A criação do passe ferroviário em 2023, pelo Governo de António Costa, ia dar origem ao pagamento de compensações à CP por perda de receitas. O processo de cálculo e validação dessas compensações ao operador ferroviário já estava em curso durante a vigência do anterior Executivo, garante ao Observador o ex-secretário de Estado das Infraestruturas.
Frederico Francisco, que esteve em funções até ao final de março deste ano, explica que o lançamento de um passe ferroviário, ou o seu alargamento, é uma redução tarifária que dá origem ao pagamento de compensações ao abrigo do contrato de concessão de serviço público da CP.
Quando foi introduzido o passe inicial de 49 euros para o serviço regional, em agosto de 2023, a operadora fez uma estimativa fundamentada de perda de receita num ano que seria inferior a um milhão de euros. O valor das perdas estimadas terá depois de ser corrigido com dados da operação no âmbito de uma proposta de compensação por parte da CP ao IMT (Instituto da Mobilidade e Transportes) que depois de acordada com o IMT ainda tem de ser validada pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF).
No seu relatório e contas do ano passado, a CP indicava que não tinha sido compensada pelo passe ferroviário lançado em 2023. O ex-secretário de Estado admite que o processo de correção e validação das compensações devidas à empresa ainda não terá ficado concluído.
Segundo informação prestada esta quinta-feira ao Observador, a CP indicou que até julho de 2024 foram vendidas 30.449 assinaturas deste passe. Dessas, 13.140 foram novas assinaturas, enquanto 17.309 passes foram conversões de passes já existentes para este novo título.
A perda estimada de receita subiu para o dobro — cerca de dois milhões de euros por ano — com o alargamento do passe ferroviário aprovado no Orçamento deste ano na sequência da negociação com o Livre. Este alargamento manteve o valor de 49 euros, mas prevê a inclusão no passe de serviços inter-regionais e de alguns trajetos do intercidades, escolhidos em função de terem uma procura mais reduzida, adiantou o ex-governante ao Observador. Os trajetos eram Viana do Castelo-Barcelos-Famalicão-Braga; Famalicão-Trofa-Santo Tirso-Guimarães; Coimbra-Figueira da Foz; Castelo Branco-Fundão-Covilhã-Guarda; Beja-Casa Branca-Évora e Tunes-Loulé-Faro.
Segundo também explicou Rui Tavares à Rádio Observador, esta ampliação correspondia a 250 comboios por dia, face aos 100 comboios diários contemplados no passe criado em 2023.
[Já saiu o quarto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]
Mas o atual Governo foi mais longe. Em vez de implementar esta solução, Luís Montenegro anunciou, no Pontal, a intenção (ainda sem data e sem estimativas sobre o custo) de alargar ainda mais o alcance do passe ferroviário — abrangendo suburbanos e intercidades — e baixar o preço para menos de metade — 20 euros. O valor da compensação será, por isso, muito superior. A CP recebe por ano cerca de 90 milhões de euros para. cobertura de custos do serviço público.
Frederico Francisco afasta um cenário de que a CP não seja compensada pelo Estado em caso de alteração tarifária que se traduza numa perda de receitas nas operações que estão inscritas no contrato de serviço público. Entre estas estão todos os serviços que o novo Governo pretende acrescentar ao passe ferroviário — intercidades e suburbanos, para além dos regionais e inter-regionais. Só o Alfa Pendular fica de fora.
Este contrato diz que “alterações aos parâmetros de serviço público (…) assim como as modificações unilaterais do contrato pelo Estado são tidas em conta no cálculo da compensação e da reconciliação. Caso o disposto no número anterior não permita, comprovadamente, cobrir integralmente o impacto financeiro causado pelas alterações ou modificações unilaterais, a CP tem direito a ser ressarcida dos prejuízos, nos termos gerais do direito”.
Há o risco de “ter as mesmas pessoas a pagarem muito menos”
O antigo secretário de Estado das Infraestruturas reconhece ainda que existe o risco de um passe generalizado a todos os serviços de intercidades desviar clientes das operações mas rentáveis da CP, nomeadamente o Alfa Pendular, mas não antecipa que a iniciativa se traduza numa corrida aos comboios, tendo até como referência o que aconteceu em outros países onde foram adotadas medidas comparáveis. O maior risco é “ter as mesmas pessoas, mas a pagarem muito menos”, o que se traduzirá numa perda de receita.
Frederico Francisco refere que existem mecanismos que podem corrigir alguns efeitos perversos que têm sido apontados a um passe ferroviário muito barato para quase todos os serviços — excluindo apenas os Alfa. E remete para o exemplo alemão onde a venda do passe de 49 euros mensais era acompanhada da obrigação de adquirir o título por três meses, de forma a comprometer os clientes com a opção ferroviária.
Passe ferroviário a 20 euros “vai ser desastre financeiro para CP”, alerta comissão de trabalhadores
O Governo ainda não deu detalhes sobre o novo passe ferroviário. Já a CP, em respostas ao Observador, afirma que este está a ser desenvolvido em colaboração entre o Governo e a empresa. “Assim que todos os detalhes forem definidos, incluindo a data de entrada em vigor, condições de utilização e outras questões relevantes, a CP fará uma comunicação oficial para esclarecer todas as dúvidas que possam surgir.”
Regulador tem de emitir parecer, mas ainda não foi consultado
Já a Autoridade Metropolitana de Transportes (AMT), o regulador setorial liderado por Ana Paula Vitorino, não foi até agora consultado, nem sobre o novo passe sinalizado pelo Governo, nem sobre o anterior. Num relatório sobre a tarifação da infraestrutura ferroviária, de outubro de 2023, o regulador diz que o passe ferroviário que já está operacional desde 2023 “foi criado e anunciado sem ser objeto de parecer na AMT, ao abrigo do regulamento” que rege a sua atuação.
O regulador desconhecia também o estudo sobre a revisão do “tarifário dos serviços ferroviários ao abrigo de obrigações de serviço público que preveja a sua simplificação e os moldes em que se pode fazer o alargamento do passe ferroviário nacional às restantes categorias de serviços”. Estudo esse referido no Orçamento do Estado para 2024 que alargava o passe a outros serviços.
Questionada pelo Observador, fonte oficial da AMT remete para o regulamento n.º 273/2021, de 23 de março, o qual “estabelece a necessidade de emissão prévia de parecer pela Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) quanto a instrumentos ou decisões de âmbito tarifário”.
Aquele regulamento foi emitido ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 78/2014 de 14 de maio, que cria a AMT e que estabelece que esta emite parecer sobre instrumentos tarifários relacionados com obrigações de serviço público, com o objetivo de verificar a conformidade de medidas que implicam compensações, à luz da legislação europeia e nacional, quanto a compensações de serviço público.
A AMT esclarece ainda que “na presente data não foi ainda solicitado parecer à AMT quanto à intenção de criação de um novo passe ferroviário.”