Foi durante anos um aliado fiel de Vladimir Putin, mas o protagonismo que conseguiu com a penosa e sangrenta batalha por Bakhmut, e o ódio que foi acumulando ao comando militar russo, fizeram-no mudar de estratégia. Nos últimos meses, Prigozhin passou de braço direito do líder russo a rival político, somando críticas ferozes à estratégia seguida pelo Ministério da Defesa russo e à respetiva cúpula.

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Criticou-os por não fornecerem equipamento de combate suficiente ao grupo paramilitar Wagner — que criou em 2014 mas que nunca assumiu como o braço armado do regime russo —, atacou-os pela estratégia seguida na Ucrânia e refutou a tese das enormes perdas ucranianas reivindicadas pela Rússia.

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Dias antes da tentativa de insurreição na Rússia, chegou a dizer: “Bocados enormes do território foram entregues de mão beijada ao inimigo, [e] tudo isto está a ser totalmente escondido de toda a gente”. Depois da rebelião, reuniu-se com Vladimir Putin “durante três horas” no Kremlin e seguiu alegadamente para um exílio na Bielorrússia, mas Lukashenko chegou a dizer que estava “livre” em São Petersburgo. Apareceu pela última vez em África, num país indefinido, e morreu esta quarta-feira quando o avião em que seguia se despenhou na localidade russa de Kuzhenkino.

Um ódio crescente ao comando militar russo

O ambiente tenso já vinha de trás. Meses antes da tentativa de “rebelião armada”, Prigozhin foi, paulatinamente, desdobrando-se em críticas e insultos contra os líderes do comando militar russo: em concreto, contra o Ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, e o comandante das tropas russas, Valery Gerasimov. Estes dois protagonistas — que o próprio chegou a caracterizar como “incompetentes” — eram, para o líder da milícia, os grandes responsáveis pelos insucessos militares de Moscovo na Ucrânia.

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As críticas foram subindo de tom numa altura em que o grupo Wagner — e Prigozhin, em particular — ganhavam protagonismo, muito por via das redes sociais onde o líder da milícia paramilitar partilhava as atualizações na frente de batalha e foi ganhando uma base de apoio numerosa (a forma efusiva como apoiantes acompanharam a sua retirada, e do grupo, de Rostov-on-Don, na Rússia, após a insurreição, reflete essa popularidade crescente).

Os ganhos de protagonismo cresceram com a dura e sangrenta batalha por Bakhmut, à qual o grupo Wagner se juntou, ao lado do exército russo, no final de 2022. No início de 2023, já era visível pelos analistas que Prigozhin tentava “aumentar a sua influência e o seu estatuto dentro do círculo restrito de Putin”. Foi isso que apontou ao Observador, em janeiro, DmitryGorenburg, especialista na área da política russa no David Center, que pertence à Universidade de Harvard.

Chegou a dizer-se que Prigozhin queria suceder a Vladimir Putin, ou que pelo menos pretendia ocupar o cargo de ministro da Defesa (o que ajudaria a explicar as divergências com Sergei Shoigu). Mas, em janeiro, a nomeação de Valery Gerasimov, aliado de Sergei Shoigu, como comandante das tropas russas esvaziou-lhe as aspirações políticas. A partir daí, as críticas foram-se tornando mais fortes. Em fevereiro de 2023, acusou Sergei Shoigu e Valery Gerasimov de traição, por estarem a impedir a chegada de munições e mantimentos aos combatentes do grupo Wagner, com o intuito de destruir a formação paramilitar.

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A batalha por Bakhmut e os ganhos de protagonismo

Em Bakhmut, com o passar dos meses, e com a ajuda do grupo Wagner, a Rússia foi ganhando influência e poder nos primeiros meses de 2023. Mas mantinha-se uma rivalidade entre os paramilitares e a cúpula da Defesa russa. Em abril, Prigozhin voltou ao ataque: acusou novamente o Ministério da Defesa russo de não fornecer equipamentos de combate suficientes aos mercenários e ameaçou sair de Bakhmut se a situação não fosse resolvida. Shoigu terá cedido, pelo menos a crer pela descida do tom das críticas nos dias seguintes.

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Quinze dias depois, Prigozhin anunciou que Bakhmut fora conquistada pelo grupo Wagner (as tropas ucranianas começaram por desmentir, mas depois reconheceram que perderam a cidade) e que abandonaria a localidade nos dias seguintes. As forças russas ficariam, assim, sozinhas a defender a localidade.

A 20 de maio, colocou um prazo a esse objetivo: “Até 25 de maio, vamos inspecioná-la [Bakhmut] completamente, criar as linhas de defesa necessárias e entregá-las aos militares para que possam continuar o trabalho“, revelou. O Kremlin e Putin ainda tentaram a integração da milícia nas forças russas, mas sem sucesso. Esse era um cenário em que Prigozhin não queria nem pensar.

Nas semanas seguintes à retirada de Bakhmut, Yevgeny Prigozhin escolheu não ficar em silêncio e manteve o tom – e a periodicidade – das críticas. O líder do grupo Wagner criticou o facto de as tropas russas terem deixado de controlar algumas zonas da cidade onde combateu durante meses e também abordou a contraofensiva ucraniana, considerando que os balanços e anúncios oficiais de alegadas enormes perdas inimigas que a Rússia reivindicava não passavam de “fantasias”.

Já em junho, Prigozhin desmentiu os supostos sucessos russos na hora de suster a contraofensiva da Ucrânia. “Bocados enormes do território foram entregues de mão beijada ao inimigo, tudo isto está a ser totalmente escondido de toda a gente. Um dia, a Rússia vai acordar e descobrir que a Crimeia também foi entregue à Ucrânia”, atirou o líder mercenário.

A rebelião que ficou a 200 quilómetros de Moscovo

Na manhã de 23 de junho, horas antes de colocar em marcha uma insurreição que se tornou um dos pontos-chave de toda a guerra, Yevgeny Prigozhin partilhou um vídeo onde discursava durante 30 minutos sobre a situação em que o conflito se encontrava. Sem nunca culpabilizar diretamente Vladimir Putin, o líder do grupo Wagner acusou o Ministério da Defesa russo de “mentir” à população e reforçou que a guerra não começou devido a uma ameaça de invasão da Ucrânia e da NATO, mas sim “para que um grupo de canalhas triunfassem e mostrassem a força do seu exército, para que [Sergei] Shoigu subisse a marechal”.

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Adicionalmente, o líder mercenário atirava ainda aos oligarcas russos, que apelidava de “clã que hoje praticamente governa a Rússia”. De acordo com Prigozhin, a elite financeira do país tinha um interesse claro no conflito e pretendia expulsar o governo de Volodymyr Zelensky e conduzir ao poder o político pró-Rússia Viktor Medvedchuk. Por fim, indicava que a situação na frente de combate era de “total desnorte” russo, garantindo que quando o grupo Wagner chegou à Ucrânia “já era impossível falar sobre vitória” e que a falta de meios no terreno era evidente. “Não havia gestão, havia histerismo, uma confusão no armamento, uma confusão em todo o lado… Era o caos total”, terminava.

Já depois de defender que a Rússia teria de “parar de mentir” para conseguir vencer a guerra, Yevgeny Prigozhin recorreu novamente ao Telegram para atacar diretamente o ministro da Defesa e o chefe do Estado-Maior russos, referindo que Sergei Shoigu e Valery Gerasimov são responsáveis “pelo genocídio do povo russo, o assassinato e dezenas de milhares de cidadãos russos e a transferência de território russo para o inimigo”, acrescentando que teriam de ser “responsabilizados” pelos seus crimes.

Pouco depois das 19h (hora portuguesa) do dia 23 de junho, a tensão latente entre o grupo Wagner e a liderança militar russa escalou até um ponto de não retorno. Prigozhin acusou o Ministério da Defesa de ordenar um bombardeamento contra a própria milícia paramilitar. “Realizaram ataques, ataques com mísseis, na retaguarda dos nossos acampamentos. Um número muito grande dos nossos combatentes foi morto”, garantiu, assegurando que a retaliação estava a ser preparada e não tardaria.

Ainda antes das 19h30, o Conselho dos Comandantes Wagner declarou oficialmente uma insurreição contra o poder militar do Ministério da Defesa, prometendo “restaurar a justiça, primeiro no exército e depois no país”, e deixando bem claro que os alvos eram Shoigu, Gerasimov e o próprio Ministério da Defesa. Ou seja, deixava de fora tanto Vladimir Putin como o restante governo russo, assim como outras instituições do país, sublinhando que a resposta seria não um golpe militar, mas sim uma “marcha pela justiça”.

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O poder militar russo apressou-se a negar a responsabilidade por qualquer ataque contra os Wagner, descrevendo a acusação como uma “provocação” de Prigozhin. Ao longo da hora seguinte, o líder mercenário partilhou várias atualizações através do próprio serviço de comunicação e garantiu ter à sua disposição um exército de 25 mil homens, bem como o apoio de vários elementos no exército e na Guarda Nacional. As atualizações, porém, não se prolongaram – e o líder mercenário só voltaria a ouvir-se já ao final da noite.

Do lado do regime, a resposta oficial tardou. Só por volta das 21h em Portugal Continental é que o Kremlin, através do porta-voz Dmitry Peskov, indicou que Vladimir Putin tinha sido informado sobre os “eventos em torno de Prigozhin”. Minutos depois, surgiu a confirmação definitiva da cisão: o Serviço Federal de Segurança russo [FSB] anunciou a abertura de um processo contra Prigozhin por “rebelião armada”, descrevendo as ações do líder mercenário como um incentivo ao início de uma guerra civil e apelando à sua captura. Como consequência, a Procuradoria-Geral da Rússia saudou a decisão e lembrou que o crime de rebelião armada implica uma pena de prisão entre os 12 e os 20 anos.

Já perto das 23h e com a caravana militar do grupo Wagner em parte incerta, a BBC russa indicou que o departamento do FSB em Moscovo estava em alerta máximo. Os escritórios da milícia paramilitar foram revistados, as estradas foram cortadas e as tropas receberam luz verde para abrir fogo “em caso de ameaça”. Ao mesmo tempo, foram sendo partilhadas imagens nas redes sociais onde era possível ver uma forte presença militar e veículos do exército nas ruas de Rostov – para onde, ao que tudo indica, os mercenários se estavam a dirigir.

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Por esta altura, e depois de horas em silêncio, Yevgeny Prigozhin voltou a falar para ignorar os apelos russos, pedindo à Guarda Nacional que se juntasse à insurreição sob ameaça de “consequências”. Novamente no Telegram, assinalou que tinha uma “oferta que é melhor não ser recusada” e lembrou que “obedecer a ordens criminais e tentar interferir com a campanha planeada da justiça vai correr mal”.

O Ministério da Defesa russo só reagiu aos acontecimentos já ao início da madrugada do dia seguinte, acusando a Ucrânia de se “aproveitar da provocação de Prigozhin para desorganizar a situação” em Bakhmut. Por volta da meia-noite em Portugal, 2h em Moscovo, Yevgeny Prigozhin anunciou que a comitiva de mercenários tinha ultrapassado a fronteira e estava já em Rostov, frente a frente com as forças do exército russo.

A reunião com Putin no Kremlin e a última aparição em África

O grupo Wagner tomou Rostov, mas ficou a 200 quilómetros de Moscovo, acabando por terminar a “marcha pela justiça” com o apoio da mediação de Alexander Lukashenko, presidente da Bielorrússia. Durante dias, achou-se que Prigozhin estava numa espécie de exílio em território bielorrusso – no início de julho, porém, Lukashenko garantiu que o líder mercenário estava em São Petersburgo, era “absolutamente livre” e que Putin não iria matá-lo. Já no dia 10 de julho, o Kremlin confirmou que Prigozhin e Putin se encontraram apenas cinco dias depois da insurreição em Moscovo, numa reunião que durou “quase três horas” e onde o líder russo ouviu as explicações do mercenário.

“Os comandantes enfatizaram que são defensores acérrimos e soldados do Chefe de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas e disseram também que estão prontos para continuar a lutar pela pátria”, referiu na altura o porta-voz Dmitry Peskov. Já no início de julho e através do Telegram, Prigozhin indicou aos seus mercenários que se preparassem para “uma nova aventura em África” e comentou o golpe militar que ocorreu no Níger.

Em África e de espingarda na mão: a última vez que Prigozhin apareceu nas redes sociais

Com Prigozhin aparentemente em parte incerta, a comunicação social russa e o próprio Kremlin iniciaram uma campanha contra o líder mercenário e publicaram várias fotografias da própria casa do russo, incluindo imagens de perucas, barras de ouro, um autêntico arsenal de armas e um martelo pneumático. A última aparição de Prigozhin foi registada esta segunda-feira – sendo também a primeira desde a rebelião –, com o líder do Grupo Wagner a surgir num vídeo publicado no Telegram.

Equipado com uma espingarda, o líder do Grupo Wagner aparece num cenário inóspito que parece uma savana, apenas com um carro e soldados por trás. O mercenário garantiu estar em África, ainda que nunca tenha precisado em que país. “Estão mais de 50 graus. Estamos a trabalhar”, atirou, referindo que a milícia paramilitar estava a implementar um programa para que a Rússia “se torne ainda mais poderosa em todos os continentes”. “Justiça e felicidade aos povos africanos”, declarou, acrescentando que os Wagner estavam a aterrorizar a al-Qaeda, o Daesh e “outros terroristas” no continente africano.