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As primeiras impressões de Lewis Hamilton sobre a pista do Grande Prémio da Turquia dificilmente poderiam ser piores. “Uma m****”, atirou sobre um piso que descreveu como “gelo”. “É assustador em todo o lado. É quase como se houvesse partes molhadas. Com estes pneus, se estás com menos 10 ou 20 graus, eles não trabalham. Se tens 20 graus a mais, eles também não trabalham”, atirou nos treinos livres. No entanto, seria nesse cenário do circuito de Istambul que o britânico conseguiria fazer história este domingo, depois da qualificação “menos agradável da carreira” e de uma autêntica dança dos peões e das saídas largas à chuva numa corrida onde voltou a ser o mais forte, sagrando-se heptacampeão mundial aos 35 anos, igualando o recorde de Michael Schumacher num ano onde bateu outros registos do germânico como o de número de vitórias em Grandes Prémios. E se o piloto que nasceu e cresceu em Stevenage atingiu agora o topo, há sete aspetos que o colocam à margem de qualquer outro.
Não, Lewis Hamilton não tem necessariamente de ser o maior. E não, Lewis Hamilton pode não ser o melhor. Mas a história de Lewis Hamilton estava talhada para que não fosse nem o maior, nem o melhor. Em sete pontos, o que parecia provou não ser e em três décadas o piloto tornou-se um dos maiores ícones do desporto mundial.
O carro telecomandado, o programa da BBC e o bullying na escola
Não teve influências familiares, não beneficiou do melhor contexto financeiro para vingar, não nasceu com um estatuto social capaz de abrir por si só portas que muitas vezes só se abrem para alguns. No entanto, aquele barulho do motor a entrar pelos ouvidos foi um final mais forte do que tudo e todos para desafiar o impossível e fazer uma carreira com tanto de memorável como de inesperada: primeiro foi o carro telecomandado (que ainda lhe valeu três emblemas dourados no programa infantil da BBC, Blue Peter, que destaca crianças que são uma inspiração pelos seus talentos), depois os karts (em quinta mão, como prenda de Natal, a melhor ainda até hoje). Lewis Carl Hamilton, até pelo nome inspirado no antigo campeão olímpico de atletismo, parecia talhado para o desporto mas acabou por construir carreira se calhar onde nem o próprio sonhava com seis anos.
Nem tudo foi fácil. O pai, Anthony, acumulou quatro empregos para encontrar algum dinheiro extra que permitisse dar asas aos voos cada vez mais altos de Lewis, Lewis foi empregado de mesa e lavou carros já depois de ter pedido para ter aulas de karaté por sofrer bullying na escola. Em 2001, na passagem dos karts para o British Formula Renault Winter Series, já havia mais elementos além de Ron Dennis que percebiam que à sua frente estava alguém especial. “É um piloto com muita qualidade, muito forte e com apenas 16 anos. Tenho a certeza que se continuar assim vai chegar à Fórmula 1. É sempre especial ver um miúdo desta idade assim num circuito. Tem claramente a mentalidade certa para pilotar”, comentou então um tal de… Michael Schumacher. Pouco depois, o miúdo que cresceu em Stevenage, uma pequena localidade no norte de Londres, chegou lá. E ainda continua a destacar-se.
O primeiro negro a correr na Fórmula 1 após os testes de Ribbs
Há 34 anos, naquilo que foi descrito por todos como uma manobra de marketing, Bernie Ecclestone concordou que o americano Willy T. Ribbs (que entretanto viveu também na Europa) fizesse testes com o Brabham BT54 que era por norma utilizado pelo brasileiro Nelson Piquet. E isso acabou mesmo por acontecer em Portugal, no circuito do Estoril, após o piloto ter falhado a qualificação para as 500 Milhas de Indianápolis, com a supervisão de Herbie Blash e Charlie Whiting. Em 19 carros em pista durante os treinos, Ribbs conseguiu o 17.º tempo mas o sonho de fazer uma corrida na Fórmula 1 acabou por esfumar-se – sendo que a perseverança fez com que se tornasse cinco anos depois o primeiro piloto negro a garantir presença na maior prova da Indy. Ficou assim adiado algo que só aconteceria em 2007 e por um nome que na altura dos testes de Ribbs ainda era ainda bebé: Lewis Hamilton.
Hamilton. O capacete que o inspirou numa corrida e o legado que lhe marcou a vida inteira
Depois de brilhar na Fórmula Renault e na Fórmula 3, o britânico quebrou finalmente essa espécie de tabu que persistia na Fórmula 1, tornando-se o primeiro piloto negro a correr no Mundial então pela McLaren, acabando o primeiro ano no segundo lugar, após a desistência no Grande Prémio da China e do sétimo posto no Grande Prémio do Brasil que entregou por um ponto esse título a Kimi Räikkönen (batendo ainda assim vários recordes como rookie), e sagrando-se campeão logo na segunda temporada, com mais um ponto do que um outro Ferrari, Felipe Massa, bastando nesse caso uma quinta posição na última prova do ano, de novo em São Paulo. “O que este jovem está a fazer é fabuloso. A Fórmula 1 é um desporto mundo, uma plataforma enorme. Muitos atletas, sobretudo nos EUA, têm medo de perder dinheiro, de perder valor comercial. O Lewis colocou tudo em risco. É o que Muhammad Ali fez, teve essa coragem. Olhando para a história, o Ali foi o maior desportista de todos. Não houve e se calhar não vai haver maior do que ele. Mas quer o Lewis quer o Ali sempre se posicionaram pelo que é correto. Estou orgulhoso deles, da Fórmula 1, da Mercedes principalmente”, comentou este ano Willy T. Ribbs, que é sempre convidado para Lewis Hamilton para o Grande Prémio dos Estados Unidos.
O recorde de vitórias em corridas que foi apenas mais um no caminho
“Tudo aquilo que sempre quis para o Lewis foi que tivesse um emprego decente, uma boa vida e fosse uma boa pessoa, tudo o que aconteceu a mais foi um bónus. Queremos sempre que os nossos filhos sejam felizes e que aproveitem as suas vidas. Para mim, esse sempre o principal objetivo. Estou extremamente orgulhoso por ter feito um trabalho incrível e por se ter tornado um grande ser humano. O processo de mentalidade em corrida é a chave de tudo, quando tinha oito anos já dizia ‘Vou ganhar, vou trabalhar para ganhar’. Tem feito isso desde essa fase”. Há corridas e corridas, há recordes e recordes, mas o pai de Hamilton, Anthony, percebeu o significado do triunfo do filho no Grande Prémio de Portugal. E Lewis também, como se viu no abraço no final da corrida ao progenitor após um período onde as relações não foram as melhores. Ali, o britânico passava a ser o piloto com mais vitórias em Grandes Prémios, mais um do que Michael Schumacher (92-91). Mas não foi o único registo.
Há um dado curioso nas constantes comparações que existem entre os dois pilotos. Dois exemplos: Schumacher ainda é o piloto que liderou em mais voltas (5.111-5.021 até esta prova na Turquia) mas Hamilton já se tornou o piloto na frente da corrida por mais quilómetros (25.480-24.148 e a contar). Depois há outros particulares, como o facto de ser o terceiro corredor com maior percentagem de vitórias em corridas realizadas, atrás de Fangio e Ascari, mas são muitos os registos do britânico como o número de corridas seguidas (264, mais 58 do que Nico Rosberg), o número de corridas com o mesmo motor (264 porque andou sempre com Mercedes), o número de pole positions (97), o número de vitórias no mesmo Grande Prémio (na Hungria, oito, as mesmas do germânico mas em França), o número de pódios (162-155, mais sete do que Schumacher), o número de vitórias na primeira temporada (quatro, como Jacques Villeneuve), o número de pontos ganhos (3.713, contra 3.003 de Vettel). Outros registos podem ainda ser alcançados mas o britânico já tem o seu nome mais do que escrito na Fórmula 1.
13 anos de carreira entre duas equipas e uma única marca de motores
A história já é conhecida mas ajuda também a explicar um outro ponto onde Lewis Hamilton difere de todos os outros grandes campeões da Fórmula. Quando tinha dez anos, o britânico viu Ron Dennis, patrão da McLaren, e quanto via o seu livro autografado numa cerimónia de entrega de prémios soltou uma única frase: “Olá, chamo-me Lewis Hamilton, ganhei o campeonato nacional de kart e um dia quero correr num dos seus carros”. Dennis respondeu o que responderá a todos os jovens talentos com um sonho, “Liga-me daqui a nove anos, logo veremos”, mas essa chamada foi bem mais rápida perante o percurso que o miúdo foi continuando a fazer com o passar do tempo, entrando num programa de desenvolvimento de jovens pilotos da marca. Em 2007, quando já era assumido por todos como um prodígio, estreou-se na Fórmula 1. E por pouco não foi logo campeão nesse ano.
Ron Dennis teve um papel fundamental no arranque de Lewis Hamilton para o que é hoje. “Só tenho de agradecer ao Ron por me ver quando tinha apenas dez anos e por ter acreditado em mim. Sem ele reparar em mim logo no início, provavelmente nem estaria onde estou”, confidenciou o britânico no ano passado. “O Lewis amadureceu ao longo dos anos, é normal com a idade, mas aquilo que aprecio é que nunca se esquece do passado. Temos uma relação de pai para filho e não creio que o Anthony se sinta incomodado por dizer isso. Ele nunca se esquecerá de quem o ajudou, seja o pai, as pessoas da McLaren e eu”, assumiu Ron Dennis. Hamilton tomou aquela que descreve como a decisão mais difícil da carreira em 2012, quando trocou a McLaren pela Mercedes. Ainda hoje lá está. E essa é uma diferença em relação aos outros grandes campeões: Schumacher passou por Jordan, Benetton, Ferrari e Mercedes; Fangio esteve na Alfa Romeo, na Maserati, na Mercedes e na Ferrari; Prost representou McLaren, Renault, Ferrari e Williams; Vettel foi da Toro Rosso, da Red Bull, da Ferrari e vai para a Aston Martin.
O ano do Black Live Matters e a importância de ter um papel social
Na antecâmara do Grande Prémio de Eifel. Lewis Hamilton teve uma das entrevistas mais fortes dos últimos anos quando falou do seu ídolo Ayrton Senna e do papel que os pilotos podem ter muito além de tudo o que se passa nas pistas. “Quando digo algo, sei que vai chegar a muita gente. Os media têm hoje um poder inacreditável. Podemos fazer pressão para que existam mudanças. Se não fosse assim, acordava e pensava ‘Ok, é ótimo ter tantos títulos’. Mas o que significa isto? Nada. Mas o que se faz com eles, isso significa tudo. Vivo no mundo, não apenas neste ‘mundo’ da Fórmula 1. O Ayrton teve um impacto enorme, conseguiu mover uma nação inteira e o próprio mundo. Foi isso que me tocou profundamente e me motivou para ser como ele”, revelou ao canal Youtube da F1.
Fórmula 1. Mercedes pinta carros de preto para lutar contra o racismo
O movimento do Black Live Matters, o ajoelhar que se tornou uma imagem de marca com Colin Kaepernick há quatro anos e todas as tensões raciais que se fizeram sentir sobretudo nos EUA fizeram de 2020 um ano diferente para Lewis Hamilton, que se mostrou mais ativista do que nunca na defesa de uma causa ainda para mais num mundo como a Fórmula 1 a quem ainda hoje faz críticas pelo escasso papel social que assume. “O meu sonho é ver todos juntos, ajoelhados à frente do grid, a mostrar que estamos unidos. Muitos pilotos parecem ser da opinião que fizeram uma vez e não vale a pena fazer mais, como se tivesse sido saído da agenda. Falta liderança”, apontou o britânico que, no Grande Prémio da Toscânia, voltou a deixar marca numa ação onde não cumpriu as regras (mas não foi sancionada) e foi ao pódio com uma t-shirt que dizia “Prisão para os polícias que mataram Breonna Taylor”. “Quero avisar todos que não vou parar, não vou desistir de usar estas plataformas para dar luz pelo que acredito. Devemos desafiar o mundo em todo nível de injustiça, indo além das questões raciais”, destacou.
Uma máquina de fazer dinheiro (a caminho dos 500 milhões de euros)
Por tudo aquilo que a McLaren cedo percebeu que Lewis Hamilton iria conseguir e pelo impacto que o britânico foi tendo ainda antes de fazer a estreia na Fórmula 1, desde cedo que o britânico se tornou um dos pilotos com maior salário na modalidade. Hoje, e nos últimos anos, não é “um dos”. É “o”. E os números desde 2007 mostram isso mesmo, com um total de mais de 450 milhões de euros ganhos nos contratos com a McLaren e a Mercedes, com quem tem um vínculo a poucos meses de chegar ao final num montante de 42,5 milhões de euros por época – e que motivará uma decisão de grande relevo da marca no final do presente Mundial, entre uma renovação que iria em condições normais manter o domínio dos germânicos entre os construtores possibilitando que Lewis Hamilton ultrapassasse o número de títulos de Schumacher e uma crise advinda da pandemia ainda sem fatura total que deve colocar outros desafios orçamentais a todas as equipas. Mas as receitas do britânico não ficam por aqui.
Embora esteja longe de outros fenómenos de diferentes desportos como Federer, Ronaldo, Messi, LeBron James ou Tiger Woods, Hamilton ocupou em 2020 o 40.º lugar entre as celebridades com maiores rendimentos (uma lista liderada por Kylie Jenner), à frente de nomes como Jay-Z, Billie Eilish, Kim Kardashian ou Jennifer Lopez, o piloto recebe mais de dez milhões de euros através de contratos de patrocínios com marcas como a Bose, a L’Oréal, a Police, a Puma, a Sony, a Monster Energy, a Mercedes-Benz ou a Vodafone, com quem assinou contrato este ano. O campeão mundial de Fórmula 1 é embaixador da Tommy Hilfiger, com quem assinou recentemente uma coleção de roupa batizada de TommyXLewis num estilo streetwear, sendo também a cara da campanha.
Das causas ambientais (dos oceanos às emissões de carbono) ao estilo vegan
Lewis Hamilton surgiu como um autêntico fenómeno, uma espécie de pop star idolatrado pela história de vida e pela subida a pulso num mundo complicado mas onde atingiu o topo em pouco tempo. E era essa a imagem que mais passava do britânico, como alguém com um talento invulgar ao volante mas que não se coibia de ir a festas, andar pelo mundo da moda, passear nos melhores restaurantes com várias celebridades, incluindo a cantora e ex-namorada Nicole Scherzinger. Em 2019, após o Grande Prémio do Japão, mostrou que era outro, numa mensagem enigmática que uns dias depois veio desdramatizar. “Honestamente, sinto vontade de desistir de tudo. Desligar completamente. Porquê estarmos preocupados quando o mundo está numa confusão tão grande e as pessoas parecem não se importar? Vou tirar um tempo para juntar todos os meus pensamentos. Obrigado a todos aqueles que se importam com o mundo”, disse então. Mas esse é o novo Hamilton. E essa é a principal diferença.
O homem Hamilton mudou, o campeão Hamilton continua na mesma: britânico é hexacampeão mundial
Se este ano ficou marcado pelo maior envolvimento nas causas sociais e raciais que foram assolando o mundo, já antes o britânico mostrara uma viragem no estilo de vida e nas preocupações, da não utilização de sacos de plástico aos incêndios na Amazónia, da proteção de animais em vias de extinção à luta contra a poluição nos oceanos. Mais: este ano, em janeiro, fez uma doação de 500.000 dólares para ajudar no combate aos graves incêndios na Austrália, bem como para apoiar os serviços dos bombeiros e as organizações de proteção dos animais no país. Em paralelo, e por causa do apelo à racionalização das emissões de carbono, vendeu o avião particular que tinha, passou a circular de Smart elétrico e tem falado com os responsáveis da Fórmula 1 sobre formas de minimizar os impactos. Antes, Hamilton deixara de beber álcool e tornou-se vegetariano. “Aquilo que estamos a fazer ao mundo, a quantidade de emissões… É uma crueldade e não quero apoiar isso, prefiro ter uma vida mais saudável”, explicou.