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Não é relevante se Cowboy Carter é ou não country – ninguém esperava um disco purista (até porque a especialidade de Bey é o r’n’b e ela é uma estrela pop), o interesse aliás estava em descobrir como seriam as núpcias destes géneros
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Não é relevante se Cowboy Carter é ou não country – ninguém esperava um disco purista (até porque a especialidade de Bey é o r’n’b e ela é uma estrela pop), o interesse aliás estava em descobrir como seriam as núpcias destes géneros

Não é relevante se Cowboy Carter é ou não country – ninguém esperava um disco purista (até porque a especialidade de Bey é o r’n’b e ela é uma estrela pop), o interesse aliás estava em descobrir como seriam as núpcias destes géneros

"Cowboy Carter" e o duelo de Beyoncé

O anunciado disco de country da americana não é, como se supeitava, um disco de country. É, sobretudo, um disco a querer ser várias coisas, sem conseguir ser nenhuma delas de corpo inteiro.

Um dos grandes dramas que o Ser Humano Que Tem Opiniões Próprias enfrenta por estes dias é a escolha do tema com que irá discordar veementemente, ou que irá defender acerrimamente, a cada dia. Se for uma discussão woke, é relativamente simples: basta repetir os argumentos de um dos lados da barricada, mas em termos próprios; se for política, aplica-se o modus operandi anterior. Mas certas plataformas (como o Twitter) colocam-nos diariamente centenas de questões morais sobre as quais os restantes seres humanos têm opiniões firmes e que, para alguém cuja retina não opere num sistema binário reduzido a preto e branco, são autênticas armadilhas.

O user do Twitter Nathan Hubbard (handle: @NathanCHubbard) criou – eventualmente sem querer – um desses momentos em que a humanidade se divide e todos gritam, quando resolveu afirmar, acerca de Cowboy Carter, o recém lançado álbum de Beyoncé, que “you’d struggle to find an artist who has ever been this creative at 42”. Não contente com este pedaço de dinamite, Hubbard acrescentou “Gotta think more this weekend”, e isto (eheheheh), é mesmo uma citação, ele ainda tem de pensar mais no assunto, mas: “Paul Simon is probably the only one?”.

Ai, Hubbard, meu pobre Hubbard, o que tu fizeste ao teu fim-de-semana não foi arranjar tempo para pensar – foi imortalizar o dito fim de semana como o fim de semana em que te tornaste saco de pancada da internet inteira. Houve quem acusasse Hubbard de idadismo; outros defenderam que era apenas um ignorante; os fãs de Beyoncé, por sua vez, defenderam-no ferreamente, enquanto ele enumerava os feitos da rainha (ganhou não sei que Grammy, encheu aquele estádio, vendeu não sei quantos discos, sendo que é sempre engraçado quando se tenta reduzir feitos artísticos a estatísticas).

[ouça “Cowboy Carter” na íntegra através do Spotify:]

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Presumo que não valha a pena perder tempo a recapitular o que outros disseram: que Bob Dylan ou Leonard Cohen ou Johnny Cash ou Loretta Lyyn lançaram grandes discos muito para lá dessa idade (já para não falar de uma Elza Soares ou um Caetano ou mesmo um Zeca) e a vida inteira houve artistas que recuperaram a forma já depois dos 60, bem como aqueles que só encontraram a sua voz – ou o reconhecimento – tardiamente (toda a gente fala de Picasso, ninguém fala de Cézanne).

O argumento de Hubbard é ignorante e idadista, mas replica apenas a hagiografia mental de quem comenta arte ad infinitum nas redes: em vez de reflexão e tempo dedicado a conhecer o passado, a “opinião” reduz-se a glorificar/destruir um artista ou uma obra, tentando aplacar qualquer assomo de nuance ou erudição que possa assomar à conversa, porque argumentos complexos estragam a arrumação mental de quem, mais que apreciar uma arte, a toma como arma para exsudar as suas tendências fundamentalistas — de quem usa a arte para afirmar a sua identidade.

[Já saiu o quinto episódio de “Operação Papagaio” , o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui, o terceiro episódio aqui e o quarto episódio aqui]

Houve outros eventos gloriosos de argumentação brutalista ao longo do fim de semana: o que quererá Beyoncé dizer ao mundo ao decidir fazer um disco de country?; porque é que Beyoncé fez uma versão de Jolene e mudou a letra, transformando o que é uma canção desesperada (uma mulher a pedir a outra, que seduz o seu marido, para não lhe destruir a família) numa demonstração de força (Beyoncé diz que dá um tareião a quem se meter com o seu marido, Jay-Z, o que hoje em dia deve, em números arredondados às casas decimais, significar zero pessoas).

O disco – quem tem 27 canções e nenhum disco devia ter 27 canções – vai oscilando entre a ocasional canção que soa a country, a canção que tem elementos country mas que soa a outra coisa qualquer (sem se decidir o que quer ser), e vários géneros que não se entende lá muito bem o que estão ali a fazer.

A versão que Beyoncé faz de Jolene até é uma boa porta de entrada para uma discussão sobre Cowboy Carter, mas antes convém desmistificar algumas ideias feitas sobre a country: sim, é muito possível que a maior da audiência deste tipo de música seja branca, mas há muitos anos, antes dessa cisão, negros ouviam country e apreciavam-na, e da mesma forma que houve êxitos country que foram versões de tradicionais blues e gospel, também houve músicos negros a fazer versões e originais de música country – a quem duvidar aconselho a compilação Dirty Laundry – The Soul of Black Country, em que encontramos versões soul e gospel de country ou originais mais próximos do género, todos interpretados por negras e negros.

O género tem as suas particularidades: por norma existe slide-guitar, não raro violinos (ou um violino aparentado do cajun); as progressões são (por norma) derivadas dos blues e o fraseado (com as suas nonas aumentadas) é de extrema importância (a este propósito convém ouvir Hank Williams, Webb Pierce, Dolly Parton e Loretta Lynn). Mas, e este é um dos aspetos caricatos de toda esta polémica, a country tem origem numa improvável mistura de folk, canções celtas e (sim, adivinharam) os blues.

Unir country e géneros considerados negros, como a soul (sendo que sempre houve músicos brancos a compor e tocar para artistas negros e músicos negros a tocar com bandas rock e pop brancas), já foi feito, mas o desafio hoje é maior, porque o r’n’b atual depende muito mais da tecnologia e usa tempos que não casam com a country tradicional – pelo que conseguir misturar ambos seria uma vitória.

Unir country e géneros considerados negros, como a soul, já foi feito, mas o desafio hoje é maior, porque o r’n’b atual depende muito mais da tecnologia e usa tempos que não casam com a tradição

Não é exato que seja esse o objetivo de Beyoncé: Ameriican Requiem abre com coro gospel, tem uma cítara (?) e guitarra acústica e soa mais a Beatles na fase indiana do que a country; Beyoncé canta “If this ain’t country / tell me what is (…) They don’t know how hard I had to fight for this / when I sing my song”, e é quase caricato que uma das mulheres mais poderosas do planeta se queixe da dificuldade que tem em “sing my song”, como se houvesse uma conspiração contra ela (isto é cultura hip-hop, que não rima com a country, por natureza uma cultura dos pobres).

Os Beatles surgem a seguir, numa versão de Blackbird (guitarra acústica, um beat, coros), particularmente aborrecida e cuja inclusão não se entende muito bem; à terceira canção (16 Carriages) surge uma slide guitar, mas na maior parte do tempo a canção reduz-se à voz de Bey; em Texas Hold’em há um banjo e uma progressão em tom country – em fundo há muitos coros gospel, e é de longe dos melhores acidentes do disco (o assobio à saída do refrão, dobrado com violino, é perfeito).

Não consegui ainda decidir se os apontamentos típicos de country (slide-guitar, violino, certas progressões) estão lá porque eram considerados essenciais para a canção ou se a canção já existia e foram lá colocados como adornos, para provar que isto é, de alguma forma, country; Daughter tem uma guitarrinha que se podia ouvir numa banda-sonora de um filme de John Ford, mas é tudo demasiado seguro de si para o sofrimento abissal da country; II Most Wanted (com Miley Cyrus) é bonitinha, tem ali uma slide-guitar, mas é tão chata como uma versão de More Than Words criada por IA;  Levii’s Jeans (com Post Malone) volta a ter uns elementos de country, mas soa a uma canção r’n’b transformada em country; Ya Ya usa um sample de These Boots Were Made for Walking – é uma ótima canção, não tem nada de country, usa a melodia original em demasia mas é uma bela canção pop; Tyrant tem lá o violino, mas acaba por ser quase r’n’b puro.

Estatisticamente é provável que pudesse estar aqui um muito razoável disco de country-r’n’b mutante, se alguém tivesse tido o bom senso de cortar o alinhamento para 10 canções. Assim fica como um álbum que, com meia dúzia de exceções, quer ser tanta coisa que não chega a ser nenhuma.

O disco – quem tem 27 faixas (nem todas são canções, algumas são interlúdios) e nenhum disco devia ter 27 faixas – vai oscilando entre a ocasional canção que soa a country, a canção que tem elementos country mas que soa a outra coisa qualquer (sem se decidir o que quer ser), e vários géneros que não se entende lá muito bem o que estão ali a fazer: Bodyguard é uma canção pop sobre ciúme, só que com instrumentos acústicos; a versão de Jolene é desnecessária – não só porque já há versões que cheguem, mas também porque Bey transforma um colosso de devastação num manifesto do seu poder enquanto mulher-leoa – a entrega vocal de Bey é demasiado segura de si (e tecnicamente perfeita) para o que a canção pede, que é uma mulher a rastejar e implorar à mulher que seduz o seu homem que, por favor, não destrua a família. Bey opta por avisar a sedutora que lhe fará a vida num inferno – isto pode até ser um take feminista, mas em termos musicais o poder da canção perde-se.

Pelo meio vai havendo faixas de r’n’b (sem pingo de country), até que lá pela vigésima faixa a rainha da pop se borrifa para a miscigenação e dedica-se exclusivamente ao r’n’b até ao fim do disco. Não é relevante se Cowboy Carter é ou não country – ninguém esperava um disco purista (até porque a especialidade de Bey é o r’n’b e ela é uma estrela pop), o interesse aliás estava em descobrir como seriam as núpcias destes géneros. Cowboy Carter acaba por soar a uma tentativa de cópula mal concretizada em que, a dada altura, um dos intervenientes desiste e vai fazer aquilo que aprecia (r’n’b). É como se Cowboy Carter, em vez de um evento pop, acabasse por ser dois terços experiência semi-falhada de enxerto de country em r’n’b (ou vice-versa) e um terço r’n’b corriqueiro – é como se Cowboy Carter não decidisse o que quer ser.

Estatisticamente é provável que pudesse estar aqui um muito razoável disco de country-r’n’b mutante, se alguém tivesse tido o bom senso de cortar o alinhamento para 10 canções (são sempre elas que fazem a diferença nas contas finais, para lá das simbologias e das representações, que muitas vezes são sobretudo resultado da interpretação dos fãs). Depois de Lemonade ou Renaissance, Cowboy Carter soa a passo em falso, fica como um álbum que, com meia dúzia de exceções, quer ser tanta coisa que não chega a ser nenhuma.

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