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Seja a paixão pela terra, o desejo de encontrar um novo lar, por uma questão de dividendos ou pelo impulso de preservar, a Comporta é o postal português sobre o qual recaem todas as atenções. A beleza natural praticamente intocada, a proximidade do mar e a pequena escala dos núcleos urbanos atraem centenas de visitantes. Percebemos que se encantem pela Comporta, marca que já deixou de ser apenas uma vila para abarcar uma linha de costa com mais de 40 quilómetros.
A arte, a natureza e a arquitetura são atributos inegáveis. Mas o crescimento repentino gera reticências — o défice de infraestruturas, a sazonalidade, o desequilíbrio dos ecossistemas naturais e a aculturação são ameaças que pairam sobre a região, que recebe, por estes dias, uma vaga de investimentos privados sem precedentes. Como estará a Comporta daqui a dez, 15, 20 anos? Menos verde? Mais povoada? Mais rica? Mais moderna? Parecida com o Algarve? Falando com arquitetos, investidores, autarcas, empreendedores, ambientalistas e pioneiros, fomos tentar traçar o futuro deste paraíso português.
Um arquiteto no arrozal: à descoberta da Quinta da Comporta
Há 12 anos, Miguel Câncio Martins fazia os primeiros esboços daquele que seria o seu grande projeto de vida. Um hotel, cujo conceito se fundiu, desde o primeiro traço, com a paisagem e a tradição da Comporta. Ao arquiteto não falta mundo, afinal é ele quem assina projetos tão marcantes como a discoteca Pacha, em Marraquexe, e o Buddha Bar, em Paris. Ainda assim, há sonhos que exigem territórios específicos e o de erguer a Quinta da Comporta debruçada sobre um arrozal não deixou alternativas senão esperar pela oportunidade certa para se fixar numa região que lhe é querida. “Há muito tempo que a Comporta ocupa um lugar no meu coração. Tinha 11 e 12 anos quando vinha para cá, mas não havia onde ficar nessa altura”, recorda o arquiteto, à conversa com o Observador.
Fez carreira lá fora. Da Ásia à América do Norte, do continente africano às grandes capitais europeias, durante anos, Portugal passou ao lado de um dos seus talentos mais internacionais. Em 2015, regressou e a Comporta que tinha conhecido já era outra. Abriu um atelier em Lisboa, tirou o velho projeto da gaveta e repensou-o à luz da conceção inicial. “O mal de uns foi o bem de outros”, resume de forma pragmática, ao referir-se à falência do Grupo Espírito Santo. As portas ao investimento estavam abertas. “O timing foi perfeito. Durante estes anos todos, a fazer hotéis e restaurantes, foi como se tivesse estado a treinar. Além disso, sempre disse que aquele sítio era perfeito para fazer um hotel”, revela o arquiteto, que já tinha tido um dedo no projeto de um outro hotel da região, o Sublime.
Onde ficar
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Cabanas no Rio Carrasqueira
Casas da Comporta Comporta
Casas na Areia Carrasqueira
Cocoon Eco Design Lodges Muda
Comporta Villas & Suites Brejos da Carregueira de Cima
Herdade das Barradas da Serra Grândola
Herdade do Brejo da Amada Muda
Nômade Auberge Melides
Sublime Muda
O terreno, pouco estimado, servia para albergar as máquinas agrícolas usadas no arrozal. A parcela cultivada ficou e é agora o grande cartão-de-visita do hotel. As portas abriram em março e, pouco tempo depois, já grande parte da área do resort estava coberta de uma fina areia branca. A luz do dia é, por isso, refratada e amplamente difundida pelo casario. A arquitetura segue o que a Comporta tem de mais típico. Afinal, já estamos no Alentejo e as paredes brancas e de espessura generosa, para melhor reter o fresco no verão e o calor no inverno, foram uma espécie de norma seguida pelo arquiteto. Do vasto campo adjacente, por esta altura do ano pintado de um verde amarelado, a cultura do arroz inspira todo o projeto, pelo menos, foi o que sempre fez sentido para Miguel Câncio Martins. “Guardei o espírito do que cá estava, a começar pela disposição dos armazéns. As pessoas que trabalhavam no arroz dormiam aqui, depois, os edifícios também serviam para armazenar as colheitas”, explica.
A caminho da piscina, pisamos a antiga eira. Danificada pela maquinaria pesada, mereceu uma atenção especial por parte da equipa de conservação. Tal como ela, o velho laranjal. Algumas árvores foram replantadas, outras estavam irremediavelmente maltratadas. As estruturas do restaurante e do spa destacam-se na paisagem. Adicionar corpos estranhos a um projeto harmonioso como a Quinta da Comporta tem os seus riscos. O arquiteto, fruto da experiência e da afinidade com a região, contornou-os bem. Os dois celeiros em pinho vieram diretamente do Canadá para serem montados aqui, na aldeia do Carvalhal, em substituição das antigas granjas. No primeiro, os candeeiros vindos de Bali quase se fundem no castanho das traves. À noite, tal como os sapos que coaxam no arrozal, ganham vida.
Dúvidas houvesse, o arroz é o ingrediente rei. Na cozinha, os bagos usados crescem no campo em frente e são explorados de formas inesperadas. Exemplos? O arroz negro de coco e cebolinho jovem e o arroz-doce de coco e lima, versão bem mais fresca e exótica do que a receita tradicional e sobremesa estrela deste restaurante, que está aberto também para receber quem não está hospedado no resort. Ao pequeno-almoço, um refresco surpreendente: água de arroz-doce. Pouco doce, a bebida turva é uma leve sensação de ter a dita sobremesa em estado líquido a escorregar pela garganta. Sempre que possível, os produtos são fornecidos por vizinhos. Falamos de produtores locais de fruta, sobretudo de pêssegos e maçãs, que, no limite, viajam de Palmela até aqui. O peixe fresco da Carrasqueira e a salicórnia, que cresce abundantemente por estas bandas, são presenças indispensáveis na bancada do chef João Sousa.
Do outro lado, no spa, o produto da terra volta a assumir protagonismo. Do poder esfoliante do bago cru às propriedades do arroz aplicadas à cosmética, a experiência começa logo à entrada com a apresentação do bar de óleos essenciais. O aroma e consequente efeito é adequado ao estado físico e emocional de cada um. Oryza Lab é a segunda grande aventura de Miguel Câncio Martins em torno do arroz. “Sempre quis um hotel independente. As pessoas vêm para cá precisamente para fugir ao mundo das marcas. Nos anos 60, Saint Tropez era mais ou menos o que a Comporta é hoje. Mykonos também já foi assim. Hoje, encontramos sempre as mesmas coisas — Chanel, Louis Vuitton, Christian Dior”, desabafa o arquiteto. Nos quartos, os chamados amenities foram o primeiro teste da marca que tem lançamento marcado para o próximo ano. “Queria fazer a minha própria história e tinha os arrozais mesmo ali à minha frente”, continua. “Fiz uma pesquisa e percebi que ainda ninguém tinha feito nada à volta do arroz, um bocado como a Caudalie fez com as uvas. Andamos há mais de um ano a testar fórmulas, todas elas naturais. Em março, logo se vê se a marca fica pelo hotel ou se entramos no mercado”, conclui.
Mas há ainda muito a fazer dentro da Quinta da Comporta. Prestes a ser concluída está uma estrutura de madeira, também ela voltada para o arrozal, destinada à prática de yoga e meditação. Os planos incluem também uma zona de cultivo projetada para servir o restaurante, sobretudo no que toca a ervas aromáticas, uma expansão do wellness center, de forma a incluir mais atividades terapêuticas, e a criação de um lounge com dezenas de chás e efusões prontos a serem degustados. Se juntarmos isto à variedade de programas fora do resort — cavalos, barcos, bicicletas, enoturismo, birdwatching ou uma simples caminhada de 45 minutos até à praia — encontramos um esforço para combater a sazonalidade. Atualmente, é esse o grande desafio da região, a par da preservação dos ecossistemas naturais. O combate ao desperdício dentro da cozinha, os 700 m2 de painéis solares e o armazenamento da água das chuvas para a rega foram algumas das opções feitas para minimizar o impacto do hotel.
A história começa aqui, mas Miguel quer dar-lhe novos capítulos e noutras paragens. A Quinta da Comporta poderá ser o primeiro hotel de uma cadeia internacional que levará o arquiteto a contornar o Mediterrâneo. Até lá e sempre que está em Portugal, as idas ao Carvalhal são praticamente diárias. “Na Comporta, não vai faltar trabalho nos próximos 15 anos”, antecipa. No total, são 65 unidades de alojamento, entre villas, suites e diferentes tipologias de quartos. À entrada do Carvalhal, o complexo é praticamente impercetível. Construi-lo aqui serve de pretexto para o estreitar dos laços entre o hotel e a comunidade. Ou melhor, entre o arquiteto e a comunidade — talvez o terceiro grande pilar para um desenvolvimento sustentável da região. Não falamos apenas dos 90 postos de trabalho que a Quinta da Comporta veio criar, nem dos 200 homens que, durante dois anos, trabalharam diariamente na sua construção. Enquanto, no atelier, projeta um novo hotel numa ilha fortaleza em Montenegro, um segundo no Porto e um terceiro em Lisboa, desenha também uma igreja para a aldeia que o soube receber, bem como um novo projeto para o Centro Desportivo do Carvalhal. “O que está à nossa volta tem de se desenvolver convosco”.
Paisagem em transformação: da natureza virgem da Muda ao charme de Louboutin em Melides
Com a vila da Comporta para trás das costas e Melides no horizonte, chegamos à Aldeia da Muda. De um lado da estrada, a dita localidade, com, no máximo, 40 habitantes. Do outro, uma extensão de terra que se prepara para receber um dos projetos mais ambiciosos da região, a Muda Reserve. As primeiras máquinas já laboram. Como se de uma vila se tratasse, o empreendimento terá um núcleo com igreja, equipamentos desportivos, um parque para crianças, zonas verdes e estabelecimentos comerciais. Os quarteirões circundantes serão ocupados por casas e villas, num projeto arquitetónico da Saraiva + Associados, que, neste momento, está a sofrer algumas alterações. A partir daí, cresce a escala das parcelas de terreno. São 50, com áreas que variam entre os quatro e os seis hectares, quintas onde cada proprietário poderá construir a seu bel-prazer, sem ultrapassar os 500 m2 e sujeite ao Plano Diretor Municipal. Alguns lotes já foram vendidos e as primeiras moradias deverão estar prontos dentro de um ano e meio.
O projeto é da Vanguard Properties, de Claude Berda. O empresário francês encabeça a lista de novos proprietários da região. A empresa fala em 350 milhões de euros de investimento nos primeiros três anos e num bilião e meio em dez anos. A grande fatia destina-se à Herdade da Comporta, negócio consumado em abril deste ano. O consórcio, onde 88% do capital pertence à Vanguard e o restante a Paula Amorim, comprou duas áreas distintas por 158,2 milhões de euros. “Este projeto é o futuro da Comporta”, assinala José Cardoso Botelho, diretor da Vanguarda Properties em Portugal, ao mesmo tempo que garante ser este o maior investimento privado esperado em Portugal nos próximos anos. Para o Comporta Dunes, 550 hectares na zona do Pego, estão projetados três hotéis, um condomínio turístico e áreas para residências, um campo de golfe e um projeto de Eduardo Souto de Moura. No caso da Comporta Links, 350 hectares situados no concelho de Alcácer do Sal, há mais um empreendimento hoteleiro, um outro residencial e outro campo de golfe, que ficará mesmo ao lado do restaurante Dona Bia.
Os investimentos seguem a todo o vapor. Pelas mãos do Grupo Amorim, nascerá o JNcQUOI Comporta, sobre o qual a empresa ainda não quer revelar detalhes. No Carvalhal, o empreendimento La Réserve, com 56 apartamentos turísticos, 82 casas e 24 villas, tudo a três quilómetros da praia, tem abertura prevista para o próximo ano. Pela mesma altura, deverá abrir o hotel de charme de Christian Louboutin em Melides. Sandra Ortega, herdeira do Grupo Inditex, tem planos para Troia, depois de ter adquirido ativos imobiliários à Sonae Capital por 50 milhões de euros. Na mesma zona já está o grupo francês Lagune, que terá comprado parcelas no Troia Resort por 20 milhões. Será essa a área explorada pelo Club Med, que prevê a construção de um resort de luxo, um investimento que rondará os 100 milhões e que deverá atingir o limite máximo da capacidade hoteleira permitida naqueles 101 hectares: 600 camas.
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Alaire Comporta
Barracuda Carvalhal
Coral Comporta
Fio d’Água Comporta
Lavanda Comporta
Rice Comporta
Stork Club Comporta
Velharias Júlio Luís Maria Carvalhal
Vintage Department Comporta
A empreitada não fica por aqui. O Costa Terra, projeto concebido há mais de dez anos para os 200 hectares situados na freguesia de Melides, voltou a mudar de mãos. Nunca saiu do papel, mesmo depois de ter sido adquirido pelo empresário português Pedro Queiroz Pereira a um investidor suíço, 2008. Agora, está nas mãos dos norte-americanos da Discovery Land Company que o redesenharam. Era suposto dar lugar a três hotéis, quatro aldeamentos turísticos, 204 moradias e um campo de golfe, representando então um investimento de mais de 500 milhões de euros. Ao que parece o número de moradias foi, entretanto, reduzido.
“Vários europeus comparam a Comporta aos Hamptons”, refere José Cardoso Botelho. Diz que a empresa faz planos de ir além do puro investimento imobiliário. As carências quanto a infraestruturas são reais e a Vanguard responde projetando um recinto de espetáculos ao ar livre, o prolongamento de ciclovias (nove dos 12 quilómetros previstos já estão feitos), ETAR de última geração, uma rede de veículos elétricos e ainda uma unidade de cuidados de saúde primários. Quanto a propostas culturais e artísticas, foi criada a associação Comporta Futuro, presidida por Guta Moura Guedes. Atrair autores e agentes dinamizadores para a região, sempre em proximidade com a comunidade, faz parte da estratégia neste campo.
“Há uma elite norte-americana, do norte da Europa e, mais recentemente, do Brasil que está a descobrir a Comporta. Enquanto isso, a zona de Melides está a atrair cada vez mais clientela internacional. A Muda, por exemplo, é uma zona onde gente muito conhecida tem casa, mas não se vê nada da via pública”, explica o diretor da Vanguard. Quem chega, aprecia cada vez mais o tranquilidade do campo em detrimento de uma vista desafogada sobre o mar. Longe dos olhares, residências projetadas por arquitetos de renome escondem-se no meio dos pinhais. É um paraíso de serenidade e discrição, para muitos, o derradeiro sinónimo de luxo.
“Começa a não haver muitas coisas destas na Europa e no mundo”, afirma António Figueira Mendes, presidente da Câmara Municipal de Grândola. O município abarca as freguesias de Melides e do Carvalhal (a que mais atenções tem atraído), que, por contágio, se tornaram em epicentros de desenvolvimento económico. Feitas as contas, nos últimos dois anos, o investimento privado anda entre os 70 e os 80 milhões de euros, uma pequena amostra se compararmos com os 500 milhões que o autarca projeta para os próximos quatro anos. Ao mesmo tempo, desemprego no concelho tornou-se uma realidade distante. Hoje, é uma realidade praticamente inexistente e tudo aponta para que cada vez mais pessoas de fora venham trabalhar aqui. José Cardoso Botelho, por exemplo, fala em 1.500 novos postos de trabalho num prazo de 15 anos, à exceção dos meios humanos envolvidos na construção e referindo-se apenas aos projetos da Vanguard Properties. O número apontado representa uma décima parte da população do concelho.
Um crescimento galopante que não está só dependente do turismo e do setor imobiliário. A indústria aeronáutica chegou em força. A francesa Lauak finaliza a construção da primeira fábrica, que empregará entre 200 e 300 trabalhadores, enquanto prepara uma segunda unidade para servir a primeira. A formação e as infraestruturas são os investimentos públicos prioritários. Em conjunto com o IEFP, já decorrem planos de formação especializada na área da aeronáutica. A câmara investiu dez milhões de euros na requalificação de um jardim, uma biblioteca e uma escola. Criou um museu de arqueologia e está a construir duas novas estradas. A isso, junta-se a cedência de um terreno no Carvalhal a uma cooperativa de habitação que desenvolverá um projetos a custos controlados.
De 2017 para 2018, duplicaram os licenciamentos. O autarca garante que o atual Plano Diretor Municipal é o suficiente para garantir a sustentabilidade da região. “Em 1974, havia 125.000 camas aprovadas. Hoje, temos apenas 15.000 na faixa costeira. Este PDM foi aprovado há um ano e pouco, é mais restritivo do que o anterior, mas em alguns pontos é mais flexível. Reduzimos os perímetros urbanos em todas as localidades”, esclarece Figueira Mendes ao Observador. Por outro lado, o plano abriu as faixas central e interior aos projetos hoteleiros, uma estratégia para garantir um equilíbrio territorial. “Os próprios promotores já perceberam isso. Os novos compradores estão a reduzir as áreas de construção. Era o betão que vendia, hoje é a natureza e a paisagem”, descreve. O importante é não nos deixarmos aculturar. Queremos continuar a ser nós, com os nossos corais, as nossas tavernas, os nossos restaurantes e os nossos produtos”, remata, sem esquecer a questão da mão-de-obra, um desafio em cima da mesa. “Neste momento não temos desemprego, temos de trazer pessoas de fora”.
Melides Art: uma comunidade em torno da cultura
“É indiscutível, estamos numa das zonas mais bonitas do mundo”. Ouvir o empresário Miguel Carvalho é fazer uma visita guiada ao Melides Art, mesmo sem cruzar o portão desta propriedade com 200 hectares. Lá dentro, o que existe é diferente de todos os outros empreendimentos. A natureza, a cultura e os laços comunitários formam uma espécie de santíssima trindade, privilegiada, mantida a todo o custo e, de certa maneira, venerada. O poder financeiro não é o único requisito para fazer parte desta cidade à parte do mundo. Independentemente de se ser rico, muito rico ou milionário (e por aí adiante), é preciso trazer uma proposta cultural para a comunidade. Há apenas quatro casas construídas, mas número deverá subir para 14 até ao final deste ano. No final da empreitada, serão 34.
“Imagina uma vila Medici moderna, numa escala menor e doméstica, em que cada uma das unidades de alojamento faz parte de uma rede e funciona como um espaço criativo. Vivemos na era das redes e o indivíduo é tão mais forte quanto a rede a que está ligado. É uma proposta de vida”, explica Miguel, o homem que delineou o conceito e que dá a cara por um grupo de investidores em que ele próprio se inclui. Ainda vivia fora do país quando começou a projetar este modelo de comunidade. Aos 44 anos, construiu uma carreira na área das importações e exportações do setor têxtil. Regressou a Portugal e resolveu dar o pontapé de saída para a concretização do projeto. Fala numa proposta de lifestyle que vai muito além das mansões de luxo, da proximidade da praia e da distância confortável que a separa de uma capital europeia. “A beleza natural não é suficiente. Procurámos trazer uma nova realidade — esta relação da cultura com a natureza — para trazer um novo atrativo à região. É diferente da tradicional proposta de mar, sol e golfe”, remata.
Dentro da propriedade, os caminhos de terra batida formam uma espécie de labirinto. São vias com sinalética própria por onde somos guiados num terreno florestado. As casas, projetadas pelo atelier espanhol Esteva i Esteva, passam despercebidas. Por serem blocos erguidos praticamente no mesmo tom do solo arenoso, por estarem escondidas por entre pinheiros e eucaliptos e por ter se ter edificado apenas uma parte do que era permitido. Piscinas, silêncio e obras de arte — a atmosfera tem tanto de árida como de acolhedora. Uma das moradias está aberta à programação cultural do Melides Art, uma agenda que Miguel quer ver marcada pela heterogeneidade das propostas. Aos domingos, as portas abrem-se aos convidados. Artistas plásticos, atores, encenadores, realizadores, produtores, escritores, músicos, compositores, atletas, pensadores e gente que, de alguma forma, possa servir de sinapse numa teia que tanto proporciona momentos de fruição, como potencia novas criações.
Do improviso ao espetáculo montado, já passaram por aqui a brasileira Jesuton, mais de 200 vozes de cante alentejano e a britânica Charli XCX. Aos músicos misturam-se os sabores, muitas vezes as projeções de cinema. No exterior, há instalações espalhadas pelo parque. A curadoria é do antigo diretor do Palais de Tokyo, em Paris, Marc Olivier Wahler, que selecionou obras do suíço Olaf Breuning e dos norte-americanos Marnie Weber e Robert Melee para figurarem a céu aberto. “É tão simples quanto isto: uma pessoa que compra uma casa num empreendimento de golfe paga um green fee. As pessoas que têm aqui uma unidade de alojamento têm a mesma obrigação. Só que, como a cultura é uma coisa intangível, é difícil, por vezes, perceber o valor que existe”, explica Miguel ao Observador. “Há uma programação associada ao empreendimento e os custos dessas atividades são suportados por quem frui do espaço, por quem é proprietário das casas e por quem as aluga. Simplesmente, as pessoas entendem mais facilmente porque é que pagam pelo campo de golfe”, conclui.
Scott é norte-americano e ocupa uma das casas com a família. Dos pais, herdou uma fundação que apoia a produção de documentários nas mais diferentes áreas, vários já passaram por Melides. Na sala, com vista desafogada sobre o pinhal, acumula telas da alemã Susan Swartz. Sobre a mesa, os candeeiros de vidro são do português Martinho Pita. A sensação é de tranquilidade e desafogo, luxo que, como qualquer outro, tem um preço. Ao mesmo tempo, quem aqui está — os habitantes dividem-se entre os que compram casas (podendo depois alugá-las também) e os que alugam por determinado tempo — envolvem-se na comunidade, mesmo na que existe do portão para fora. Nesse dia, Scott almoçou n’O Gervásio, paragem obrigatória na região. No final, pegou no tacho, ainda meio de arroz de tamboril, e levou para casa com a promessa de devolvê-lo no dia seguinte. Aqui, é assim. E para quem veio de Boston, Scott habituou-se depressa.
Miguel recusa a ideia de clube privado, embora o acesso aos eventos funcione sobretudo à base do passa-palavra. “Não tem membros nem tem afinidades, é um espaço de encontro de pessoas diferentes. Recebemos regularmente pessoas que querem vir aos nossos encontros e que não conhecemos. E são muito bem-vindas. Vivemos num mundo exibicionista em que tudo está exposto, tudo está disponível a toda a hora. Aí, o espaço para a surpresa desaparece. Quisemos ser esse espaço”, responde. Entre maio e junho, passaram pela casa aberta do Melides Art cerca de 6.000 pessoas, sempre aos domingos, atraídas por expressões artísticas tão distintas como visionamentos de filmes, concertos, declamações, iguarias gastronómicas e exposições. “É por isso que digo às pessoas para virem cá provar o peixe, para virem ouvir a música, para virem ler poesia, para virem respirar o ar. Aqui, vive-se tudo de uma forma diferente”, continua.
Quanto aos investimentos imobiliários na localidade, sobretudo do ramo hoteleiro, Miguel deposita confiança nas entidades responsáveis — a Câmara Municipal de Grândola (CMG) e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (CCDRA). Fala na inevitabilidade do erro e, ao mesmo tempo, num crescimento que evolui no caminho certo. “Ao contrário do Algarve, esta costa beneficia, fruto da ação antiga da CCDR, da CMG e da Comissão Europeia, de um conjunto de restrições ambientais. Essas restrições excluem quase completamente a possibilidade urbanística e incidem sobretudo na costa e, nessa medida, este território nunca poderá ser o Algarve”, afirma. Para o futuro, planeia um outro empreendimento, também em Melides, mas mais próximo da hotelaria convencional. Dentro do Melides Art, o futuro parece estar na arte e na cultura, muito mais do que na paisagem natural circundante. “As pessoas querem alimentar a alma”, refere. E a herdade pela qual Miguel dá a cara está aqui para satisfazer esse apetite.
Compras, peixe fresco e gelados a pedal: os novos negócios da Comporta
Desde junho que a Praia do Carvalhal e a Vila da Comporta são patrulhadas por dois novos veículos. A pedal e com seis sabores de gelado atrás, a Gulato é um novo conceito de venda ambulante na região. Por detrás desta imagem inusitada, está uma história de mudança de vida, a de Pedro Machado e Gonçalo Diniz. “Já tinha uma conexão com a região. A minha família tinha uma pequena propriedade na Serra de Grândola e costumava vir para cá de férias. Na altura, acampava. A Comporta era uma vila de estrada batida. Era difícil chegar cá, mas sempre gostei deste lugar”, conta Gonçalo ao Observador. Depois de uma terem uma vida construída em Londres, decidiram regressar. Compraram um terreno,construíram uma casa, mudaram-se em 2017, mas continuava a faltar uma ideia de negócio.
Faltava à região uma geladaria artesanal. Em Bolonha, o casal fez um curso de chef gelatier — Pedro vinha da dança contemporânea e Gonçalo do design e da fotografia. De regresso, montaram uma pequena cozinha adaptada às experiências que área exige e perceberam depressa que não era de uma loja física que precisavam. Os triciclos têm nomes — Arcanjo Rafael e Arcanjo Gabriel. O primeiro para no centro da vila, o segundo vai todas as tardes para a Praia do Carvalhal. “Temos uma cozinha artesanal, produzimos em quantidades pequenas”, continua. Pedro e Gonçalo vieram em busca de tranquilidade, por isso, o negócio é para ser lavado com calma. Ainda assim, o sucesso está a ser mais ou menos imediato. E já há best sellers — o sorbet de chocolate fondant, caramelo salgado, um clássico, pistácio com sal, sorbet de maracujá, nata unicórnio, com pepitas de chocolate colorido, cheesecake de goiaba e coco e lima.
Onde comer
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5 Sentidos Aldeia do Carvalhal
Cavalariça Comporta
Colmo Bar Comporta
Comporta Café Praia da Comporta
Dona Bia Torre
Flor de Sal by Melides Praia de Melides
Gomes Casa de Vinhos & Petiscos Comporta
Jacaré Comporta
O Dinis Praia do Cavalhal
O Gervásio Brejos da Carregueira de Baixo
O Melidense Melides
O Tobias Carvalhal
Retiro do Pescador Museu do Arroz, Comporta
Sal Praia do Pego
Tia Rosa Melides
A acompanhar os sabores (mais de 50 em portefólio, mas que vão rodando todos os dias), a preocupação com o ambiente. A embalagens, em cartão, são biodegradáveis, as colheres, feitas de uma resina vegetal, são até compostáveis. Além da venda ambulante, na famosa Mercearia Gomes, vendem-se caixas de meio litro em cortiça, uma experiência bem sucedida e amiga do ambiente. Os clientes levam-nas para casa e recebem o dinheiro da caixa de volta assim que a devolverem. A Gulato é a prova de que não é só a revolução imobiliária e hoteleira que está a mudar a região. Por arrasto, este está a tornar-se um terreno fértil para novas ideias, além de um novo leque de necessidades que existem e às quais é preciso dar respostas.
No centro da vila, todos os negócios gravitam em torno da Rua do Secador. A sazonalidade continua a ser o grande fator adverso. Na Casa da Cultura, junta-se arte e consumo. Entre um bar, um restaurante de pizzas, uma galeria e um amplo espaço ocupado por marcas de moda, decoração e artesãos, por estes dias, é evidente que a vila atravessa a sua época alta. Os franceses começam a ser residentes, os norte-americanos chegam cada vez em maior número, os brasileiros descobrem agora este paraíso rústico. Todos os anos, novas marcas se juntam a este espaço comercial — é o caso da Panareha, com vestuário de verão masculino — e as exposições rodam todas as semanas. O estilo Comporta veio para ficar, está em todo o lado, do boho chic das propostas de vestuário ao mediterrânico alentejano dos ambientes propostos para o interior das casas.
No Carvalhal, acaba de abrir um novo restaurante. Chama-se Bago, fica junto à Lagoa Formosa, tem vista para os arrozais e está a 500 metros da praia. Foi a forma que um pescador local e um viajante compulsivo encontraram de selar uma amizade. De portas abertas há cerca de duas semanas, a oferta é despretensiosa e num ambiente descontraído, como tão bem assenta a qualquer estabelecimento da região. As lulas, o carpaccio de polvo, o robalo, a moqueca de peixe — grande parte dos ingredientes da terra vem, invariavelmente, do mar. Mas há alternativas: um magret de pato, bem ao gosto da francofonia, cogumelos Portobello recheados, uma iguaria sem fronteiras, ou um entrecote de bovino com vinho tinto. Uma ponte da Comporta para o mundo, vá. Mas estando aqui, os clássicos ninguém nos tira. Teremos sempre os linguadinhos fritos com arroz de berbigão da Dona Bia, o choco frito d’O Gervásio e as amêijoas d’O Dinis. Há muita gente ainda a caminho da Comporta e quem cá chega costuma vir com fome.
Amor e um resort: eles procuravam um paraíso e encontraram-no
Em 2016, Faik e Sera Yufkayürek não podiam estar mais longe de imaginar que o seu futuro passaria por estes 20 hectares de terreno, a três quilómetros e meio da vila de Melides. Ele cresceu na Alemanha, filho de pai turco e mãe alemã, e fez carreira em Londres, no setor da banca de investimento. Ela nasceu e cresceu em Istambul, até trocar a terra natal por Chicago, onde estudou Ciência Política e Gestão, e mais tarde por Amesterdão. Pelo caminho, Sera estudou arquitetura, passou por uma fase de descoberta pessoal e percebeu que felicidade e sucesso profissional eram coisas diferentes. Idealizou uma espécie de retiro e chegou mesmo a encontrar o terreno perfeito. “Estava quase a comprar o terreno, mas acabei por mudar de ideias e ainda bem”, conta ao Observador.
Enquanto isso, Faik viajava para a Ásia. “Depois de dez anos na banca, já não gostava assim tanto daquilo. Tinha de perceber como é que ia ser feliz”, partilha. Ao que parece, três meses na Índia também lhe ensinaram umas quantas coisas sobre felicidade, sobretudo a parte em que nos rodearmos do que é realmente importante. Dois cidadãos do mundo, sem sombra dúvida, mas que tiveram de voltar à Turquia para que os seus caminhos se cruzassem. Casaram e se a história que os uniu aos dois parece ter sido de amor à primeira vista, o momento em que resolveram vir explorar a Península de Setúbal não andou muito longe disso.
“No dia 15 de julho de 2016, houve uma tentativa de golpe de estado. Estávamos em casa, ouvimos todos aqueles aviões a sobrevoar-nos, terror e medo nas ruas. No dia seguinte, decidimos deixar a Turquia”, recorda Sera. “O país está numa crise política e económica e tem tomado um rumo oposto ao que queríamos para nós. Adotou uma cultura muito patriótica. O sistema de educação está a mudar, as escolas estão a mudar, o currículo escolar está a mudar. A nossa filha nasceu há seis meses e estamos muito felizes por ter nascido aqui”, continua Faik. Ao mesmo tempo, ela recuperou o sonho deixado lá atrás — construir um resort voltado para o relaxamento e para a abstração, que tirasse partido de uma paisagem natural intocada. Era isso, ou voltar para o mundo empresarial. “Para quê esperar pela idade da reforma se temos a energia e os meios para fazê-lo agora? Então fomos à procura do melhor sítio na Europa para concretizar isto”, completa Sera.
Numa primeira visita a Portugal, a paisagem e o trato das pessoas convenceram o casal de que não era preciso procurar mais. Sera fala em “gente simpática, afável e sem grandes egos” e na ausência de “racismo ou preconceitos políticos”. O casal sentiu-se imediatamente em casa, ou melhor, numa espécie de santuário. Durante três semanas, exploraram os arredores da capital — Arrábida, Sesimbra e Meco. “Estávamos à espera de encontrar paisagens lindas, mas foram as pessoas que nos surpreenderam. E claro, não há muitos sítios na Europa onde possas comprar um terreno perto da praia, com vista para o mar e a uma hora da capital. Quer dizer, só falta mesmo uma montanha para fazer esqui”, admite Faik. O despretensiosismo português não podia estar mais alinhado com as tendências internacionais. Acontece que nem o casal turco estava à espera, nem quem cá está o faz de propósito. “Há um círculo de pessoas que está farto de ver os outros a ostentar e a tentarem definir-se por aquilo que têm, isso é passado”, pontua Faik.
O que fazer
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Cais Palafítico Carrasqueira
Cavalos na Areia Torre
Comporta Yoga Shala Torre
Museu do Arroz Comporta
Observatório de Aves Lagoa de Melides
Surf in Comporta Praia do Carvalhal
Provas de vinhos na Herdade da Comporta Comporta
Natureza, boa comida, boa gente e um bom conjunto de valores — o casal resume assim a fórmula que o levou a apaixonar-se, primeiro por Portugal e depois por Melides, qual versão virgem de um fenómeno chamado Comporta. “Viemos para Portugal para ficar longe desse tipo de fenómenos. Fomos lá, explorámos um pouco, percebemos que era um local plano, com muitos mosquitos e com uma vibe que não era assim tão especial”, acrescenta Sera. A natureza em estado puro falou muito mais alto do que o estilo hippie chic. Ainda assim, ambos reconhecem que toda a linha de costa está na mira de dezenas de investidores e que é impossível que, mesmo um oásis verde como Melides, não se transforme a médio prazo.
À segunda tentativa de compra, conseguiram o terreno ideal. Para fundir um resort de luxo com a natureza, Faik e Sera contrataram o português Vasco Vieira, arquiteto responsável pelo hotel Areias do Seixo, na região Oeste. As madeiras, as linhas curvas, um edifício central camuflado aos olhos de quem chega, um cimento semelhante a terracota — por enquanto, o Umay é visível apenas através de simulações do projeto. Ainda assim, dá para ter uma ideia do colosso que está a caminho de Melides. São 28 quartos (seis deles de luxo), 21 casas em madeira (estas são ligeiramente elevadas para criar a sensação de casa na árvore), dez villas privadas, jardins e piscinas, um spa e um restaurante e uma estufa com 600 m2. O investimento ronda os 25 milhões de euros. As casas e villas estão à venda, os preços vão dos 450.000 aos 1.375.000 euros. Morar no complexo faz parte dos planos da família Yufkayürek. O som dos grilos, o solo arenoso e o cheiro a rosmaninho convenceu o Faik e Sera deste a primeira ida ao terreno. Acrescente-se que o mar está a cinco quilómetros. A construção ainda não arrancou, mas a conclusão do projeto está prevista para 2021.
Herdade da Comporta: a cidade que podia ter sido
À parte dos hotéis, dos resorts e dos condomínios milionários, este é o projeto da cidade que podia ter sido. Comporta Utopia, a proposta do consórcio liderado pelo empresário francês Louis Albert de Broglie — também conhecido como o príncipe jardineiro — no concurso para a compra da Herdade da Comporta, era um empreendimento multidisciplinar que começou a ser pensada a partir de setembro de 2016. As diretrizes autorizavam quase 639.000 m2 de construção e uma capacidade hoteleira de quase 4.000 quartos. Ambientalista na sua génese, a alternativa planeava construir cerca de 25% do permitido e explorar apenas 16% da capacidade de acomodação. O desfecho do negócio não lhe foi favorável — o consórcio Amorim-Berda levou a melhor –, mas o sonho de manter a paisagem da região mais intocada não morreu. Os esquiços continuam lá e até já inspiraram outros projetos, deste e do outro lado do mundo.
“Era um projeto com oito centros — medicina, arte, um museu, uma escola — que tocavam todas as áreas. Queríamos desenvolver toda a parte da educação com a Universidade de Évora e com a Católica e, de repente, fazer da Comporta um think tank“, explica Rita Andringa, designer e braço direito do empresário francês na conceção do Comporta Utopia. Mantendo o nome, o projeto foi convertido em associação há quase um ano. O objetivo é promover um novo modelo de ordenamento do território na região, privilegiando soluções ambientais, sociais e culturais. Entretanto, o empreendimento não ficou esquecido, apenas aguarda uma nova oportunidade (e terreno) para ganhar forma. Na China, o conceito originalmente idealizado para a Comporta vai ver a luz do dia. Os 220 hectares em Chengdu, na província de Sichuan, terão o nome de Terra Panda. Em Versalhes, França, vai nascer uma outra versão em menor escala. São 21 hectares de terreno militar que darão lugar a uma cidade verde e autossustentável, com uma escola, um museu, um hotel, habitações, um pomar e sem carros.
Curiosamente, a relação de Rita com a região começou por outra via. Em 2006 conheceu Vera Iachia, arquiteta de interiores portuguesa, membro do clã Espírito Santo, que hoje reconhece como a mãe do Comporta style. Dos telhados de colmo às treliças, dos brancos, azuis e turquesas às influências trazidas da Grécia e do México, ela pôs as fachadas e ambientes nas páginas das mais diversas publicações internacionais. O respeito pela arquitetura vernacular, a integração do artesanato local e a vivência dos espaços em proximidade com a natureza e a comunidade envolvente foram os pilares absorvidos por Andringa e perduram mesmo após a morte de Iachia, em 2017. Atualmente, grande parte dos projetos que tem em mãos está aqui, entre a Comporta e Melides.
“Cada vez que chegamos à Comporta, vemos mais uma construção”, refere à conversa com o Observador. O design e a arquitetura são decisivos nas transformações galopantes que a paisagem sofre. Para Rita, o fenómeno em torno da vila, e que já se estendeu por vários quilómetros a sul, é um pau de dois bicos. Ao mesmo tempo que vive disto, espera que o bom senso prevaleça na hora de planear e edificar. “Há muitos estilos e acaba por ser uma zona de experimentação arquitetónica”, reflete a designer que se cinge aos elementos que não rompem com a paisagem. “A maior parte dos meus clientes é estrangeira e, ao longo dos anos, tenho visto que se apaixona à séria pela Comporta. Veem-na como uma espécie de fantasia, mas gostam da arquitetura típica, nenhum deles quer nada muito moderno”, completa. O artista alemão Anselm Kiefer chegou a projetar um atelier e uma fundação aqui. Para além do apelo balnear, os atrativos têm de surgir noutras áreas.
Primeiro a paixão, depois o amor e com ele a responsabilidade de cuidar. É mais ou menos esta a cronologia que liga Louis Albert de Broglie à Comporta. Pisou-a pela primeira vez em meados dos anos 90, atraído pelos sucessivos postais e relatos de amigos pioneiros. Acabou por montar casa, ou melhor, um conjunto de cabanas trazidas de Timor e decoradas por Rita. Conheceram-se aí, ficaram amigos e partilham projetos desde então. Foi a face rural da região, os campos de arroz e o oceano que conquistaram este empreendedor ecologista (em França, criou uma cultura onde crescem cerca de 750 espécies de tomate). “A fragilidade deste ecossistema tem sido um tópico muito importante para mim neste últimos anos. É impossível manter a Comporta como é agora, ela já está a mudar. Neste momento, há duas questões: o património natural e a ausência de infraestruturas”, partilha Broglie em entrevista ao Observador.
Numa petição enviada à Assembleia da República, Rita e Louis Albert tentaram alertar os decisores para a necessidade de uma maior regulamentação. O esforço não surtiu efeito. “O estado devia intervir no destino da Comporta muito além das transações económicas”, refere Rita, para quem as decisões mais importantes estão por tomar a montante e dizem respeito ao próprio ordenamento do território. “As licenças emitidas são imensas. Para a Comporta continuar a ser um sítio sustentável e sustentado, não se pode construir a quantidade de metros quadrados que são permitidos. Não há infraestruturas suficientes. Já vimos isto acontecer em imensos sítios, sítios onde vemos casas habitadas três meses por ano. Durante esse tempo, as estradas para a praia estão absolutamente congestionadas. E depois? Quem trabalha nesses sítios só trabalha três meses por ano? Vamos criar só serviços? O turismo tem de ser repensado”, conclui a designer.
Há quase 20 anos, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) classificou, através do Plano Sectorial da Rede Natura 2000, uma vasta área da região. O território protegido ganhou o nome de Sítio Comporta/Galé e compreende 32.051 hectares. Desses, 70% fazem parte do concelho de Alcácer do Sal. Uma classificação ineficaz, na opinião de Francisco Ferreira, presidente da Zero, uma associação ambientalista. A pressão turística e da expansão urbana foram as primeiras ameaças a serem elencadas nos documentos oficiais, no entanto, não chegaram a ser delineados planos de gestão para este território, tampouco foi feita uma caracterização detalhada e a cartografia dos habitats. “Está assim há anos. A Quercus já chegou a fazer queixa à Comissão Europeia por não haver plano de gestão para a zona Comporta/Galé”, refere Francisco em conversa com o Observador.
Dunas, lençóis de água, vegetação e vida animal — por não estarem devidamente identificados, dificilmente os elementos serão protegidos, segundo o raciocínio do presidente da Zero. Na mesma medida, é difícil avaliar a consonância dos atuais e futuros empreendimentos com a salvaguarda dos valores naturais. “As autarquias não têm favorecido uma ocupação comedida e sustentável destas zonas. Não defendemos uma ocupação zero, mas que está planeado neste momento, para nós, já extravasa o aceitável”, continua. A este balanço indispensável, acrescem eventuais efeitos das alterações climáticas. “Ainda podemos vir a ter empreendimentos a pedirem intervenção do Estado porque a areia está a desaparecer”, exemplifica.
“A vertente turística que se possa ali implementar deve respeitar o interesse público”, acrescenta Francisco. “Uma coisa é fazer um hotel, outra coisa é fazer segundas habitações. Já não são só projetos de hotelaria, são planos de urbanização. É permitido urbanizar esses espaços e isso é inadmissível”, conclui. Conhecer melhor o território, as suas características e necessidades é, segundo a Zero, um trabalho premente e da responsabilidade do ICNF. No limite, a atual área protegida poderá até incluir zonas que não careçam de classificação. Enquanto isso, a região é transformada e recebe investimentos que totalizam centenas de milhões. Rita Andringa resume: “São dores de crescimento. Só espero que, no final, essas dores deem uma pessoa muito bonita”.