos jornalistas estrangeiros na Rua António Maria Cardoso. Os soldados estavam extasiados com o luxo dos gabinetes da direcção, que tinham tapetes “do tamanho da Praça do Comércio”, nas palavras de um jovem fuzileiro. Ao subir a escadaria podia ler-se o nome dos mortos em combate da DGS — Silva, Lobo, Sousela — e dois sumptuosos quadros de Nossa Senhora das Dores e de São Vicente. Depararam com vastos salões forrados a madeiras exóticas, onde reinava a confusão: cinzeiros a transbordar, chávenas de café reviradas, tabuleiros com restos de sanduíches… Num pequeno museu, encontrava-se, entre outras preciosidades, a corda que Cunhal usara para se evadir de Peniche. Mas o que mais suscitou a curiosidade dos visitantes foi uma estranha colecção de casas de bonecas em miniatura, construídas com extremo rigor e com todos os detalhes. Um capitão da Polícia Militar satisfez a curiosidade dos jornalistas estrangeiros: eram maquetes de residências de oposicionistas ou de casas clandestinas, que os elementos da PIDE construíram para facilitar as suas actividades de vigilância e intrusão. As miniaturas eram construídas a partir de descrições feitas por agentes infiltrados, que se disfarçavam de electricistas, canalizadores ou outras profissões, para, sob cobertura, poderem penetrar nas casas dos oposicionistas e assim melhor conhecer os seus interiores.

Salgueiro Maia fala à multidão em Lisboa, a 25 de Abril de 1974

D.R.

Outro jornalista estrangeiro, o espanhol Vicente Talón, sobe no dia 27 a escadaria do nº 20 da Rua António Maria Cardoso. No “tétrico casarão”, como lhe chama, encontra o mesmo que os seus colegas: os arquivos, intactos, revistas pornográficas amontoadas, uma chaminé onde se queimaram à pressa documentos comprometedores, exemplares das revistas da corporação (a Flecha e a Continuidade), celas com ganchos no tecto para, segundo disseram aos repórteres, se pendurarem os presos durante os interrogatórios. Entrevistado no local pela RTP, um fuzileiro declarou-se impressionado com a abundância de comida e de material, com o conforto das instalações e com a profusão de revistas pornográficas. Mais interessantes são as afirmações do oficial que acompanhava a imprensa:

A PIDE não pode ser comparada a nenhuma outra polícia, à excepção do G.P.U. estalinista. Possuía inclusivamente poderes para deter as chefias militares e, ao falarem do terceiro andar, os agentes diziam que aí não chegava a lei. Foi a PIDE […] que, através do terror, subjugou, durante meio século, as ânsias de liberdade e de reforma dos portugueses. De facto, só a integravam uns dois mil e quinhentos homens, mas que eram apoiados por uma vastíssima rede de informadores, bem como pelas forças paramilitares: a Legião Portuguesa e a Brigada Naval. Também a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana colaboravam estreitamente com ela. Em Portugal, costumava dizer-se, nem as folhas se mexem sem que a PIDE o saiba. Tudo estava sujeito ao seu controlo, desde o correio às chamadas telefónicas. E todos agiam com absoluta impunidade, pois jamais lhe eram pedidas contas. A PIDE, por outro lado, tinha ramificações em toda a parte. Os seus colaboradores vigiavam as direcções dos sindicatos, governos civis e até altos membros do Governo.

Acabada a visita, à porta — pormenor que só Vicente Talón descreve —, um “pide” de meia-idade, munido de uma pistola de grande calibre, acabava de ser detido pelos fuzileiros. Atordoado e incrédulo, foi metido num Land Rover praticamente sem se aperceber do que se passava. Não saberia que dois dias antes houve uma revolução?

Na foto principal deste artigo: Militares do Movimento das Forças Armadas, MFA, acompanham um agente da Direcção-Geral de Segurança que abandona o edifício da PIDE-DGS, na rua António Maria Cardoso, a 25 de Abril de 1974 (Global Imagens)

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