A 21 de março de 1996, o presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, chamava ao púlpito o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, António Costa, para apresentar a proposta de lei do Governo que pretendia instituir um novo impedimento para os políticos. Além de terem familiares impedidos de negociar com o Estado, passariam ainda a estar proibidos de intervir em procedimentos administrativos que envolvessem empresas a que estivessem estado ligados, direta ou indiretamente, nos três anos anteriores a entrarem em função. Mas manteve o resto como estava e o mesmo regime de sanções que hoje questiona: demissão dos titulares dos cargos políticos e nulidade dos contratos feitos.
O regime tinha sido criado no ano anterior, mesmo ao cair da legislatura (ver mais adiante neste texto esse histórico) e, no plenário, mas o Governo já pretendia voltar a alterar a lei para dar resposta ao que considerava manter-se: A “situação de suspeição, que deve ser, de todo em todo, eliminada da vida política portuguesa, sobre a isenção de um titular de cargo político relativamente à possibilidade de intervir em processos em que sejam interessadas empresas em que ele ou os seus próximos tenham participação relevante ou em que sejam titulares de órgãos sociais”.
Era um acrescento relativo às atividades anteriores dos políticos na lei que, no seu artigo 8º, já impedia que “empresas com capital detido numa percentagem superior a 10% por um titular de cargo político ou de alto cargo público pudessem participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas, no departamento da Administração em que aquele titular exerça funções”. Este mesmo impedimento estendia-se ainda às empresas em que fossem titulares o cônjuge, “os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau”, na mesma percentagem.
Este é o artigo que existe desde 1995 e que coloca em causa os contratos públicos como o do filho do secretário de Estado da Proteção Civil ou o pai do ministro das Infraestruturas e que o mesmo António Costa quer agora esclarecer junto da Procuradoria Geral da República para perceber se implica ou não a demissão dos governantes.
Já o que a proposta do Governo de 1996 — ali apresentada por António Costa — sustentava era que, além disto, os políticos também não podiam intervir em contratos onde estivessem envolvidas diretamente empresas onde tinham estado ou onde estivessem familiares seus nos três anos anteriores a eles mesmos assumirem funções políticas. Nessa altura, Costa não fez qualquer tentativa de recuo em relação à sanção que constava então na lei. Aliás, a proposta do Governo estabelecia o mesmo regime sancionatório para o novo impedimento: a demissão para os membros do Governo, com a exceção do primeiro-ministro; a destituição judicial e a inibição para o exercício de funções em cargos públicos, para os titulares de altos cargos públicos. E a nulidade dos contratos feitos.
Costa pede parecer a PGR sobre casos de contratos de familiares de governantes
O então secretário de Estado, agora primeiro-ministro, não levantou dúvidas, na intervenção que fez no debate parlamentar, sobre a lei que existia e sobre a qual pediu, esta terça-feira, um parecer ao Conselho Consultivo da Assembleia da República, por entender que “não pode deixar de suscitar dúvidas como alguém possa ser responsabilizado, ética ou legalmente, por atos de entidades sobre as quais não detém qualquer poder de controlo e que entre si contratam nos termos das regras de contratação pública, sem que neles tenha tido a menor intervenção”.
Em 1996, falava antes na necessidade de acabar com a “situação de suspeição, que deve ser, de todo em todo, eliminada da vida política portuguesa, sobre a isenção de um titular de cargo político relativamente à possibilidade de intervir em processos em que sejam interessadas empresas em que ele ou os seus próximos tenham participação relevante ou em que sejam titulares de órgãos sociais”.
Segundo o parecer aprovado no Parlamento sobre a iniciativa do Governo, o novo impedimento proposto dizia respeito à “intervenção em procedimentos administrativos em que sejam parte pessoas coletivas de fins lucrativos nas quais os titulares em causa tenham, nos três anos precedentes à investidura no cargo, integrado corpos sociais ou sejam detentores de capital em percentagem superior a 10 % (direta ou indiretamente, nos termos do artigo 8.° da Lei n.° 64/93)”. Direta ou indiretamente, remetendo para o que diz o tal artigo dos titulares das empresas impedidas: não são só aquelas a que os políticos têm ligações diretas, mas também as detidas pelos seus familiares até 2º grau.
“Fazêmo-lo sem nos pormos em bicos de pés e com à-vontade, porque esta proposta, a ser aprovada, não atinge quem exerceu essas funções, mas apenas quem as exerce atualmente”, explicava Costa que, no debate que está disponível para consulta no Diário da Assembleia da República, se dirigia ao PSD para dizer que via na primeira fila “quatro ex-membros do Governo. Não sei se os senhores, em concreto, tomaram ou não, no exercício das vossas funções governativas, alguma decisão relativamente a qualquer pessoa coletiva, na qual tivessem tido interesse pessoal, seja acionária, seja como titular de cargos sociais, ou que algum familiar vosso próximo tivesse tido. Não estou a querer levantar qualquer suspeição”, garantia dirigindo-se aos sociais-democratas.
“Os senhores acham bem ou mal que um titular de um cargo político possa estar a decidir hoje sobre matéria relativa a uma empresa, onde, há quatro meses, tinha participação social relevante ou onde tinha sido titular de órgãos sociais?”, questionava o então secretário de Estado ao fazer a defesa da proposta do Governo. “Há uma coisa que eu sei e que digo: nenhum membro deste Governo quer estar sob a suspeição de estar a decidir sobre matéria relativamente à qual possa ter qualquer interesse direto ou indireto”, sublinhava.
A proposta foi aprovada por unanimidade — com Costa a avisar durante o debate que se a Assembleia da República não concordasse com a alteração à lei, por achar que não era da sua competência, o próprio Governo o faria por decreto. A aprovação unânime não deixou de ser antecedida por um debate quente em que Costa dirigia um pedido aos sociais-democratas acabados de sair do Governo: “Os senhores viveram 10 anos com a vossa consciência tranquila; nós gostaríamos que a lei nos permitisse ter a consciência tranquila e, sobretudo, que não houvesse qualquer dúvida na opinião pública, nem qualquer suspeição de que quem está a governar o faz na prossecução de um interesse público e não na de qualquer interesse privado, nem sequer de que a suspeição exista”.
No PSD, o deputado Marques Guedes não gostou do que ouviu e respondeu dizendo que “no governo anterior as pessoas dormiam descansadas pelas suas consciências e não por aquilo que, de uma forma apenas de show off mediático, colocavam num papel, numa letra de lei, e enviavam à Assembleia da República. As pessoas dormiam descansadas por aquilo que faziam e pelos atos que praticavam e tinham a perfeita consciência ética de quando deveriam ou não intervir em determinado tipo de processos”.
A verdade é que no ano anterior, o Regime de Incompatibilidade e Impedimentos para titulares de cargos políticos tinha vindo passar à letra de lei as questões de ética, precisamente pela mão do PSD.
Um regime que nasceu no meio de demissões, fragilidades políticas e muita discussão
Em 1995, mesmo no fim da legislatura, já Cavaco Silva tinha deixado a liderança do PSD a Fernando Nogueira, enquanto se despedia dos últimos meses em lides governativas. Nogueira tinha uma agenda política esvaziada por dez anos de poder laranja e um líder do CDS, Manuel Monteiro, apostado num discurso anti-sistema político, com críticas a alguns aspetos do funcionamento do meio, nomeadamente aos privilégios dos deputados. Chegou mesmo chamar-lhes “sanguessugas” do sistema: “Até os deputados do CDS ficaram muito zangados comigo”, conta ao Observador. “Fui insultadíssimo, chamavam-me populista e demagogo”, recorda.
Era contra “os privilégios privados de uma classe que funcionava à parte”, afirma. E o discurso acabava por povoar o espaço político à direita. “Havia pessoas no PSD que se identificavam com aquilo e eles avançaram com o pacote da transparência”, relembra o antigo líder democrata-cristão sobre aqueles dias. As ideias de Monteiro entraram pelo PSD através do pacote da transparência também conhecido pelo pacote Nogueira, que o presidente social-democrata Fernando Nogueira acabou por apresentar. Mas a história desse começo teve alguns percalços no partido.
Nessa altura, numa reunião da Comissão Política do PSD, o então líder parlamentar José Pacheco Pereira lembra-se de ter sido debatida a hipótese de se avançar com a discussão de um regime de incompatibilidades para os políticos, mas acabou por ser “consensual” que o PSD não ia por aí. “Eu discordava, não era a favor de legislação específica para políticos. Entendo que a legislação deve ser genérica porque ao ser específica promove os populismos”, argumenta Pacheco Pereira quando recorda o caso.
Depois dessa reunião teve uma viagem a Moscovo. “Quando cheguei a Portugal, Nogueira tinha apresentado o pacote legislativo que tinha sido rejeitado na Comissão Política do PSD. Nesse dia entreguei carro, gabinete e papeis”, diz referindo-se à sua demissão de presidente da bancada, sublinhando que foi “o líder parlamentar do PSD eleito com maior percentagem de votos”, o que tinha acontecido no mês anterior, em março.
O debate que se seguiu no Parlamento foi duro. Pacheco Pereira passou “para a última fila da bancada parlamentar” do PSD, mas continuou a ser um opositor à reforma que o seu próprio partido avançava. Foi e é. “A minha tese é a que sempre foi, que a questão não se resolve por lei. Mas sim impedindo as pessoas corruptas de fazerem carreira (e as lideranças partidárias não podem promover certos tipos de pessoas) e existindo uma comissão como a de ética, mas independente dos mecanismos partidários e compostas por pessoas com provas dadas”. “O problema não é jurídico, é político“, sustenta.
Não foi o único. Guilherme Silva, também deputado do PSD na altura, lembra-se que fez uma declaração de voto na votação da proposta do PSD — que acabou aprovada por sociais-democratas, em maioria absoluta, com os restantes partidos a votarem contra. “As medidas não tinham sentido” e “entendia que se estava a iniciar uma cedência ao populismo, no sentido da degradação do estatuto dos políticos”, diz em relação ao estabelecimento de um regime de incompatibilidades. “O PSD e o PS embarcaram nesse discurso que nunca mais parou”, diz o antigo deputado ao Observador, defendendo que “não se fazem políticos sérios por decreto”.
Rio votou a favor do regime que agora quis alterar
A norma que diz diretamente respeito às relações familiares foi alterada meses antes, quando o PSD de Cavaco Silva governava o país e tinha maioria absoluta no Parlamento. Foi, à semelhança do que aconteceu este ano, uma alteração aprovada já no fim da legislatura mas com menos consenso do que o reunido pelas alterações que vão passar a estar em vigor já a partir da próxima legislatura. O debate onde se aprovou o regime das incompatibilidades e impedimentos que ainda hoje vigora foi, por isso, bem aceso. Foram vários os pontos quentes que partiram o Parlamento ao meio, mas nenhum deles estava relacionado com a norma que regulava os impedimentos relativos às empresas de familiares de cargos políticos.
Um dos protagonistas daquele grupo parlamentar do PSD era Rui Rio, então com 37 quase 38 anos. Era 7 de junho e os deputados preparavam-se para encerrar a última legislatura do cavaquismo. Mesmo antes das férias com cheiro a campanha — as eleições legislativas foram a 1 de outubro — votava-se um conjunto de propostas saídas da Comissão Eventual para a Ética e Transparência. Além do regime das incompatibilidades e impedimentos, agora em voga, votava-se o Estatuto dos Deputados assim como o pacote de leis sobre o controlo de riqueza dos titulares de cargos políticos. Um dia totalmente dedicado à transparência e à ética. Foi mesmo um dia inteiro: o plenário onde se aprovaram estes dossiers começou às 10h30 do dia 7 de junho e terminou à meia-noite e 25 minutos do dia 8.
Eram pacotes já de si pesados que ficaram ainda mais adensados pela decisão de juntar na mesma votação a fase de especialidade e a votação final global. Do lado do PSD, que gozava de maioria absoluta e que não precisava de negociar votos para levar as suas propostas avante, propunham-se várias alterações ao regime de impedimentos e incompatibilidades. Uma delas referia-se à norma que é hoje a mãe de todas as dúvidas: a que diz respeito às relações familiares, que põe agora debaixo de fogo vários governantes cujos familiares diretos celebraram contratos com o Estado.
Pai de Pedro Nuno Santos também fez negócios com o Estado com o filho no Governo
Até então, a lei que estava em vigor, com data de 1993, estabelecia como impedimento o facto de os cônjuges não separados de pessoas e bens de titulares de cargos políticos terem mais de 10% do capital de uma empresa que contratasse diretamente com a área sob sua tutela. O mesmo acontecia para as empresas detidas pelo próprio. Em 1995, os deputados do PSD e o independente Manuel Sérgio votaram favoravelmente duas alterações: o alargamento do impedimento a familiares diretos — ascendentes, descendentes e colaterais até 2º grau — e a retirada da referência ao “departamento da Administração em que aquele titular” exercesse funções. Ora, são precisamente estas duas alterações que tornam os casos de Pedro Nuno Santos, Francisca Van Dunem e Artur José Neves duvidosos aos olhos desta lei, que ainda hoje vigora.
Certo é que à época foram poucas as intervenções que levantaram problemas quanto a esta matéria. Os deputados que pediram a palavra naquele 7 de junho centraram o debate sobretudo nas questões da remuneração dos deputados, da sua exclusividade e no sinal que o chumbo de propostas que visassem alargar a transparência da atividade política podia dar para fora.
Do lado do PSD foi sobretudo o líder parlamentar Silva Marques, que na posição de pivô e com a certeza da aprovação das propostas passava a batata quente para o lado socialista. “Se o PS votar as nossas propostas, teme que isso seja o triunfo da proposta de «pacto de regime» do Dr. Fernando Nogueira, pacto esse que nunca preocupou o Engenheiro Guterres, note-se. Se votar contra, as pessoas questionar-se-ão se o Engenheiro Guterres e o PS queriam mesmo mudar para melhor alguma coisa. Se se abstém, não será muito empolgante para um partido com tão ambiciosas aspirações”, provocou logo na intervenção inicial.
Na resposta, o PS, pela voz de Jaime Gama, acusava o PSD de querer aprovar um pacote legislativo à pressa suscitado por pressão popular e para eleitor ver. “Enquanto procurámos, durante toda a Legislatura, centrar a discussão deste problema para muito antes do final da Legislatura e da véspera do calendário eleitoral, VV. Ex.ªs procuraram não só votar contra qualquer proposta oriunda de qualquer força política da oposição mas também obstaculizar a realização de um debate sobre esta problemática em tempo útil, para poder ser discutida, com vantagem para todos, fora da conjuntura eleitoral. É por isso que dizemos que o «último PSD» chegou tarde”, afirmou o deputado socialista, justificando assim o já previsível voto contra do PS.
Os argumentos ali esgrimidos, e relatados em Diário da Assembleia da República, nunca chegaram a tocar as relações familiares, tendo a alteração sido aprovada com os votos a favor do PSD e do deputado independente Manuel Sérgio e os votos contra de PS, PCP, CDS e do deputado Mário Tomé. Um silêncio que hoje se pode estranhar mas que à luz dos factos pode ser compreensível, já que se tratava de apenas uma alínea de um dos vários pacotes que foram votados.
No fim, já passava da meia-noite, o até então discreto deputado social-democrata Rui Rio pediu a palavra. “É para anunciar que vou entregar à Mesa uma declaração de voto”. Já tinha votado favoravelmente os vários pacotes relativos à transparência. Mas havia temas que lhe suscitavam dúvidas e quis deixá-lo claro. “Entendo, igualmente, que algumas alterações aprovadas, confundem o conceito de exclusividade com disponibilidade, qualidade e dedicação aos trabalhos parlamentares, pelo que irão, na minha perspetiva, gerar injustiças e, eventualmente, contribuir para uma maior degradação da qualidade política”, explicou na declaração de voto.
Ou seja, apesar de ter analisado os documentos em votação e de ter anotado os pontos com os quais não estava de acordo, Rui Rio estava confortável com as alterações que o seu partido queria fazer à alínea referente aos impedimentos dos titulares de cargos políticos e dos seus familiares.