Não foi a primeira empresa portuguesa a anunciar a renúncia à compra de produtos à Rússia — a Prio já o tinha feito — mas a decisão da Galp terá sido a que resultou no maior impacto em Portugal. Considerando que a Rússia tem como principais exportações o petróleo e os produtos energéticos e que a Galp é a única refinadora em Portugal, não surpreende que a dependência comercial da empresa portuguesa face àquele fornecedor seja a mais relevante.
Mas não é diretamente o petróleo nem sequer o gasóleo rodoviário, que durante anos Portugal importou (como outros países europeus), o que liga a Galp aos recursos russos. É um produto intermédio pouco conhecido fora da indústria petrolífera, o gasóleo de vácuo (ou VGO na sigla inglesa), que é essencial para a produção de gasóleo na refinaria de Sines. As importações a partir da Rússia aumentaram de forma significativa a partir de 2021, o ano em que a segunda refinaria da Galp, em Matosinhos, deixou de operar.
O que é o VGO
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O VGO, sigla inglesa para gasóleo de vácuo, é um produto intermédio fabricado a partir da destilação em vácuo do resíduo atmosférico produzido na refinaria. Este resíduo resulta de uma destilação atmosférica inicial do petróleo. A matéria que resulta da segunda destilação alimenta a unidade de hydrocracker que foi instalada na refinaria de Sines e que permitiu valorizar as matérias primas menos nobres e aumentar a produção de gasóleo.
O consumo disparou desde a década de 1990 quando os europeus começaram a preferir carros a gasóleo, atraídos pelo preço mais baixo deste combustível face à gasolina e pelos progressos do sistema de injeção dos motores diesel. A dieselização do parque automóvel só travou com o escândalo das emissões da Volkwswagen e apesar de hoje a venda destes automóveis estar em forte queda, o gasóleo ainda domina os carros em circulação e representa mais de dois terços de todo o consumo de combustíveis rodoviários em Portugal.
O maior investimento industrial da década para Portugal ser autosuficiente em gasóleo
Portugal, tal como outros países europeus, foi no passado recente um grande importador de gasóleo russo. Mas nos últimos dez anos, a Galp deixou em grande medida de importar gasóleo depois de ter feito um investimento de mais de mil milhões de euros na reconfiguração industrial do seu aparelho refinador. O presidente executivo da altura, Manuel Ferreira de Oliveira (entretanto falecido), dizia que era o maior investimento industrial feito em Portugal na última década (realizado entre 2010 e 2013) e cujo principal objetivo era tornar o país autosuficiente em diesel.
No entanto, a dependência de importações de gasóleo passou para a dependência de outro produto, o VGO, cujo principal fornecedor mundial, com 50% do mercado, é a Rússia.
O maior projeto foi a instalação de uma unidade de hydrocracker (hidrocraqueamento em português) em Sines, mas também houve investimentos importantes na refinaria de Matosinhos.
Num comunicado de 2013, a empresa indicava que tinha entrado em operação na refinaria a norte uma unidade de destilação de vácuo para processar o resíduo atmosférico produzido na refinaria do qual se extrai o resíduo do gasóleo de vácuo, matéria que por sua vez irá alimentar o hydrocracker de Sines. Neste comunicado a Galp realçava “uma integração profunda entre as duas grandes unidades industriais da empresa”, que criava o maior “complexo de refinação ibérico”.
Durante os anos que se seguiram o VGO produzido em Matosinhos era transportado por barco até Sines para ser utilizado no hydrocracker e produzir gasóleo. Mas essa produção, em conjunto com a de Sines, não era suficiente para alimentar a unidade de gasóleo.
Fonte oficial da Galp Energia confirma ao Observador que a refinaria de Leça da Palmeira (que fechou no início de 2021 por razões económicas) abastecia a unidade de Sines, mas acrescenta que a “produção de VGO em Matosinhos cobria apenas parcialmente as necessidades de Sines.” Ou seja, a Galp ainda precisava de importar este produto para garantir a produção de gasóleo.
Apesar de ter recebido investimentos de centenas de milhões de euros na última década, a refinaria de Matosinhos viria a ser encerrada no início do ano passado. A decisão terá sido antecipada pelos efeitos económicos da pandemia, mas os problemas de rentabilidade perseguiam esta unidade há muitos anos. Segundo números dados pelo presidente executivo da Galp, Andy Brown, terá gerado perdas de 800 milhões para a empresa nos últimos 15 anos de operação.
De acordo com uma fonte do setor petrolífero, os custos de produção e transporte do VGO em Matosinhos não eram racionais do ponto de vista de rentabilidade porque ficava mais barato à Galp comprar o produto a fornecedores internacionais, o que aliás já fazia.
Os dados enviados pelo Instituto Nacional de Estatística, a pedido do Observador, mostram que a Rússia sempre foi o maior fornecedor de VGO a Portugal. Mas a importância relativa das compras deste produto àquele país sobe em 2021, ano em que a refinaria de Matosinhos fechou. São mais do dobro das registadas em 2020 — mas este foi um ano já de paragem na produção da refinaria por causa da pandemia — e crescem 50% face às quantidades de 2019.
Já em 2019 se tinha verificado um aumento das importações deste produto para um nível superior ao que se viria a registar em 2021, com o maior fornecimento a chegar da Rússia, mas com compras relevantes com origem na Bélgica. As importações de VGO em 2019, ano em que Matosinhos ainda estava a operar, são até ligeiramente superiores às registadas no ano passado, o que eventualmente poderá ser explicado por 2021 ser um ano ainda muito afetado pela pandemia e pelo confinamento que reduziu a procura de combustíveis.
Efeitos negativos para a Galp podem resultar de paragem em Sines ou de preços mais caros
Em 2021, o VGO russo representava 60% das compras de Portugal. A Galp esclarece ao Observador que este produto é o único em que as compras à Rússia têm significado e será afetado pela decisão de suspender as compras de produtos petrolíferos com origem na Rússia. Sendo que o efeito não é imediato, a Galp ainda vai receber cargas que tenham já sido contratadas.
A empresa admite impacto financeiro e operacional desta decisão que a obrigou a “desenvolver planos para obter o VGO através de fornecedores alternativos, ou para operar a refinaria a um ritmo limitado, embora assegurando sempre o fornecimento de gasóleo ao mercado português”.
Ao Observador, fonte oficial da petrolífera indica que o impacto financeiro negativo resultará do efeito combinado de vários fatores, entre os quais a eventual paragem na unidade de Sines, por falta do produto intermédio, ou a substituição do VGO russo por outro mais caro e cuja diferença de custo não possa ser passada para o cliente final, uma vez que a Galp não pode fugir aos preços que as suas concorrentes praticam.
“O preço de venda final continuará a seguir as cotações do gasóleo no mercado internacional”. A empresa diz que dependerá da evolução dos mercados e sublinha que o facto de ter um perfil integrado poderá limitar os impactos da crise em determinados segmentos de negócio.
Apesar de, “numa situação de normalidade”, a refinaria de Sines ter capacidade de produção “mais do que suficiente para alimentar o consumo de gasóleo do país”, a Galp pode ter de recorrer à importação de diesel na sequência do boicote ao VGO russo. Sobre esse cenário, a mesma fonte assinala que “as importações são um recurso frequente de aprovisionamento e/ou otimização do sistema refinador”.
Segundo a Galp, os fornecedores alternativos de VGO estão sobretudo no Médio Oriente, mas nos dados de importações de 2021 apontam para outros países de origem nomeadamente Bélgica, Itália, Suécia, Espanha e França. Mas a empresa admitiu esta semana que os contratos a prazo de entrega do VGO em Sines não discriminam a origem do produto.
A identificação da origem do VGO, ou do petróleo refinado usado para o produzir, pode não ser assim tão simples. Há várias refinarias, por exemplo do Norte de África, que vendem este produto intermédio, mas cujo petróleo de origem pode ser made in Rússia. No entanto, os técnicos desta área conseguem identificar a partir de características do crude usado qual a sua origem geográfica provável.