Na Rua António Maria Cardoso, no Chiado, há uma placa junto a um condomínio de luxo. Inaugurada em 1980 por uma iniciativa de cidadãos lisboetas anónimos, nela se leem os nomes de quatro homens. Acima destes nomes, uma inscrição: “Aqui, na tarde de 25 de Abril de 1974, a PIDE abriu fogo sobre o povo de Lisboa e matou”.
O episódio tem ficado sistematicamente de fora da memória histórica e das reconstituições do que aconteceu no dia do golpe, os acontecimentos junto à antiga sede da PIDE parecem progressivamente esquecidos e os mortos do 25 de Abril, salvo raras homenagens (a placa acima referida é uma delas) e raríssimos trabalhos de investigação, permanecem desconhecidos de grande parte dos portugueses.
No entanto, nos 50 anos de Abril, a história parece estar a mudar. Do cinema à televisão, passando por memoriais permanentes às vítimas, os nomes são agora lembrados em diferentes momentos e de formas distintas. No cinema, pela mão de Rui Pedro Sousa, cuja primeira longa-metragem, Revolução (Sem) Sangue, se estreou nas salas nacionais há poucos dias; já na televisão, a RTP1 prepara-se para exibir Cravos Mas Não Só, um documentário centrado no tema, devolvendo o protagonismo a João Arruda, Fernando Giesteira, José Barneto, Fernando dos Reis e António Lage (este último não um civil, mas um funcionário da PIDE), as vítimas da queda do regime.
[o trailer de “Revolução Sem Sangue”:]
Diz-nos o realizador, ao explicar como começou este filme: “Sou um apaixonado por história e quando estava a pesquisar no Google por curiosidades sobre a história de Portugal, deparei-me com uma notícia de jornal e pela primeira vez, em 2021, fico a saber que no dia 25 de Abril morreram cinco pessoas na Rua António Maria Cardoso” revelou o cineasta de 38 anos. “Na escola nunca me ensinaram esta parte, os políticos todos os anos quando celebram o 25 de Abril não falam nestas pessoas… o que é que se passa aqui? Foi quando resolvi que esta história precisava de ser contada no cinema”.
Mas se ao mesmo tempo a memória histórica já não é o que era, por outro lado não está assim tão longe que não seja ainda lembrada por alguns. O Observador falou com duas testemunhas que estiveram António Maria Cardoso e presenciaram o momento dos disparos da polícia política sobre a população, testemunhas que fazem parte do novo documentário da RTP. Uma delas, o cantor e imitador Fernando Pereira, chegou mesmo a ser detido pela PIDE, acabando libertado já no dia 26: “Foi à última hora, mas ainda ganhei as minhas credenciais de anti-fascista”, relembra com humor.
A camaradagem popular e uma tragédia que ficou esquecida
“A minha mãe ligava o rádio assim que se levantava, e ouviu o que se estava a passar antes de nos acordar. Dizia-me ‘não saias, não saias’. Mas eu tinha 19 anos, claro que saí”. Carlos Domingos, hoje com 69 anos, recorda-se bem da emoção que sentiu e do clima de mudança que cada vez mais se manifestava entre a sua geração. Quando a revolução saiu à rua, o então jovem universitário saiu com ela. “Fui mais cedo para as aulas, por assim dizer. Estive no Carmo desde as oito da manhã e vi tudo. A chegada dos primeiros carros de combate, os que depois se foram juntando ao movimento. (…) Estavam umas centenas de pessoas nas arcadas, e chegava cada vez mais gente”.
Na sua memória ficaram os gritos, as palavras de ordem e a camaradagem de uma revolução que, dos militares ao povo nas ruas, foi impulsionada pelo desejo de um novo futuro para os jovens. “Não nos podemos esquecer que aquilo foi um movimento corporativo, que tinha a ver com questões internas dos militares e com o fim da guerra. Porque toda a gente sabia que, assim que fizesse os 18, 19, 20 anos, ia lá bater com os costados”, sublinha.
Mais novo, Fernando Pereira tinha apenas 15 anos, mas também foi para a rua em apoio aos militares. “Fui com alguns colegas da escola para o centro da cidade, fomos para o Terreiro do Paço. Tínhamos algum dinheiro, nós e outras pessoas que ali estavam connosco, e gastámos tudo a comprar sandes para os militares na Baixa que, coitados, estavam cheios de fome”, conta o artista.
Apesar dos avisos prévios veiculados nos meios de comunicação pelo Movimento das Forças Armadas, as massas cedo tomaram conta das ruas, numa demonstração de apoio ao golpe e à promessa de liberdade. Ao mesmo tempo, alheios aos planos e movimentações do MFA, a população tentava como podia recolher mais informações sobre o desenrolar dos acontecimentos.
“Lembro-me que eles estavam a ouvir pela rádio Marconi, a controlar e a garantir que as forças governamentais não chamavam reforços”, explica Carlos Domingos, ao mesmo tempo que relembra a proximidade criada com os militares. “Sentávamo-nos no chão, lado a lado, criou-se uma empatia. Houve um recruta que veio da Guarda e estava ali ao meu lado. A certa altura abriu a culatra da G3, mostrou-ma e disse: “Estás a ver isto? Eu nem balas tenho!”, recorda.
Já na sede da PIDE, a história era outra e os contornos de uma tragédia começavam a desenhar-se. “Estávamos no Carmo há horas sem nada para fazer. A certa altura alguém, não cheguei a saber quem, pegou num megafone e disse: ‘Vamos para a PIDE, eles estão lá sozinhos!’. E nós fomos”.
Perante uma multidão cada vez maior de pessoas que cercavam o edifício na Rua António Maria Cardoso, membros da polícia política dispararam sobre a população. “Ainda me arrepio quando me lembro… Era uma Uzi, uma daquelas metralhadoras israelitas pequenas, com os carregadores grandes. Mandou uma saraivada de tiros cá para baixo”, recorda Carlos que, como várias centenas de pessoas que ali se encontravam, sai do local a correr. “Nunca corri tanto na minha vida. Só soube dos mortos depois, nem sei quando, talvez no dia a seguir no jornal.”
Arruda, Barneto, Giesteira e Reis foram as vítimas mortais desses disparos. António Lage, o funcionário da PIDE, morreu mais tarde – depois de se render aos militares que cercavam o edifício tentou fugir, acabando abatido (o seu nome não consta na placa de homenagem colocada na António Maria Cardoso).
Os tiroteios que se registaram (três no total) provocaram ainda vários feridos. Fernando Pereira foi um deles, tendo sido baleado no braço direito. “Fui logo socorrido no local pelos militares junto ao Teatro São Carlos. Depois a PSP levou-me para o hospital de São José, onde me retiraram a bala do braço”. No mesmo dia, quando se preparava para voltar para casa, acabou detido à porta do hospital pela PIDE. “Tive direito ao tratamento completo: despiram-me, revistaram-me, fizeram-me a ficha completa, e depois ainda fui submetido a interrogatório e espancado durante mais de uma hora”. Por esta altura, a rendição de Marcello Caetano no Largo do Carmo já acontecera. Ainda assim, Fernando ficou detido durante toda a noite, saindo apenas na manhã de dia 26, já em pleno Portugal livre.
Do grande ao pequeno ecrã, uma reparação histórica
Cinquenta anos depois, o mito da história foi-se sobrepondo aos factos que ocorreram naquela rua. As comemorações oficiais raras vezes fizeram menção aos mortos na António Maria Cardoso e a Revolução, uma das mais pacíficas da história ocidental, tornou-se “sem sangue” por força das narrativas que o tempo foi tecendo.
Mesmo as poucas tentativas de homenagear os mortos foram encontrando resistência. A tal placa erguida em 1980 incluía informações erradas — João Arruda passou a José Arruda, e o apelido de Fernando Giesteira continha um erro. Após a venda do edifício, o condomínio privado que substituiu a antiga sede da PIDE retirou a placa, que só foi recolocada anos mais tarde (mantendo os erros referidos).
“É um pouco aquela coisa dos vencedores escreverem a história”, explica Pedro Vieira, apresentador do programa O Último Apaga a Luz, da RTP3, e o responsável pelo documentário que a televisão pública emite no dia 27 de abril sobre o tema. “Na altura foi muito propagandeada a ideia da revolução sem sangue, que é maioritariamente verdade. Mas foi preciso acelerar em direção ao futuro e deixar este episódio mais desagradável de fora da história.”
Esse desejo de reparação histórica esteve na base da longa-metragem escrita e realizada por Rui Pedro Sousa. “Não vivi o 25 de Abril, sabia o que me contaram ou o que ia lendo, de como era a vida antes e depois. Tanto eu como a Ana Rodriguez, que escreveu o argumento comigo, sabíamos muito pouco sobre os eventos concretos do dia em si.”
A partir do do livro Esquecidos em Abril, do jornalista Fábio Monteiro (um dos poucos trabalhos de fundo dedicados ao tema), e com a ajuda de investigadores e historiadores, a intenção passou por recriar com a maior fidelidade possível os passos dados pelos protagonistas do filme, todos eles membros da população civil.
“Se pensarmos no Capitães de Abril, da Maria de Medeiros, mostra como os militares saíram à rua e acompanha os responsáveis pela Revolução; o nosso filme mostra uma perspetiva totalmente diferente, que é a perspetiva do povo que, alheio ao que estava a acontecer, sabe que há uma revolução na rua e sai à rua em apoio. E em particular, contar a história a partir do ponto de vista dos cinco que perderam a vida na revolução” explica o cineasta.
O realizador enalteceu o papel dos familiares das vítimas na recolha de informação que permitiu recriar com grande verosimilhança. “No caso do João Arruda, por exemplo, utilizámos os espaços reais onde ele esteve. Desde o quarto do dormitório onde ele ficava, que ainda existe, à sala de aula da faculdade onde ele estudava Filosofia. — muito do que está ligado a eles é quase sempre real”, diz o cineasta que, ainda que tomando as liberdades criativas necessárias a qualquer obra de ficção, faz questão de sublinhar que “quase tudo o que está diretamente relacionado com [as vítimas] é real”.
O esforço de trazer a público esta história não se tem ficado pelo grande e pequeno ecrã. Além do documentário, Pedro Vieira liderou ainda um esforço para restaurar e corrigir a placa, que chegou a ser retirada da António Maria Cardoso. “O prédio acabou vendido e o condomínio privado depois tirou a placa. Voltou a ser colocada, mas foram sempre homenagens muito circunscritas “, lamenta, ele que acabou por lançar uma petição nas redes sociais, que recolheu mais de mil assinaturas, procurando devolver as vítimas à história de forma mais permanente. “Conseguimos que a placa tivesse os nomes emendados finalmente. Também há agora um código QR para o Museu do Aljube, com biografias dos quatro mortos.”
Ainda é cedo para aferir se estas iniciativas terão um impacto definitivo. Mas Pedro Vieira crê que qualquer ação que venha acrescentar alguma coisa é, por si só, positiva. “Mesmo que o impacto seja mínimo, vai existir. Aliás, já existe. O que existia antes era nada e agora há pessoas que tomaram consciência desse episódio. Isso já faz diferença”, defende.