“Somos um grande contribuinte em Portugal. Pagamos impostos de mais de 100 milhões de euros por ano. Acreditamos que não devem ser desperdiçados na TAP”.
A mensagem foi dada de viva voz em Lisboa, no final de junho, pelo presidente executivo da Ryanair, numa conferência de imprensa em que Michael O’Leary voltou a atacar a ajuda de Estado à TAP, e com um mimo especial – um nariz de Pinóquio – para o ministro das Infraestruturas que dá a cara por ela. O polémico gestor da companhia de baixo custo irlandesa prosseguiu a sua cruzada contra a ajuda pública prometida à TAP — que a Ryanair levou ao Tribunal Geral Europeu — vestindo também a pele do contribuinte português.
Na apresentação foi exibido um slide que identifica a Ryanair como “um dos maiores contribuintes em Portugal”, no qual eram somadas as parcelas que a Rynair paga de impostos pela operação em Portugal e cujo resultado dá 138 milhões de euros. Ponto prévio: uma parte importante desta receita não diz respeito a impostos e não vai para o Estado, mas sim para os prestadores de serviços, já que inclui taxas pagas à NAV e Eurocontrol, entidades que gerem o espaço aéreo, comissões de handling e taxas aeroportuárias entregues sobretudo à ANA. Uma parte desses custos é transferida para os clientes finais, além de que são incontornáveis na atividade da aviação, ainda que impliquem também entrega de impostos, e são pagos por todas as companhias, incluindo a TAP.
Sem querer dar mais detalhes sobre a identificação atribuída a taxas e impostos (alegando razões de natureza comercial), a Ryanair acrescenta que os impostos relativos aos salários dos funcionários correspondem a contribuições para a Segurança Social (ou seja, a TSU). Por outro lado, a Ryanair não paga imposto sobre os lucros em Portugal, como confirmou Michael O’Leary na conferência de imprensa. E como explicou em mais detalhe fonte oficial da companhia irlandesa em resposta ao Observador. São duas as razões para que tal aconteça.
A primeira é que as operações da companhia irlandesa de baixo custo em Portugal estão abrangidas pelo acordo de dupla tributação entre Portugal e a Irlanda que, segundo as regras da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) determina que os lucros gerados pelos voos internacionais devem ser tributados no Estado onde a Ryanair tem sede e gestão, que é a Irlanda.
Estes acordos entre países para evitar a dupla tributação aplicam-se à generalidade das companhias aéreas estrangeiras que operam em Portugal e cobrem a principal margem de lucro destas empresas. Mas há uma parcela das operações que está sujeita ao pagamento de impostos em Portugal, como explica a Ryanair na resposta dada ao Observador, e que se reporta aos voos domésticos cujos impostos, em particular o IVA, são cobrados internamente.
A segunda razão é que, apesar de ser considerada uma das companhias mais rentáveis a nível global, a sucursal portuguesa da Ryanair tem apresentado sucessivamente prejuízos (pelo menos entre 2014 e 2019), constatou o Observador ao consultar as contas da empresa. Isto antes de a atividade ser afetada pela pandemia.
A empresa desvaloriza o tema, até porque não quer “um zero de ajuda do contribuinte português”. E considera que as taxas e comissões pagas anualmente – que, tudo junto, ascendem a 138 milhões de euros – “mostram o valor extraordinário que está a ser entregue pelo investimento da Ryanair em Portugal, em comparação com a repetida apresentação de prejuízos pela TAP” — e aqui repete a mensagem — que está a pedir mais de três mil milhões de euros de ajuda aos portugueses contribuintes portugueses, quando esses fundos poderiam ser mais bem gastos em hospitais, escolas, professores e enfermeiros”.
Fisco questionou prejuízos. Ryanair contestou método “ficcional e hipotético” que dava lucros
No ano que terminou em março de 2020, a Ryanair teve prejuízos de 1,6 milhões de euros e acumulava resultados negativos transitados de anos anteriores de 31,6 milhões de euros. A sucursal da Ryanair apresentava capitais próprios negativos de 33,2 milhões de euros, o que significa que os prejuízos apurados ao longo dos anos já ultrapassam em muito o capital colocado pela acionista. As contas simplificadas entregues pela sucursal não têm de ter certificação legal de revisor oficial de contas. A Ryanair Designated Ativity Company apresentou ainda receitas de 34,8 milhões de euros e tinha 350 pessoas ao serviço em 2019/2020, dos quais 225 estavam em tempo completo. As contas revelam ainda gastos de 4,4 milhões de euros com remunerações.
Os prejuízos sucessivos apresentados pela sucursal da Ryanair foram questionados pela Autoridade Tributária (AT), que fez uma inspeção à empresa em 2018. Segundo foi noticiado pelo jornal Público, dessa inspeção resultaram liquidações adicionais de IRC relativas aos anos entre 2014 e 2016 em que a empresa tinha apresentado prejuízos fiscais de 17,6 milhões de euros. O fisco considerou que a empresa tinha tido lucros em vez de prejuízos, através da aplicação de métodos indiretos, já que a sucursal não teria os documentos que permitiam comprovar os custos imputados à operação portuguesa e que justificassem a apresentação de prejuízos.
A Ryanair confirma ao Observador a inspeção da AT. Mas argumenta que o fisco português não questionou os prejuízos de 17 milhões apresentados nos anos de 2014 a 2016, e apenas defendeu que a margem de lucro obtida pela Ryanair nos voos internacionais (que passavam por Portugal) deveria ser imputada aos voos domésticos portugueses, usando para tal um método de transferência de preços “ficcional ou hipotético“. A companhia contesta esta abordagem e recorreu da cobrança adicional, recurso que está em avaliação.
Depois de 2016, a sucursal da Ryanair continuou a apresentar prejuízos em Portugal. Na resposta dada ao Observador, fonte oficial da empresa irlandesa justifica este quadro. Os voos domésticos em Portugal, que em grande parte representam a operação tributável no país, mostram prejuízos “devido à rápida capacidade de crescimento e investimento realizados em 2018 e 2019”. Informação dada pela companhia indica que a Ryanair opera quatro bases em Portugal e tem aviões instalados cá avaliados em mais de 2.000 milhões de euros.
Também o presidente executivo, Michael O’Leary, atribui os prejuízos ao crescimento muito rápido da empresa em Portugal, onde conta ser a principal operadora. “Duplicámos a oferta em dimensão nos anos anteriores [à pandemia]”, disse o irlandês na mesma conferência de imprensa, em junho. O’Leary disse ainda que a Ryanair teve prejuízos no ano de 2020/21 a nível global e que isso lhe dará direito a compensação fiscal, mas por parte da Irlanda, onde a empresa paga impostos sobre lucros.
O CEO diz que quer investir mais no mercado nacional, promete mais 500 milhões de euros se abrir o aeroporto complementar no Montijo e admite criar um centro de manutenção. Propostas que aguardam decisões do ministro das Infraestruturas.
Outras companhias têm lucros… mas só uma das maiores paga imposto em Portugal
O cenário vermelho nas contas da Ryanair até ao impacto da Covid-19 contrasta com o de outras companhias aéreas internacionais que operam em Portugal a partir de sucursais.
As últimas contas anuais relativas sobretudo a 2019, consultadas pelo Observador, mostram resultados positivos com expressão na Lufthansa — 30,2 milhões de euros para receitas de 56,6 milhões de euros; Iberia — 27,8 milhões de euros para receitas de 41,4 milhões de euros; Turkish Airways — 16,2 milhões para receitas de 33,7 milhões de euros; e British Airways — 12,2 milhões de euros para receitas de 34,2 milhões de euros. Mas estas empresas também não pagam IRC em Portugal devido à isenção concedida pelos acordos de dupla tributação.
Há, porém, pelo menos uma exceção. Entre as contas das principais empresas de aviação internacionais consultadas pelo Observador, a Easyjet foi a única a reportar o pagamento de imposto sobre resultados apurados no ano 2019/2020. A sucursal da companhia low-cost, que tem sede no Reino Unido, teve resultados antes de impostos de 1,5 milhões de euros, dando origem ao pagamento de 347 mil euros em IRC, o que corresponde a uma taxa de 22,5%, que inclui derrama e derrama estadual. O lucro líquido foi de 1,1 milhões de euros.
Na prestação de contas de 2019/20, a empresa refere estar sujeita ao IRC em Portugal. Em explicações ao Observador, uma fonte da companhia explica que a operação de venda de bilhetes em Portugal também está abrangida pelo acordo fiscal com o Reino Unido. No entanto, a Easyjet tem uma participada em Portugal que desenvolve atividades de apoio ao negócio geral da aviação, dando o marketing e os recursos humanos como exemplos de serviços contratados em Portugal.
Em linha com as regras internacionais de transferência de preços (que o Fisco usou para calcular lucros tributáveis da Ryanair), a Easyjet paga imposto sobre lucros em Portugal tendo como base indicadores que, aplicados a certos custos em Portugal, permitem calcular a remuneração da participada portuguesa pelos serviços prestados ao grupo Easyjet.
A consulta às últimas contas da transportadora aérea mostra ainda que a sucursal em Portugal apresenta uma situação contabilística sólida com resultados transitados positivos acumulados de mais de seis milhões euros, o que sinaliza que teve lucros em anos anteriores. Não há nota de pagamento de dividendos ao acionista neste ano.
A sucursal Easyjet apresentou receitas de 20,7 milhões de euros em 2019/20, teve 330 pessoas ao serviço — das quais 294 em tempo completo — e pagou remunerações no valor de 16,3 milhões de euros.